domingo, 21 de agosto de 2016

Os miseraveis

X — Onde se explica como Javert bateu o monte e não encontrou caça Os acontecimentos de que acabamos de ver, para assim dizer, o reverso, Ɵnham-se realizado nas condições mais simples. Quando Jean Valjean, na própria noite do dia em que Javert o prendeu junto do leito mortuário de FanƟne, fugiu da cadeia Municipal de Montreuil-sur-mer, a polícia supôs que o forçado evadido se deveria dirigir para Paris. Paris é um pego em que tudo se perde; tudo desaparece naquele centro do mundo como no meio do oceano. Floresta alguma oculta um homem como aquela mulƟdão; e não há fugiƟvo de espécie nenhuma que o não saiba. Vão para Paris como para um sorvedouro; há sorvedouros que salvam. A polícia sabe-o também e por isso é em Paris que vai procurar o que perdeu noutra parte. Assim, foi ali procurar o ex-maire. Javert foi chamado a Paris a fim de esclarecer as pesquisas. Javert contribuiu poderosamente, com efeito, para que se encontrasse Jean Valjean; o seu zelo nesta ocasião foi notado pelo senhor Chaboillet, secretário da prefeitura, no tempo do conde de Angles. O senhor Chabouillet, que já por vezes protegera Javert, fez com que ele ficasse servindo na prefeitura de Paris. Ali tornou-se Javert, de diversos modos, digamo-lo, ainda que a frase pareça inesperada para semelhantes serviços, honrosamente útil. Não pensara mais em Jean Valjean esta espécie de cães sempre à caça, esquecem o lobo de ontem pelo de hoje quando em Dezembro de 1843, leu um periódico, ele que nunca lia periódicos; mas Javert, homem monárquico, Ɵvera interesse em conhecer os pormenores da entrada triunfal do «príncipe generalíssimo» em Bayona. Quando chegava ao fim do arƟgo que o interessava, a atenção foi-lhe atraída por um nome que se lhe deparou no fim da página; era o nome de Jean Valjean. O periódico anunciava a morte do forçado Jean Valjean e publicava o facto em termos tão precisos que não podiam deixar a Javert a mínima dúvida. Limitou-se a dizer: aquilo é que era têmpera. E pondo o periódico de parte não pensou mais em semelhante coisa. Sucedeu que algum tempo depois apareceu uma nota da polícia transmiƟda pela prefeitura de Seine-et-Oise à prefeitura de Paris, sobre o roubo de uma criança, que fora efectuado, segundo diziam, em circunstâncias parƟculares, no concelho de Monƞermeil. Uma rapariguinha de sete a oito anos, dizia a nota, confiada por sua mãe a um estalajadeiro daqueles síƟos fora roubada por um desconhecido; esta pequena Ɵnha o nome de CoseƩe e era filha de uma meretriz chamada FanƟne, falecida no hospital, não se sabia quando nem onde. Esta nota foi vista por Javert e tornou-o pensativo. O nome de FanƟne era-lhe muito conhecido. Recordara-se de que Jean Valjean lhe provocara o riso, a ele, Javert, pedindo-lhe uma espera de três dias para ir buscar a filha daquela criatura. Recordou-se de que Jean Valjean fora preso em Paris no momento em que subia para a diligência de Montfermeil. Algumas indicações Ɵnham mesmo feito pensar, naquela época, que era a segunda vez que ele entrava para a mesma diligência e que já na véspera Ɵnha efectuado uma excursão pelos arredores da aldeia, por isso que o não Ɵnham visto no povoado. O que ia ele fazer a Monƞermeil? Ninguém o podia adivinhar, Javert, em presença da nota da polícia, compreendeu tudo. Era ali que estava a filha de Fantine. Jean Valjean ia procurá-la. Ora, esta criança fora roubada por um desconhecido; quem poderia ele ser? Seria Jean Valjean? Mas Jean Valjean morrera. Sem dizer coisa alguma a ninguém, Javert tomou lugar na carruagem do Prato de estanho, no beco sem saída da Planchette, e dirigiu-se a Montfermeil. Esperava encontrar ali grandes esclarecimentos, mas só achou trevas. Durante os primeiros dias, os Thenardier, despeitados, Ɵnham dado à língua. O desaparecimento da Cotovia causara sensação na aldeia. Tinham-se divulgado logo em seguida muitas versões da história, que acabava pelo roubo de uma criança. Fora de tudo isto que resultara a nota da polícia. Entretanto, passada a primeira impressão, Thenardier, com o seu admirável insƟnto, compreendera rapidamente que não havia nunca a mínima uƟlidade em incomodar o procurador-régio, e que as suas queixas acerca do rapto de CoseƩe teriam por primeiro resultado o atraírem sobre ele, Thenardier, e sobre muitos dos seus negócios intrincados, os penetrantes olhos da justiça. A primeira coisa que os mochos não querem é que lhes apresentem a luz. E depois, como se sairia ele da história dos mil e quinhentos francos que recebera? Recuou, pois, pôs uma mordaça na boca de sua mulher e passou a mostrar-se muito admirado quando lhe falavam da criança roubada. Não percebia nada: sem dúvida Ɵnhase queixado no primeiro momento de que lhe roubassem tão cedo aquela querida criancinha; quisera, pelo amor que lhe consagrava, tê-la ainda consigo dois ou três dias; mas fora seu avô quem muito naturalmente a levara. A isto Ɵnha ele acrescentado que o avô fizera muito bem. Foi esta a história que Javert encontrou quando chegou a Monƞermeil. Aquele avô fazia desaparecer Jean Valjean. Javert, contudo, quais sondas, mergulhou algumas perguntas na história contada por Thenardier: — Quem era o tal avô? Como se chamava? Thenardier respondeu com a maior simplicidade: — É um lavrador muito rico: eu vi-lhe o passaporte e parece-me que se chama Guilherme Lambert. Lambert era um nome de homem de bem e que não tinha nada de suspeito. Javert voltou para Paris. «Sou um alarve», disse ele consigo. «Jean Valjean morreu com efeito». E tornara a esquecer-se de toda aquela história, quando, no decurso de Março de 1824, ouviu falar dum personagem extravagante que morava na freguesia de S. Médard, e a quem apelidavam o pobre que dava esmolas. Este personagem, segundo diziam, era um rendeiro, cujo nome ninguém sabia ao certo, que Ɵnha na sua companhia uma rapariguinha de sete a oito anos, a qual não sabia também dizer senão que viera de Montfermeil. Montfermeil! Este nome, tornando assim a aparecer, desafiou a atenção de Javert. Um velho mendigo espião, ex-bedel, a quem o tal personagem costumava dar esmola, acrescentava alguns outros pormenores. O tal rendeiro era quase intratável, nunca saía de casa senão de noite, não falava em geral com pessoa alguma, poucas vezes com os pobres; e assim mesmo conservava-se sempre em certa distância. Usava uma horrível sobrecasaca amarela que valia muitos milhões, por isso que era toda forrada de notas do Banco. Tudo isto excitou a curiosidade de Javert, que quis ver de perto a fantásƟca criatura sem que a assustasse. Para isso pediu ao velho bedel que lhe emprestasse o fato e o lugar em que todos os dias se sentava resmungando orações e espionando através da devoção. O «indivíduo suspeito» dirigiu-se, pois, a Javert, assim disfarçado e deu-lhe a esmola: neste momento, Javert levantou a cabeça e o estremecimento que Jean Valjean senƟu julgando reconhecer Javert, sentiu-o este igualmente julgando reconhecer Jean Valjean. Entretanto, a escuridão poderia tê-lo enganado; a morte de Jean Valjean era oficial; portanto, Ɵnham ficado a Javert graves dúvidas; e em estado de dúvida, sendo, como era, escrupuloso, não lançava a mão a ninguém. Seguiu o homem até à casa de Gorbeau e fez falar a velha, o que não foi nada diİcil. A velha confirmou-lhe o caso da sobrecasaca forrada de milhões e contou-lhe o episódio da nota de mil francos. Ela própria Ɵnha visto o forro da sobrecasaca, Ɵnha-o apalpado! Javert alugou um quarto e entrou para ele nessa mesma noite. Foi escutar à porta do misterioso inquilino, esperando ouvir-lhe o som da voz, mas Jean Valjean lobrigou a luz pelo buraco da fechadura e iludiu a esperança do espião conservando-se silencioso. No dia seguinte, Jean Valjean deixou o quarto que habitava. Mas o ruído produzido pela moeda de cinco francos caindo no chão foi notado pela velha, que ouvindo mexer em dinheiro, suspeitou que iriam sair e apressou-se em avisar Javert. À noite, quando Jean Valjean saiu, Javert, com dois homens, esperava-o por detrás das árvores do boulevard. Javert pedira auxílio à prefeitura, mas não declarara o nome do indivíduo que queria prender. Era o seu segredo e guardara-o por três razões: primeiro, porque a menor indiscrição poderia servir de aviso a Jean Valjean; segunda, porque lançar a mão a um velho forçado evadido e reputado morto, a um condenado a quem noutro tempo a jusƟça classificara entre os malfeitores da mais perigosa espécie, era um magnífico feito, que os anƟgos agentes da polícia parisiense não deixariam decerto a um recém-chegado como Javert, e ele receava que por isso lhe empalmassem o seu forçado, e enfim, porque sendo Javert um arƟsta, Ɵnha pronunciado gosto por tudo quanto era imprevisto. Odiava os comeƟmentos anunciados e que perdem o efeito por se falar deles antecipadamente. Tinha todo o empenho em elaborar as suas obras-primas na sombra, para depois as patentear inopinadamente. Javert seguira Jean Valjean de árvore em árvore, depois de esquina em esquina, e não o perdera de vista um só instante; mesmo nos momentos em que Jean Valjean se julgara em maior segurança, não se Ɵnham afastado dele os olhos de Javert. Porque não o prendeu logo? Era porque ainda duvidava. Convém não esquecer que a polícia, naquela época, não se achava à sua vontade: a liberdade de imprensa incomodava-a. Algumas prisões arbitrárias denunciadas pelos periódicos, Ɵnham ressoado nas câmaras e haviam tornado ơmida a prefeitura. Atentar contra a liberdade individual era um caso grave. Os agentes da polícia receavam enganar-se; o prefeito reportava-se a eles; um engano equivalia à demissão. Imagine-se, por exemplo, o efeito que teria produzido em Paris esta local, reproduzida por vinte periódicos: «Ontem, um velho respeitável, coberto de cabelos brancos, um honrado capitalista que andava passeando com uma neta de oito anos, foi preso e conduzido ao depósito da prefeitura como forçado evadido!» Além disso, repeƟmos, Javert Ɵnha os seus escrúpulos; as recomendações da consciência juntavam-se às do prefeito. Duvidava realmente. Jean Valjean ia de costas voltadas caminhando na escuridão. A tristeza, o desassossego, a ansiedade, o acabrunhamento, este novo infortúnio de se ver obrigado a fugir de noite e a procurar um asilo ao acaso para ele e para CoseƩe, a necessidade de regular o seu passo pelo de uma criança, tudo isto lhe Ɵnha, mesmo sem ele o saber, mudado tanto os modos e impresso neles tal senilidade, que até a própria polícia, incarnada em Javert, podia enganar-se e enganou-se. A impossibilidade de se chegar muito a ele, o seu trajo de velho preceptor emigrado, a declaração de Thenardier que o fazia avô de CoseƩe, finalmente o acreditar-se que ele Ɵnha morrido nas galés, acrescentavam ainda mais as incertezas que a Javert se lhe amontoavam no espírito. Javert teve um momento a ideia de se chegar ao pé dele e perguntar-lhe de chofre pelos seus papéis, pois se aquele homem não era Jean Valjean, se não era algum velho e honrado rendeiro, era, provavelmente, algum gatuno profunda e gravemente envolvido na obscura trama dos delitos parisienses, algum perigoso chefe de quadrilha, que dava esmolas para ocultar as outras habilidades que Ɵnha, manha há muito usada. Aquele homem Ɵnha sócios, cúmplices, esconderijos, onde decerto ia refugiar-se. Todos aqueles rodeios que ele fazia pelas ruas pareciam indicar que não era um simples velho. Prendê- lo de chofre, porém, era «matar a galinha dos ovos de ouro». Que inconveniente havia em esperar, se Javert estava seguríssimo de que ele lhe não escaparia? Caminhava, pois, sobremodo perplexo, fazendo a si mesmo cem perguntas sobre aquele personagem enigmático. Só mais adiante, porém, na rua de Pontoise, foi que ele, em virtude do vivo clarão que saía de dentro de uma taberna, conheceu decididamente Jean Valjean. Há neste mundo duas qualidades de entes que estremecem profundamente a mãe que depara com o filhinho e o Ɵgre que depara com a presa. Javert senƟu este estremecimento profundo. Apenas conheceu posiƟvamente Jean Valjean o temível forçado reparou que eram só três e mandou pedir reforço ao comissário de polícia da rua de Pontoise. Antes de se deitar a mão a uma vara de espinheiro, calçam-se luvas primeiro. Esta demora e a paragem que fizera no beco de Rollin, a combinar com os seus agentes, esƟveram para lhe fazer perder o rasto do fugiƟvo. Javert, todavia, logo adivinhou que Jean Valjean havia de querer meter o rio de permeio entre ele e os seus perseguidores, e inclinando a cabeça a reflecƟr, como um sabujo que põe o focinho no chão para aƟnar com o caminho, dirigiu-se direito para a ponte de Austerlitz, guiado pela poderosa certeza do seu insƟnto. Bastou-lhe uma palavra ao homem ali empregado para se orientar sobre o caminho que levava o fugitivo. — Viu passar por aqui um homem com uma pequena? — Agora mesmo lhe fiz pagar dois soldos — respondeu o interpelado. Javert chegou à ponte ainda a tempo de ver do outro lado do rio, Jean Valjean com CoseƩe pela mão, atravessando o largo iluminado pelo luar. Viu-o entrar na rua do Caminho Verde de Santo António, e lembrando-se do beco de Genrot, disposto como uma ratoeira e da única saída da rua do Muro Direito para a viela do Picpus, mandou à pressa de volta um dos seus agentes a guardá-la, «cercando-lhe a volta», como dizem os caçadores. A este tempo, sucedendo passar uma patrulha que se recolhia à casa da guarda do Arsenal, requisitou-a e fez-se acompanhar dela. Neste jogo os soldados são trunfos. Além disso, é ponto assente que para agarrar um javali é necessário ser bom caçador e levar boa maƟlha. Combinadas estas disposições, pressenƟndo Jean Valjean assim encurralado entre o beco de Genrot pela direita, o seu agente pela esquerda e ele por trás, tomou sossegadamente uma pitada e depois principiou a brincar. Aquele homem teve um momento de infernal transporte; deixou caminhar o seu homem adiante de si, sabendo que o Ɵnha seguro, mas desejando demorar o mais possível o momento de o prender, senƟndo um incomensurável prazer em o ver livre e tê-lo preso, devorando-o com a vista com essa voluptuosidade da aranha que deixa esvoaçar a mosca e do gato que deixa correr o rato. A garra e a unha têm uma sensualidade monstruosa — é o movimento obscuro do animal preso entre as suas tenazes. Que delícia aquela estrangulação! Javert gozava. As malhas da sua rede estavam solidamente atadas e ele certo do sucesso: agora não tinha mais do que fechar a mão. Acompanhado como estava, até a simples e única ideia de resistência era impossível, por mais enérgico e vigoroso que fosse Jean Valjean, por mais desesperado que ele pudesse sentir-se. Javert conƟnuou, pois, caminhando sempre, sondando e pesquisando, ao passar, todos os recantos da rua, como o faria aos bolsos de um ladrão. Ao chegar, porém, ao meio da teia, não encontrou a mosca. Imagine-se o seu desespero! Interrogou a sua vigia das ruas do Muro Direito e de Picpus, porém, o agente, que ficara imperturbável no seu posto, não vira passar o homem. Sucede às vezes escapar-se um veado, posto que com a maƟlha no encalço, e então os mais experientes caçadores não sabem o que hão-de dizer. Duvivier, Ligniville e Desprez sentem-se atónitos. Num mau sucesso deste género exclamou Artonge: Não é um veado, é um feiticeiro. Javert de bom grado teria soltado o mesmo grito. O seu desapontamento participava do desespero e do furor. É certo que Napoleão cometeu faltas na guerra da Rússia, que Alexandre as cometeu na guerra da Índia, César na guerra da África, Cyro na guerra da Scythia e que Javert as cometeu nesta campanha contra Jean Valjean. Talvez fizesse mal em não conhecer logo o antigo forçado, pois devia bastar-lhe o primeiro relancear de olhos. Fez mal em não o prender pura e simplesmente no casebre. Fez mal em não o prender quando posiƟvamente o conheceu na rua de Pontoise. Fez mal em se pôr a conferenciar com os seus auxiliares ao luar do beco de Rollin, pois é certo que os avisos são úteis e que é bom conhecer e interrogar os dos cães que merecem crédito; porém, por mais precauções que o caçador tome, nunca estas são demasiadas, quando anda à caça de animais desconfiados, como o lobo e o forçado. Javert, ocupando-se de mais em orientar sobre o caminho os sabujos da maƟlha, deu rebate ao animal, que conheceu pelo faro o que se lhe preparava e deitou a fugir. Ele fez mal, sobretudo em se levar, apenas deu com o rasto na ponte de Austerlitz, do pueril gosto de brincar com semelhante homem, brinco temível, que consisƟa em o ter seguro pela ponta de um fio, julgando-se deste modo mais forte do que era e supondo poder brincar com um leão como quem brinca com um rato, ao mesmo tempo que se supusera fraco de mais, quando julgara necessário reclamar auxílio, precaução fatal, perda de um tempo precioso. Javert cometeu todas estas faltas, e nem por isso deixava de ser um dos espiões mais sábios e correctos que têm exisƟdo. Javert era, em toda a extensão da palavra, o que os caçadores chamam um cão fino. Mas que há neste mundo que seja perfeito? Os grandes estrategas também têm seus eclipses. De ordinário, as grandes asneiras são, como as cordas grossas, formadas de uma mulƟdão de fios. Pegai na corda e desfiai-a, tomai separadamente todos os pequenos moƟvos determinantes, e direis, quebrando-os um a um: «Pois é só isto!» Entrançai-os, porém, e torcei-os todos, e ficar-vos-á uma enormidade; será ÁƟla hesitando entre Marciano no Oriente e ValenƟniano no Ocidente; será Aníbal demorando-se em Capua, Danton adormecendo em Arcis-sur-Aube. Seja, porém, o que for, Javert, mesmo no momento em que conheceu que Jean Valjean lhe escapava, não ficou fora de si. Certo de que o forçado refractário não poderia estar muito longe, estabeleceu espias, organizou ratoeiras e emboscadas, e toda a noite bateu aqueles síƟos. A primeira coisa que ele viu foi a desordem do lampião, que Ɵnha a corda quebrada. Indício precioso, que, todavia, o enganou, fazendo-o desviar todas as pesquisas para o beco de Genrot. Há neste beco paredes sobremodo baixas, que dão para jardins que vão terminar em imensos terrenos incultos. Jean Valjean, pois, com toda a certeza devia ter fugido por aquele lugar. O facto é que, se ele Ɵvesse penetrado mais dentro do beco de Genrot, decerto o faria e estava perdido. Javert explorou aqueles jardins e terrenos como quem procura uma agulha. Ao romper do dia, deixou em observação dois homens inteligentes e dirigiu-se à prefeitura de polícia, envergonhado como um espião apanhado por um ladrão.


LIVRO SEXTO — O PETIT PICPUS I — Rua Picpus, número 62

Não havia, há meio século, coisa que mais se parecesse com qualquer porta de cocheira do que a da casa número 62, situada na rua do Picpus. Esta porta, de ordinário entreaberta da maneira mais atracƟva, deixava ver duas coisas que nada têm de fúnebre: um páƟo rodeado de paredes atapetadas de folhas de videira, por cima das quais, ao fundo, se avistavam algumas árvores corpulentas, e o rosto de um porteiro a passear. Quando um raio de sol alegrava o páƟo e um copo de vinho o porteiro, era difícil passar pela casa número 62 da rua do Picpus sem trazer dali uma ideia risonha. E, todavia, era um lugar sombrio que se tinha entrevisto. O limiar sorria, a casa rezava e chorava. Se alguém chegava, o que não era fácil, a transpor o porteiro o que mesmo para quase todos era impossível pois havia um: Abre-te Sésamo, que era necessário saber; se, transposto o porteiro, se entrava num vesƟbulozinho à direita, para o qual dava uma escada apertada entre duas paredes, e tão estreita que não podia passar por ela mais do que uma pessoa de cada vez; se os que chegavam a isto não se deixavam aterrar com a cor amarelada de que eram caiadas as paredes da escada e com a cor escura do rodapé, aventurando-se a subir, encontravam primeiro um patamar, depois outro, e chegava-se ao primeiro andar por um corredor, pelo qual a pintura amarela e o rodapé cor de café nos seguiam com pacífico encarniçamento. Tanto a escada como o corredor recebiam luz de duas belas janelas, porém o corredor fazia uma volta e tornava-se escuro. Dobrado este cabo, chegava-se, após alguns passos, em frente de uma porta, mais misteriosa ainda por estar apenas cerrada. Abrindo-se esta porta via-se uma saleta de seis pés quadrados, pouco mais ou menos, ladrilhada, lavada, limpa, fria, forrada de papel com florinhas verdes, de quinze soldos a peça, recebendo uma luz baça de uma grande janela de pequenos caixilhos, que ficava à esquerda, e tomava toda a largura da saleta. Olhava-se, não se via ninguém; escutava-se, e não se ouvia nem um passo nem um murmúrio humano. Eram nuas as paredes, sem móveis a sala, nem uma cadeira se via. Tornava-se a olhar e via-se na parede que ficava em frente da porta uma abertura quadrangular de um pé quadrado, pouco mais ou menos, gradeada com uma grade de ferro, cujos varões se cruzavam uns pelos outros, negros, nodosos, sólidos, formando quadrados, quase diria, malhas, com menos de polegada e meia de diagonal. Chegavam as florinhas de papel com sossego e ordem até aos varões de ferro, sem que este contacto fúnebre as assustasse e as fizesse redemoinhar em desordenada confusão. Supondo que houvesse criatura humana tão admiravelmente magra que tentasse entrar ou sair pela abertura quadrada, aquela grade a impediria. Como, porém, a grade, apesar de não deixar passar o corpo deixaria passar os olhos, isto é, o espírito, haviamna forrado de uma lâmina de lata, encaixada na parede para dentro alguma coisa e cravada de mil buracos mais microscópicos do que os buracos de uma escumadeira. Por baixo desta chapa havia uma abertura inteiramente semelhante à boca de uma caixinha de correio, e do lado direito da grade um cordão, com o qual se puxava uma campainha. Neste caso, se se puxasse pelo cordão, ouvia-se uma voz ali mesmo ao pé, o que causava um estremecimento, perguntar: — Quem está aí? Era uma voz de mulher, uma voz tão doce, que de doce que era se tornava lúgubre. Aqui havia também uma frase mágica, que era necessário saber. Se aquele que tocava a não sabia, calava-se a voz, e a parede tornava-se silenciosa, como se do outro lado estivesse a escuridão aterradora do sepulcro. Se, porém, aquele que tocava, sabia a frase, a voz tornava: — Faça favor de entrar por essa porta, à direita. Dava-se então fé de uma porta envidraçada, coroada por um caixilho, também envidraçado e pintado de cinzento, que ficava à direita defronte da janela. Levantava-se o trinco, transpunha-se a porta e experimentava-se absolutamente a mesma impressão que quando se entra no teatro para uma frisa gradeada, antes de descer a grade e estar aceso o lustre. Achava-se efecƟvamente o que entrava numa espécie de camarote do teatro, apenas alumiado pela vaga claridade que penetrava pelos vidros da porta estreita, mobilada com duas cadeiras velhas e uma esteira desfiada, verdadeiro camarote com seu parapeito a altura suficiente para nele se apoiar qualquer, sustentando uma mesinha de pau preto. Este camarote também era gradeado, com a diferença, porém, de que a grade não era de madeira dourada como na Ópera, mas um monstruoso tecido de varões de ferro horrorosamente entrelaçados e chumbados na parede em enormes chumbadouros, que pareciam punhos fechados. Passados os primeiros minutos, quando a vista principiava a afazer-se a esta claridade crepuscular, como a das adegas, tentava então passar a grade, porém não podia penetrar mais do que seis polegadas além, porque encontrava uma barreira de bambinelas negras, reforçadas e seguras por meio de travessas de pau pintadas de amarelo. Estas bambinelas, que eram de juntas e divididas em compridas lâminas delgadas, tapavam toda a grade e estavam sempre fechadas. Passados alguns instantes, ouvia-se uma voz chamando e dizendo: — Aqui estou. O que me querem? Era uma voz querida, uma voz adorada às vezes. Porém, não se via ninguém; ouvia-se apenas o sussurro de uma respiração. Parecia uma evocação a falar-nos através da tampa de um túmulo. Se aquele que penetrava até ali se achava em certas condições, desejadas, mas sobremodo raras, abria-se em frente dele a estreita lâmina de uma das persianas e a evocação tornava-se uma aparição. Por trás da grade, por trás da persiana, avistava-se, tanto quanto a grade o permiƟa, uma cabeça, a que apenas se via a boca e a barba; o resto cobria-o um véu preto. Entrevia-se um escapulário preto e uma forma mal disƟnta, coberta com uma mortalha negra. Falava-vos aquela cabeça, mas não olhava para vós, nem vos sorria nunca. Por tal modo era disposta a claridade que vinha do lado de trás, que vós a víeis branca e ela via-vos negro. Era um símbolo aquela claridade. No entanto, os olhos procuravam avidamente penetrar por aquela abertura que se Ɵnha feito naquele lugar vedado a todas as vistas. Por entre o vácuo profundo que envolvia aquela forma vesƟda de luto, tentavam os olhos disƟnguir o que havia em roda da aparição. Ao cabo de muito pouco tempo, conhecia-se que se não via nada. O que se via era a escuridão, o vácuo, as trevas, uma neblina de Inverno, de envolta com o vapor de um túmulo, uma espécie de paz que assustava, um silêncio de que não recolhia coisa alguma, nem mesmo alguns suspiros, uma sombra em que se não disƟnguia nada, nem mesmo alguns fantasmas. O que se via era o interior de um claustro. Era o interior daquela melancólica e severa casa chamada o convento das bernardas da Adoração Perpétua. Aquele camarote era o locutório. A primeira voz que vos Ɵnha falado era a voz da rodeira, que estava sempre sentada, imóvel e silenciosa do outro lado da parede, ao pé da abertura quadrada, defendida como por uma dupla viseira, pela grade de ferro e pela chapa crivada de mil buracos. A escuridão em que se achava mergulhado o camarote gradeado, provinha de o locutório não ter janela nenhuma do lado do mundo, tendo uma do lado do convento. Não deviam olhos profanos ver nada daquele lugar sagrado. Todavia, para além daquela sombra havia alguma coisa; havia uma luz; havia uma vida naquela morte. Posto que este convento fosse o mais vedado de todos, vamos tentar penetrar nele, acompanhado do leitor, e dizer, até os devidos termos, coisas que os contistas nunca viram e, por consequência, nunca disseram.

II — A obediência de Martin Verga

Este convento, que em 1824 exisƟa havia já muitos anos na rua do Picpus, era uma comunidade de freiras bernardas da obediência de Martin Verga. Por consequência, as freiras deste convento estavam na dependência, não de Clairvaux, como as bernardas, mas de Cister, como as benediƟnas. Por outras palavras, estas freiras eram súbditas não de S. Bernardo, mas de S. Bento. Todos os que mais ou menos têm manuseado os in folios sabem que MarƟn Verga fundou em 1425 uma congregação de bernarbas-beneditinas, sendo Salamanca a sede da ordem e Alcalá a sua filial. Esta congregação ramificava-se por todos os países católicos da Europa. Não têm nada de insólito na igreja latina estas garras de uma ordem sobre outra. Para não falarmos senão da ordem de S. Bento, que é a de que aqui se trata, diremos que a esta ordem estão sujeitas, sem contar a obediência de MarƟn Verga, quatro congregações: duas em Itália, o Monte Cassino e Santa JusƟna de Pádua, duas em França, Cluny e S. Mauro; e nove ordens, Valombrosa, Grammont, os celesƟnos, os camaldulos, os cartuxos, os humilhados, os olivetanos, os silvestrinos, e, finalmente, os cistercenses; porque Cister, tronco para outras ordens, é apenas um ramo para S. Bento. Cister data de S. Roberto, abade de Molesne na diocese de Langres em 1098. Ora, foi em 529, que o diabo reƟrado para o deserto de Subiaco (estava velho. Ter-se-ia ele feito eremita?) foi expulso do anƟgo templo de Apolo, onde permanecia reputado como S. Bento, que então tinha dezassete anos. Depois da regra dos carmelitas, que andam descalços, trazem um rolo de vimes ao pescoço e nunca se sentam, a regra mais dura é a das bernarbas-benediƟnas de MarƟn Verga. Estas freiras andam vesƟdas de preto com um escapulário, que, segundo a prescrição de S. Bento, sobe até à barba. O seu hábito consiste num vesƟdo de sarja de mangas largas, num grande véu de lã no escapulário, que sobe até à barba, cortado em esquadria sobre o peito, e no capelo, que desce até os olhos. É tudo preto, excepto o capelo, que é branco. As noviças trazem o mesmo hábito, porém todo branco. As professas, além disto, trazem um rosário à cinta. As bernarbas-benediƟnas de MarƟn Verga praƟcam a Adoração Perpétua, como as benediƟnas, chamadas do Sanơssimo Sacramento, as quais no princípio deste século Ɵnham duas casas em Paris, uma no Templo, outra na rua Nova de Santa Genoveva. As religiosas, porém, de quem nos ocupamos, pertenciam a uma ordem inteiramente diferente da das freiras do Sanơssimo Sacramento, enclausuradas na rua Nova de Santa Genoveva e no Templo. Entre uma e outra havia numerosas diferenças na regra e no trajo. As bernardas benediƟnas do PeƟt-Picpus traziam escapulário preto e as benediƟnas do Sacramento da rua Nova de Santa Genoveva traziam-no branco, e além disto, uma custódia vermelha ou de cobre doirado ao peito, de três polegadas de altura, pouco mais ou menos, custódia que as religiosas do PeƟt-Picpus não traziam. A Adoração Perpétua, comum à casa do PeƟt-Picpus e à casa do Templo, deixava, todavia, as duas ordens perfeitamente disƟntas. Somente nesta práƟca é que entre as freiras do Sanơssimo Sacramento e as bernardas de MarƟn Verga havia parecença, do mesmo modo que no estudo e glorificação de todos os mistérios relaƟvos à infância, à vida e à morte de Jesus Cristo e à Virgem é que exisƟa semelhança entre duas ordens inteiramente distintas e por vezes inimigas: a congregação do Oratório de Itália estabelecida em Florença por Filipe de Nery, e a congregação do Oratório de França estabelecida em Paris por Pedro de Bérule. O Oratório de Paris pretendia a primazia, visto que Filipe de Nery, era apenas santo e Bérule cardeal. Voltemos, porém, às durezas da regra espanhola de Martin Verga. As bernardas-benediƟnas desta obediência guardam absƟnência de carne todo o ano, jejuam na Quaresma e em muitos outros dias que lhes são especiais, levantam-se no primeiro sono, desde a uma hora da noite até às três, para lerem o breviário e cantarem maƟnas, deitam-se em lençóis de sarja em qualquer estação e em cima das palhas, não fazem uso de banhos, nunca acendem lume, disciplinam-se todas as sextas-feiras, observam a regra do silêncio, não falam umas com as outras senão nas horas de recreio, que são muito curtas, trazem camisas de burel, durante seis meses, desde 14 de Setembro, dia da exaltação da Santa Cruz, até à Páscoa. Estes seis meses representam uma moderação, pois a regra diz todo o ano; mas esta camisa de burel, nos calores do esƟo insuportável, produzia febres e espasmos nervosos, de modo que foi preciso restringir o seu uso. Mesmo com esta modificação suave, quando as religiosas, a 14 de Setembro, vestem de novo aquela camisa, têm três ou quatro dias de febre. Os seus votos, votos sobremodo agravados pela regra, são obediência, casƟdade e estabilidade na clausura. De três em três anos procede-se à eleição da prioresa, feita pelas madres vocais, assim chamadas por terem voto em capítulo. Uma prioresa não pode ser reeleita mais que duas vezes, o que fixa em nove anos a duração do mais longo reinado possível de uma prioresa. Estas religiosas não vêem nunca o padre celebrante que lhe é oculto sempre por uma sarja estendida diante, que tem nove pés de altura. Ao sermão, quando o pregador está na capela, baixam o véu sobre o rosto; devem sempre falar baixo e andar com os olhos pregados no chão e a cabeça inclinada. Um único homem pode entrar no convento — é o arcebispo da diocese. Há ainda outro, o jardineiro, porém este é sempre um velho, e a fim de que ele ande constantemente só no jardim e as religiosas sejam adverƟdas da sua presença, traz uma campainha no joelho. Estas religiosas estão sujeitas à prioresa e a sua sujeição é absoluta e passiva. É a sujeição canónica em toda a sua abnegação. Como à voz de Cristo, ut voci ChrisƟ, ao primeiro gesto, ao primeiro sinal, ad nutum, ad primum signum logo com prazer, com perseverança, com uma espécie de obediência cega, prompte, hitariter, pet severanter, et cceca quadam obedienƟa, como a lima na mão do arơfice, quasi limam un manibus abri, não podendo ler nem escrever o que quer que seja sem expressa permissão, tegere vel scribere non adiscerif sem sine expressa superioris licentia. Andam à roda, fazem cada uma por sua vez o que elas chamam a reparação. Consiste a reparação em orar por todos os pecados, faltas, desordens, violações, iniquidades e crimes que na terra se cometem. Durante doze horas consecuƟvas, desde as quatro da tarde até às quatro da manhã, ou das quatro da manhã até às quatro da tarde, a irmã que faz a reparação está de joelhos nas pedras diante do Sanơssimo Sacramento, de mãos erguidas e corda ao pescoço. Quando de todo em todo já não pode, prostra-se de bruços, com o rosto no chão e os braços em cruz; nisto consiste todo o seu alívio. Nesta aƟtude, ora por todos os culpados do universo. Esta práƟca chega a tocar as raias do sublime. Como este acto tem lugar diante de um poste, em cima do qual arde uma vela de cera, indisƟntamente se diz fazer a reparação ou estar no poste. Preferem mesmo as religiosas esta última expressão, que encerra em si uma ideia de suplício e aviltamento. Fazer a reparação, é uma função em que toda a alma se absorve. A religiosa, posta em oração diante do poste, não se voltará, ainda que nas suas costas rebente um trovão. Além disto, uma religiosa está sempre de joelhos diante do Sanơssimo Sacramento e cada estação dura uma hora, rendendo-se umas às outras, como os soldados de sentinela. Nisto consiste a Adoração Perpétua. Tanto as prioresas como as simples madres adoptam sempre nomes cheios de uma gravidade parƟcular, que recordam, não os santos ou márƟres da igreja cristã, mas alguns dos momentos da vida de Jesus Cristo, como, por exemplo, a madre NaƟvidade, a madre Conceição, a madre Apresentação, a madre Paixão. Cumpre notar, porém, que não são proibidos os nomes de santos. Alguém que as visita nunca lhes vê mais do que a boca. Todas têm os dentes amarelos. Jamais entrou no convento uma escova de dentes. A limpeza dos dentes fica no cimo de uma escada, em cujos degraus se acha a perda da alma. Elas não dizem de coisa alguma — nem meu nem minha. Não têm nada propriamente seu, nem devem gostar de coisa nenhuma. De tudo dizem nosso, como o nosso rosário; se falassem da camisa, diriam — a nossa camisa. Às vezes afeiçoam-se a algum pequeno objecto, a um livro de horas, a uma relíquia, a uma medalha benzida; porém, mal conhecem que principiam a gostar desse objecto, devem-no dar. Lembram-se do dito de Santa Teresa, a quem uma grande dama, na ocasião em que entrava para a ordem, dizia: Madre, dê-me licença de mandar buscar uma Bíblia em que tenho muito gosto. Ah! Vós tendes gosto em alguma coisa! Nesse caso não entreis nesta casa! A quem quer que seja é proibido ter um quarto, uma habitação a que possa chamar sua. Vivem em celas abertas. Quando se encontram, diz uma: Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento do altar! E a outra responde: Para sempre. A mesma cerimónia se repete, quando uma bate à porta da outra. Mal a da parte de fora toca na porta, ouve-se do outro lado uma voz dizer precipitadamente: Para sempre! Como todas as práƟcas, isto torna-se maquinal com o uso, de modo que às vezes diz uma: Para sempre, antes da outra ter tempo de dizei: Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento do altar! O que na verdade é sobremodo demorado. Entre as freiras da Visitação, a que entra diz: Ave Maria e a outra responde: GraƟa plena. São os seus bons dias, que efectivamente são «cheios de graça». De hora em hora, o sino da igreja do convento dá três badaladas suplementares, e a este sinal, prioresa, madres vocais, professas, conversas, noviças, postulantes, todas interrompem o que estão a dizer, a fazer ou a pensar e dizem todas à uma, se são cinco horas, por exemplo: Às cinco e a toda a hora, bendito e louvado seja o Sanơssimo Sacramento do altar! Se são oito: Às oito e a toda a hora, etc., e assim sucessivamente, consoante a hora que é. Este costume, que tem por fim quebrar o pensamento, voltando-o de conơnuo para Deus, existe em muitas comunidades, com diferença somente na fórmula. Assim, as do Menino Jesus, dizem: Agora e sempre o amor de Jesus inflame o meu coração! As benediƟnas-bernardas de MarƟn Verga, enclausuradas há cinquenta anos no PeƟtPicpus, cantam os oİcios numa salmodia grave, cantochão puro, e sempre em voz cheia, todo o tempo que dura o oİcio. Em todos os lugares em que há um asterisco no missal fazem uma pausa e dizem em voz baixa: Jesus, Maria, José. No oİcio dos defuntos cantam em tom tão baixo, que mal pode descer tanto uma voz de mulher. Daqui resulta um efeito trágico, que apavora a alma. Para sepultura da comunidade haviam as freiras do PeƟt-Picpus mandado fazer um carneiro por baixo do altar-mor. O governo, porém, como elas dizem, não permiƟu que o carneiro recebesse os féretros, e por consequência, Ɵnham de sair do convento, quando morriam, o que as afligia e consternava como uma infracção. Haviam obƟdo, é verdade, ser enterradas a uma hora especial e num lugar reservado no cemitério de Vaugirard, que Ɵnha sido construído em terreno noutro tempo pertencente à comunidade, porém isto não passava de uma consolação medíocre. À quinta-feira estas religiosas ouvem missa cantada, vésperas e todos os oİcios, como nos domingos. Além disto, observam escrupulosamente todos os dias santos dispensados, desconhecidos das pessoas mundanas, que a igreja outrora prodigalizava em França e ainda prodigaliza na Espanha e na Itália. As suas estações na capela são intermináveis. Quanto ao número e duração das suas rezas, não podemos dar melhor ideia destas duas coisas do que citando o dito ingénuo de uma delas: As rezas das postulantes são terríveis, as das noviças ainda, piores e as das professas muito piores ainda. Reúne-se o capítulo uma vez por semana; preside a prioresa e assistem as madres vocais. Cada uma das irmãs vem por sua vez ajoelhar na pedra e confessar em voz alta, diante de todas, as faltas e pecados que naquela semana cometeu. Após cada confissão, consultam-se as madres vocais e infligem em voz alta as penitências. Além da confissão em voz alta, para a qual se reservam as faltas de mais alguma gravidade, têm para as faltas veniais o que elas chamam a culpa. Fazer a culpa é prostrar-se diante da prioresa, até que esta, a quem nenhuma religiosa trata de outro modo senão por nossa mãe, advirta a paciente de que só se pode levantar, batendo uma pancada na sua cadeira coral. A culpa faz-se por qualquer tenuíssima coisa, por quebrar um copo, por ter rasgado um véu, por uma involuntária demora de alguns segundos num oİcio, pela desafinação de uma nota na igreja, etc. Isto basta para que a religiosa a quem tal coisa acontece faça logo a culpa. A culpa, porém, é inteiramente espontânea; é a própria culpada, (julgamos eƟmologicamente própria do lugar a expressão) que a si a inflige, depois de se julgar. Nos domingos e dias santos, os oİcios são salmodiados por quatro madres cantoras, diante de uma estante de quatro faces. Ora, um dia, uma das madres cantoras entoou um salmo, que principiava por um Ecce; porém, como em vez de Ecce, dissesse em voz alta estas três notas: dó, si, sol, sofreu por esta distracção uma culpa que durou todo o tempo do oİcio. A falta tornava-se enorme, porque as outras religiosas tinham-se rido. Quando uma religiosa é chamada ao parlatório, ainda que seja a prioresa, baixa o véu de modo a não deixar ver mais do que a boca. Só a prioresa pode comunicar com estranhos. As outras não podem ver senão os parentes mais próximos e isso ainda raras vezes. Se sucede apresentar-se alguma pessoa de fora para ver alguma religiosa a quem no mundo conheceu ou amou, é necessário uma negociação completa. Se é senhora, pode ser concedida a autorização algumas vezes; vem então a religiosa e aquela fala-lhe através dos posƟgos, que não se abrem senão para uma mãe ou irmã. Escusado é dizer que aos homens tal permissão é recusada sempre. Eis aqui, pois, a regra de S. Bento, agravada por Martin Verga. Não são rosadas, frescas e joviais, como de ordinário as filhas das outras ordens, as religiosas de quem nos ocupamos. São pálidas e no rosto trazem impressos em traços visíveis o selo das austeridades definhadoras, a que pela regra que as rege, estão sujeitas. Só de 1825 a 1830 endoideceram três.

III — Severidades

A que é admiƟda, é pelo menos dois anos postulante e às vezes quatro, ao que se devem acrescentar outros quatro anos de noviciado. É raro, por consequência, que alguma faça os votos definiƟvos antes dos vinte e três ou vinte e quatro. As bernardasbeneditinas de Martin Verga não admitem viúvas na sua ordem. Nas suas celas entregam-se a muitas macerações em segredo, de que nunca devem falar. No dia em que uma noviça faz a sua profissão, adornam-na com os seus mais belos enfeites, põem-lhe uma grinalda de rosas brancas, alisam-lhe e dispõem-lhe o cabelo em caracóis e em seguida a noviça prostra-se e as outras estendem-lhe por cima um véu preto e cantam-lhe o oİcio de defuntos. Dividem-se então as religiosas em duas fileiras; uma passa próximo da noviça, dizendo com acento lasƟmoso: Morreu a nossa irmã! E a outra responde em voz retumbante: Mas vive em Jesus Cristo! Na época em que se passa esta história havia um recolhimento de meninas adjunto ao convento. Recolhimento de donzelas nobres, pela maior parte ricas, entre as quais se disƟnguiam as meninas de Sainte-Aulaire e de Bélissen e uma inglesa que Ɵnha o ilustre nome católico de Talbot. Cresciam estas donzelas, educadas por aquelas religiosas entre quatro paredes, no horror do mundo e do século. Um dia, dizia-nos uma delas: Só o ver as pedras da rua fazia-me estremecer dos pés à cabeça! Andavam vesƟdas de azul com uma touca branca na cabeça e uma pomba figurando o Espírito Santo ao peito, de cobre ou prata dourada. Em certos dias santos de guarda, com especialidade no dia de Santa Marta, concedia-se-lhes, como subido favor e suprema ventura, vesƟrem-se de religiosas e fazerem os ofícios e as práticas de S. Bento em todo o dia. Nos primeiros tempos, as religiosas emprestavam-lhes os seus vesƟdos pretos; porém, como isto parecesse profano, a prioresa proibiu-o e só foi permiƟdo tal emprésƟmo às noviças. É para notar que estas representações, decerto toleradas e favorecidas no convento por um secreto espírito de proseliƟsmo e para fazer antegostar àquelas crianças o santo hábito, fossem uma ventura real e uma verdadeira recreação para as recolhidas. Era para elas um passatempo com que a sua simplicidade engraçava por ser uma coisa nova, uma coisa que as mudava. Cândidas razões infanƟs, que não chegam, todavia, a fazer-nos compreender, a nós mundanos, a felicidade de pegar num hissope e estar de pé horas seguidas a cantar em quarteto diante de uma estante de coro. Nas austeridades, as educandas quase se conformavam com todas as práƟcas do convento. Donzela houve que ainda depois de voltar ao mundo, e após muitos anos de casada, não chegara a perder o costume de dizer apressadamente: Para sempre!, todas as vezes que alguém baƟa à porta. Do mesmo modo que as religiosas, as educandas, só viam os parentes no locutório e nem mesmo as mães obƟnham permissão de as abraçar. Aí vai um exemplo que prova até onde chegava a severidade a este respeito. Um dia, foi uma educanda visitada por sua mãe, que trazia na sua companhia uma outra filhinha de três anos. Debulhava-se esta em lágrimas, porque queria abraçar a irmã. Impossível. Suplicou a mãe que fosse ao menos permiƟdo à criança passar a mãozinha pelos varões da grade para a irmã lha poder beijar. Foi-lhe também recusado, quase escandalosamente.

IV — Alegrias

Aquelas jovens, porém, nem por isso deixavam de encher aquela severa casa de recordações aprazíveis. Em certas horas fulgurava a infância naquele claustro. Ao tocar ao recreio, uma porta girava nos gonzos, os passarinhos exclamavam: «Bom. Aí vêm as crianças!» Inundava aquele jardim, disposto em forma de cruz como uma mortalha, uma irrupção juvenil, e aí principiavam a divagar por aquelas trevas uns rostos radiosos, umas frontes brancas, toda a espécie de auroras. Após os salmos, os sinos, os repiques, as matracas e os oİcios, rebentava súbito todo aquele sussurro de criança, sussurro mais agradável do que o das abelhas. Abria-se a colmeia da alegria e cada qual Ɵrava o mel que lhe pertencia. Brincavam, chamavam umas pelas outras, reuniam-se em grupos, corriam, ou, sentadas a um canto, tagarelavam em suaves colóquios, mostrando a espaços os alvos denƟnhos. De longe os véus vigiavam os risos, as sombras espiavam os raios, mas que importava? Os lábios expandiam-se em risos, as frontes irradiavam de prazer. Aquelas quatro paredes lúgubres Ɵnham também a sua vez de arroubamento, assisƟndo àquele doce redemoinhar de enxames, vagamente branqueadas pelo reflexo de tamanha alegria. Era uma como chuva de rosas que passava pelo meio daquele luto. Folgavam as jovens debaixo da vigilância das religiosas; as vistas, porém, da impecabilidade não incomodam a inocência. Graças àquelas crianças no meio de tantas horas austeras, havia também a hora dos folguedos. As mais pequenas saltavam, as grandes dançavam. Naquele claustro os folguedos eram corados de um reflexo do céu. Não havia coisa mais arrebatadora e augusta do que o livre desabrochar daquelas almas infantis. Homero viria ali sorrir em companhia de Perrault. Naquele escuro jardim havia juventude, saúde, sussurro, gritos, vozearia, prazer e ventura suficientes para desenrugar a fronte de todas as avós, tanto as da epopeia como as do conto, tanto as do trono como as da choupana, desde Hecuba até à Mére-Grand. Ouviram-se naquela casa, mais talvez do que em nenhuma outra, desses ditos de criança que tanta graça têm e que fazem rir com um riso pensaƟvo. Foi entre aquelas quatro fúnebres paredes que uma criança de cinco anos um dia exclamou: Ó minha mãe! Disse-me uma «grande» que só me faltam nove anos e dez meses para sair daqui. Que felicidade! Foi também ali que teve lugar o seguinte memorável diálogo: Uma madre vocal: — Porque chora, filhinha? A criança (de seis anos), soluçando: — Eu disse à Alice que sabia o meu compêndio da história de França e ela disse que eu não o sabia e eu sei-o. Alice, a grande (de nove anos): — E não sabe, não, senhora. A madre: — Então como foi isso, minha filha? Alice: — Disse-me ela que abrisse eu o livro ao acaso e que lhe fizesse a pergunta que lá esƟvesse, que ela era capaz de responder. — E então? — Não foi capaz. — Ora vamos lá. Que lhe perguntou a menina? — Eu abri o livro ao acaso, como ela dizia, perguntei-lhe a primeira coisa que encontrei. — E que pergunta foi? — Foi esta: Que aconteceu depois? Foi ali que a respeito de um periquito algum tanto glutão, pertencente a uma senhora recolhida, foi feita a seguinte observação: Periquito mais lindo! Come: uma torrada tal qual como a gente! Foi no pavimento daquele claustro que alguém achou a seguinte confissão de uma pecadora de sete anos, por ela de antemão escrita para a não esquecer: — Acuso-me, padre, de tersido avarenta. — Acuso-me, padre, de ter cometido adultério. — Acuso-me, padre, de ter erguido os olhos para os senhores. Foi num dos bancos de relva daquele jardim que por uma rosada boca de seis anos foi improvisado o seguinte conto, escutado por alguns olhos azuis de quatro e cinco anos: Uma vez eram três galos numa terra onde havia muitas flores. Pegaram os galos e foram colher flores e meteram-nas nos bolsos. Depois colheram as folhas e puseram-nas às bonecas. Mas nesta terra havia muitos bosques e andava lá um lobo, e vai o lobo comeu os galos. E mais este outro poema: Uma vez deram com um pau num gato. Sabidas as contas, tinha sido Polichinelo que lhe havia batido. Mas, como ele não fez bem ao gato, fez-lhe mal, pegou então uma senhora e mandou-o prender. Foi ali que a uma pequena abandonada, educada por caridade no convento, foi ouvido o seguinte doce e patéƟco dito. Ouvindo, uma vez, estarem as outras a falar de suas mães, murmurou ela no seu canto: — Cá eu, quando nasci, já não tinha mãe. Havia no convento uma rodeira gorda, que andava sempre a correr pelos corredores com o seu molho de chaves à cinta. Era Ágatha o seu nome, porém as «grandes» — para cima de dez anos — chamavamlhe Agatocles. O refeitório, grande sala oblonga e quadrada, que só recebia claridade por um claustro de arquivoltas, ao nível do jardim, era um lugar escuro e húmido, como as crianças dizem, cheio de bichos. Todos os lugares circunvizinhos forneciam para ele o seu conƟngente de insectos. Cada um dos quatro cantos havia recebido, pois, na linguagem das recolhidas, um nome parƟcular e expressivo. Havia o canto das Aranhas, o canto das Lagartas, o dos Bichos-de-conta e o dos Grilos. O dos Grilos ficava ao pé da cozinha e era muito esƟmado por ser mais quente. Do refeitório haviam os nomes passado para o recolhimento, servindo para disƟnguir nele, como no anƟgo colégio de Mazarino, quatro nações. Pertencia cada educanda a alguma das quatro nações, conforme o canto do refeitório em que se sentava às horas de comida. Um dia, andando o arcebispo a fazer a visita pastoral, viu entrar na aula onde se achava uma corada e galante pequenina de belos cabelos louros, e perguntou a outra recolhida, interessante trigueirinha de faces cheias de frescura, que estava ao pé dele: — Quem é aquela? — É uma aranha, Monsenhor. — Oh! E a outra? — É um grilo. — E aquela outra além? — É uma lagarta. — Na verdade? E então a menina o que é? — Eu sou um bicho-de-conta, Monsenhor. Cada caso deste género tem as suas parƟcularidades. No princípio deste século, Ecouen era um desses lugares graciosos e severos, onde, a uma sombra quase augusta, cresce a infância das donzelas. Em Ecouen, pois, para tomar lugar na procissão do Sanơssimo Sacramento, havia disƟnção entre virgens e floristas. Havia também «os pálios» e «os turíbulos», conforme pegavam aos cordões do pálio ou iam a incensar o Sanơssimo Sacramento. Às floristas pertenciam de direito as flores. Na frente iam quatro «virgens». Na manhã desse dia não era raro ouvir-se perguntar pelos dormitórios: — Quem é que é virgem? Madame Campan citava este dito de uma «pequena» de sete anos a uma «grande» de dezasseis que havia de ir na frente da procissão, enquanto que a outra tinha de ir atrás: — Tu és virgem, eu não.

V — Distracções

Por cima da porta do refeitório, via-se escrito em grandes letras pretas essa oração chamada o Padre nosso pequeno, que Ɵnha a virtude de levar a gente direita ao céu: «Padre nosso pequenininho, que Deus fez, que Deus disse e que Deus pôs no Paraíso. A noite, ao deitar, encontrei na minha cama três anjos: um aos pés, dois à cabeceira e a boa Virgem Maria que está no meio diz-me que me deite e que não duvide de nada. O bom Deus é meu pai, a Virgem é minha mãe, os três apóstolos são meus irmãos e as três virgens minhas irmãs. A camisa com que Deus nasceu, estou eu envolta nela; a cruz de Santa Margarida no meu peito está escrita; a senhora Virgem anda pelos campos a chorar por Deus e encontra o senhor S. Jean. Senhor S. Jean de onde vindes vós? Venho do Ave Salus. Não viu por lá o bom Deus? Ele está na árvore da cruz, os pés pendentes, as mãos pregadas, um chapeuzinho de espinhos brancos na cabeça. Quem disser isto três vezes de manhã e três vezes de tarde ganhará o Paraíso.» Em 1827, esta oração caracterísƟca, Ɵnha desaparecido da parede, debaixo de uma tríplice camada de cal. A esta hora acaba ela de se apagar da memória de algumas jovens de então, hoje senhoras de idade avançada. Um grande crucifixo completava a decoração do refeitório, cuja única porta, como julgamos ter dito, dava para o jardim. De uma extremidade do refeitório à outra corriam duas mesas estreitas, guarnecidas cada uma de dois bancos de pau, formando duas compridas linhas paralelas. As paredes eram brancas, as mesas negras; estas duas cores de luto são o único maƟz dos conventos. As comidas eram ásperas, o próprio alimento das crianças, severo. O prato de luxo consisƟa numa pouca de carne com legumes ou de peixe salgado. Todavia, esta medíocre iguaria era uma excepção e só as recolhidas Ɵnham direito a ela. As crianças comiam caladas, vigiadas pela madre de semana, que de quando em quando, se alguma mosca dava para voar ou zunir, contra as prescrições da regra, abria e fechava um livro de pau com estrondo. Este silêncio era temperado com a leitura da vida dos santos, feita em voz alta num pulpitozinho com estante, que ficava aos pés do crucifixo. A leitora era uma educanda grande, no que andavam às semanas. De distância em distância havia em cima da mesa umas terrinas vidradas, em que as próprias educandas lavavam o prato e o talher, e onde às vezes deitavam algum bocado de carne dura ou de peixe estragado, que não podiam comer, porém isto era punido. Chamavam a estas terrinas redondos de água. A criança que quebrasse o silêncio era obrigada a fazer uma «cruz com a língua». Onde? No chão, lambendo o soalho. O pó, o fim de todas as alegrias, era o encarregado de castigar aquelas pobres folhinhas de rosa, rés do crime de tagarelice. Havia no convento um livro, de que nunca foi impresso senão um exemplar único, que era proibido ler. É a regra de S. Bento Arcano, em que não devem penetrar vistas profanas, de quem quer que sejam. Nemo regulas, seu consƟtuƟones nostras, externis cornmitnicabit. Um dia, as recolhidas conseguiram apanhá-lo e principiaram avidamente a lê-lo, leitura frequentes vezes interrompida por terrores de serem surpreendidas, o que as fazia fechá-lo precipitadamente. Deste grande perigo, porém, a que se aventuraram, apenas tiraram um prazer medíocre. Algumas páginas inteligíveis sobre os pecados dos rapazes novos, eis o que acharam de «mais interessante». Apesar da extrema vigilância e da severidade dos casƟgos, às vezes, quando o vento sacudia as enfezadas fruteiras, que orlavam a álea onde elas costumavam brincar, conseguiam apanhar furƟvamente alguma maçã verde, algum damasco imperfeito ou alguma pêra bichosa. Deixarei agora falar uma carta que tenho à vista, carta escrita há vinte e cinco anos pôr uma recolhida, hoje duquesa de... uma das senhoras mais elegantes de Paris. Citá-la-ei textualmente: Esconde a gente a pêra ou a maçã como pode. Quando vai pôr o véu na cama, enquanto não chegam as horas de ceia, mete-as debaixo do travesseiro e depois de deitada come-as, e quando não possa ser na cama, come-as na latrina. Era esta uma das suas mais vivas voluptuosidades. Uma vez, também por ocasião de uma visita do arcebispo ao convento, uma das jovens, Mademoiselle Bouchard, aparentada ainda com os Montmorencys, apostou em como era capaz de pedir um feriado, enormidade numa comunidade tão austera. Foi aceite a aposta, mas nenhuma das que a sustentavam acreditava nela. Chegada a ocasião, quando o arcebispo passava por diante das recolhidas, Mademoiselle Bouchard, com indescritível espanto das suas companheiras, saiu das fileiras e disse: — Monsenhor, um feriado. O senhor de Quélen, que viu a frescura e nacarado maƟz daquela bonita carinha, sorriu-se e disse: — Só um, minha querida menina? Três, se quiser. Concedo-lhe três dias de feriado. Falara o arcebispo, tanto bastava para que a prioresa a nada se pudesse opor. Escândalo para o convento, mas alegria para as recolhidas. Imagine-se o efeito que tal acontecimento produziria. Todavia, aquele melancólico claustro não estava circundado de paredes tão altas, que a vida externa das paixões, que o drama, que o romance mesmo, não penetrasse nele. Para prova, limitar-nos-emos a notar aqui, indicando-o de passagem, um facto real e incontestável, que aliás não tem em si relação nenhuma, nem de algum modo prende com o fio da história que contamos. Mencionámo-lo apenas para completar no espírito do leitor a fisionomia do convento. Por esta mesma época havia no convento uma pessoa misteriosa, que não era religiosa, a quem todas tratavam com grande respeito, dando-lhe o nome de senhora AlberƟna. A respeito dela só se sabia que estava doida e que no mundo passava por morta. Segundo se dizia, esta história encobria arranjos de fortuna necessários para um grande casamento. Esta senhora Ɵnha apenas trinta anos, era trigueira, bastante bela e vago o olhar dos seus grandes olhos pretos. Era objecto de dúvida se ela via ou não. O seu andar mais parecia o de uma sombra que desliza rápida, do que o de uma pessoa viva; jamais se lhe ouvia uma fala e não era bem certo se ela respirava. O nariz Ɵnha-o afilado e lívido, como o dos que exalam o úlƟmo suspiro. Tocar-lhe na mão era como tocar num pedaço de gelo. Aquela mulher tinha uma estranha graça espectral. Onde ela entrasse senƟa-se frio. Um dia uma irmã, vendo-a passar, disse para outra: «Esta senhora passa por morta. Está-o efectivamente, talvez». Albertina servia de tema a cem histórias. Era a eterna curiosidade das recolhidas. AssisƟa aos oİcios numa tribuna que havia na capela chamada a Clarabóia, porque apenas Ɵnha uma abertura circular, uma clarabóia, e era sempre ela só na tribuna porque se podia ver dali, por ficar no primeiro andar, o pregador ou o celebrante, o que era proibido às religiosas. Um dia, estava o púlpito ocupado por um jovem sacerdote da classe elevada da sociedade, o duque de Rohan, par de França, oficial dos mosqueteiros vermelhos em 1815, quando ainda príncipe de Leão, e que depois, em 1830, morreu cardeal e arcebispo de Besançon. Era a primeira vez que o senhor de Rohan pregava no convento de PeƟt-Picpus. De ordinário, AlberƟna assisƟa aos sermões e oİcios com perfeita serenidade, e em completa imobilidade. Naquele dia, porém, mal avistou o senhor de Rohan levantou o corpo e disse em voz que dominou o silêncio da capela: — Ai! Augusto! — Toda a comunidade voltou a cabeça, estupefacta; o pregador ergueu os olhos, porém AlberƟna voltara à sua costumada imobilidade. Por aquele rosto descorado e frio passara um instante como um sopro do mundo exterior, um como clarão de vida, depois desvaneceu-se tudo e a louca tornara-se cadáver, como dantes era. Contudo, aquelas duas palavras deram que falar a tudo o que no convento era capaz de proferir sons arƟculados. Que mulƟdão de coisas naquele — Ai! Augusto! — que torrente de revelações! EfecƟvamente, o senhor de Rohan chamava-se Augusto. Era evidente, pois, que AlberƟna saíra da classe mais elevada da sociedade, pois conhecia o senhor de Rohan, que ela mesma nela ocupava avantajado lugar, pois que tão familiarmente falava de tão grande personagem e que Ɵnha com ele relações de parentesco, mas em todo o caso, e com toda a certeza, relações muito ínƟmas, pois que lhe sabia o «nome de baptismo». Entre as pessoas que iam ao convento, havia duas severíssimas duquesas, que o visitavam frequentemente, penetrando nele decerto em virtude do privilégio Magnates mulieres. Era incrível o medo que as duas velhas senhoras incuƟam às recolhidas. Quando elas passavam, todas as jovens tremiam e baixavam os olhos. O senhor de Rohan, porém, era, sem que tal coisa soubesse, o objecto da atenção das recolhidas. Apesar de vigário geral do arcebispado de Paris, cargo para que, por essa ocasião, acabava de ser nomeado, enquanto não obƟnha a mitra episcopal, costumava ir frequentes vezes cantar nos ofícios da capela das religiosas do Petit-Picpus. Nenhuma das jovens reclusas o podia ver por causa da corƟna de sarja, mas o senhor de Rohan Ɵnha uma voz agradável e algum tanto delgada, que elas haviam chegado a conhecer e a disƟnguir. Fora mosqueteiro, e depois diziam que era muito namorador, que trazia os seus belos cabelos castanhos sempre muito bem penteados dispostos em rolo em roda da cabeça, e um magnífico cinto de melania, e que a sua baƟna negra Ɵnha o talho mais elegante do mundo. O senhor de Rohan preocupava, pois, em extremo todas aquelas imaginações de dezasseis anos. Nenhum ruído exterior penetrava no convento. Todavia, um ano chegou até lá o som de uma flauta. Foi um sucesso, sucesso de que as recolhidas de então ainda hoje se lembram. Era alguém da vizinhança que tocava flauta. A canção, hoje sobremodo anƟga, que o desconhecido músico tocava, era sempre a mesma: — Vem reinar em minha alma, Zelbuthea — e ouvia-se duas ou três vezes por dia. As jovens passavam horas inteiras a escutá-la, as madres vocais andavam como que fora de si, trabalhavam os miolos, choviam os casƟgos. Durou isto muitos meses. Todas as recolhidas estavam mais ou menos namoradas do músico desconhecido. Cada qual se imaginava a Zelbuthea da canção. O som da flauta vinha do lado da rua do Muro Direito; tudo elas dariam, tudo arriscariam e tentariam para ver, embora por um só segundo, para entrever, para avistar o «rapaz» que tão deliciosamente tocava flauta, e que ao mesmo tempo, sem o saber, tocava todas aquelas almas. Houve algumas que se escaparam por uma porta de servenƟa e que subiram ao terceiro andar, que dava para a rua do Muro Direito, a ver se o avistavam pelos buracos das grades. Impossível. Uma chegou a passar o braço pela grade que lhe ficava superior à cabeça, e a agitar o seu lenço branco. Duas foram ainda mais ousadas. Arranjaram a subir com grande risco a um telhado e conseguiram, finalmente, ver o «rapaz». Era um fidalgo emigrado, velho, cego e indigente, que se punha a tocar flauta na sua água-furtada para matar o tempo

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