I.
CORALINE DESCOBRIU A PORTA pouco depois de terem se mudado para a casa.
Tratava-se de uma casa muito antiga — com um sótão sob o telhado, um porão sob o chão
e um jardim coberto de vegetação e de árvores grandes e velhas.
A casa não pertencia inteiramente à família de Coraline — era grande demais para isso.
A família possuía apenas uma parte.
Outras pessoas habitavam a velha casa.
A senhorita Spink e a senhorita Forcible moravam no apartamento abaixo do apartamento
de Coraline, no andar térreo. Eram ambas velhas e rechonchudas e viviam em seu apartamento
acompanhadas de alguns terriers escoceses cada vez mais velhos, que tinham nomes como
Hamish, Andrew e Jock. Há muitos e muitos anos, a senhorita Spink e a senhorita Forcible
tinham sido atrizes, como a senhorita Spink explicou a Coraline quando a conheceu.
— Sabe, Caroline — disse a senhorita Spink, pronunciando errado o nome de Coraline.
— A senhorita Forcible e eu éramos atrizes famosas em nosso tempo. Nós pisávamos a
ribalta. Oh, não deixe Hamish comer o bolo de frutas ou ficará acordado a noite inteira com
dor de barriga.
— É Coraline, não Caroline. Coraline — repetiu Coraline.
No apartamento acima do apartamento de Coraline, sob o telhado, morava um velho
maluco que tinha bigodes enormes. Contou a Coraline que estava treinando um circo de ratos.
Não deixava que ninguém visse o circo.
— Um dia, pequena Caroline, quando tudo estiver pronto, o mundo inteiro conhecerá as
maravilhas do meu circo de ratos. Está me perguntando por que não pode vê-lo agora? Foi
isso que perguntou?
— Não — Coraline respondeu calmamente —, pedi para o senhor não me chamar de
Caroline. É Coraline.
— O motivo por que você não pode ver o circo de ratos — prosseguiu o homem no alto
da escada — é que os ratos ainda não estão prontos, nem ensaiados. Além disso, recusam-se a
executar as canções que escrevi para eles. Todas as canções que escrevi pedem para tocar
bum-papá bum-papá. Mas os ratos brancos só tocam tlim-tlum, assim. Estou pensando em
experimentar tipos diferentes de queijo com eles.
Coraline não achou que houvesse realmente um circo de ratos. Achou que o velho estava
provavelmente inventando aquilo.
No dia seguinte ao dia da mudança, Coraline começou a exploração.
Explorou o jardim. Era um grande jardim: bem nos fundos ficava uma velha quadra de
tênis; mas ninguém na casa jogava tênis, a cerca em volta da quadra tinha furos e a rede já
estava quase toda apodrecida. Havia um velho canteiro de rosas, repleto de roseiras
atrofiadas e com as folhas roídas por insetos. Havia ainda um recanto cheio de pedras e um
anel de fadas formado por cogumelos marrons venenosos e moles que exalavam um cheiro
horrível quando pisados.
Havia também um poço. No dia em que a família de Coraline se mudou para lá, a
senhorita Spink e a senhorita Forcible insistiram em dizer a Coraline o quanto o poço era
perigoso, prevenindo-a para que se mantivesse decididamente longe dele. Por causa disso,
Coraline fez questão de explorá-lo, para saber onde ele se encontrava e, dessa forma, poder
evitá-lo apropriadamente.
Encontrou-o no terceiro dia, em meio a uma campina de vegetação rebelde, ao lado da
quadra de tênis e atrás de um arvoredo — um círculo de tijolos baixo, quase escondido pela
grama alta. Alguém o cobrira com tábuas de madeira, para impedir que caíssem nele. Havia
um pequeno nó na madeira de uma das tábuas e Coraline passou toda uma tarde jogando seixos
e bolotas através do buraco, esperando e contando até ouvir o plop que faziam quando
atingiam a água bem lá embaixo.
Coraline também explorou o local em busca de animais. Encontrou um ouriço, uma pele
de cobra (mas sem nenhuma cobra), uma pedra igualzinha a uma rã e uma rã igualzinha a uma
pedra.
Havia ainda um gato preto altivo que se sentava sobre os muros e os tocos de árvore a
observá-la, mas que escapulia quando ela se aproximava para tentar brincar.
Foi assim que Coraline passou suas duas primeiras semanas na casa — explorando o
jardim e o terreno em volta.
Sua mãe a fazia entrar para o jantar e o almoço. E Coraline tinha que se agasalhar bem
antes de sair, pois o verão daquele ano estava muito frio; mas ela saía, explorando todo dia,
até o dia em que choveu, e Coraline teve que ficar dentro de casa.
— O que eu faço? — indagou Coraline.
— Leia um livro — sugeriu a mãe. — Assista a um vídeo. Brinque com seus brinquedos.
Vá perturbar a senhorita Spink ou a senhorita Forcible, ou o velho maluco do andar de cima.
— Não — disse Coraline. — Não quero fazer nada disso. Quero explorar.
— Não me importo realmente com o que você vai fazer — disse a mãe de Coraline —,
desde que não bagunce nada.
Coraline foi até a janela e observou a chuva cair. Não era o tipo de chuva sob a qual se
podia caminhar — tratava-se do outro tipo, o tipo que se atira do céu e se esparrama por onde
cai. Era uma chuva determinada, e, no momento, sua determinação era transformar o jardim em
uma sopa molhada e enlameada.
Coraline já assistira a todos os vídeos. Cansara-se de seus brinquedos e lera todos os
seus livros.
Ligou a televisão. Pulou de canal em canal, mas só havia homens de terno falando sobre o
mercado financeiro e programas de entrevista de auditório. Finalmente achou algo para ver:
era a parte final de um programa de história natural sobre uma coisa chamada coloração
protetora. Viu animais, pássaros e insetos que se disfarçavam de folhas, galhos ou de outros
animais para escapar de coisas que podiam feri-los. Coraline gostou do programa, mas ele
terminou logo, e seguiu-se outro programa sobre uma fábrica de bolos.
Estava na hora de ir falar com seu pai.
O pai de Coraline estava em casa. Tanto seu pai quanto sua mãe trabalhavam fazendo
coisas no computador, ou seja, ficavam bastante tempo em casa. Cada um tinha seu próprio
estúdio.
— Olá, Coraline — saudou ele sem se virar quando ela entrou.
— Mmm — murmurou Coraline. — Está chovendo.
— É — disse o pai. — Está caindo um pé d’água.
— Não — disse Coraline. — Está apenas chovendo. Posso sair?
— O que sua mãe acha?
— Ela disse: você não vai sair com um tempo desses, Coraline Jones.
— Então, não.
— Mas quero continuar minha exploração.
— Então explore o apartamento — sugeriu o pai. — Olhe, aqui tem um pedaço de papel e
uma caneta. Conte todas as portas e janelas. Faça uma lista de tudo o que for azul. Organize
uma expedição de busca ao aquecedor de água central. E me deixe trabalhar em paz.
— Posso ir até a sala de visitas? — A sala de visitas era o lugar onde os Jones
mantinham a mobília cara (e desconfortável) que a avó de Coraline lhes deixara quando
morreu. Coraline não tinha permissão de entrar lá. Ninguém ia lá. Era reservada para ocasiões
especiais.
— Se não fizer bagunça. E não toque em nada.
Coraline considerou tudo cuidadosamente. Então, pegou o papel e a caneta e partiu para
explorar o interior do apartamento.
Descobriu o aquecedor de água central (ficava dentro de um armário na cozinha).
Contou tudo o que era azul (153).
Contou as janelas (21).
Contou as portas (14).
Das portas que encontrou, treze abriam e fechavam. A outra — a porta grande e de
madeira escura esculpida, no canto mais afastado da sala de visitas — estava trancada.
Perguntou à sua mãe:
— Onde vai dar essa porta?
— Em lugar nenhum, querida.
— Mas tem que dar em algum lugar.
Sua mãe balançou a cabeça.
— Veja — disse a Coraline.
Estendeu o braço e pegou uma corrente de chaves no alto do batente da porta da cozinha.
Separou as chaves cuidadosamente e escolheu a maior, mais velha, mais escura e mais
enferrujada. Foram em seguida para a sala de visitas. Ela destrancou a porta com a chave.
A porta abriu-se.
Sua mãe estava certa. A porta não dava em parte alguma. Abria-se sobre uma parede de
tijolos.
— Quando esse lugar ainda era uma única e mesma casa — explicou a mãe de Coraline
—, essa porta abria para algum lugar. Quando dividiram a casa em apartamentos, eles
simplesmente a bloquearam com tijolos. Do lado de lá, fica o apartamento vago da outra parte
da casa, o que ainda está à venda.
Ela fechou a porta e recolocou a corrente de chaves no alto do batente da cozinha.
— Você não trancou a porta — observou Coraline. A mãe encolheu os ombros.
— Por que deveria? — perguntou. — Não vai a parte alguma.
Coraline não disse nada.
Era quase noite lá fora e a chuva ainda caía, tamborilando contra as janelas e borrando as
luzes dos automóveis na rua.
O pai de Coraline parou de trabalhar e preparou o jantar para todos.
Coraline revoltou-se.
— Papai — disse —, você experimentou outra receita.
— É um ensopado de alho-poró e batata, salpicado com estragão e queijo Gruyère
derretido — admitiu o pai.
Coraline suspirou. Então foi até o freezer e pegou batatas fritas e uma minipizza de
microondas.
— Você sabe que eu não gosto de experimentar receitas — disse ao pai, enquanto seu
jantar girava em círculos e os pequenos números vermelhos no forno de microondas iam
diminuindo até chegar a zero.
— Se você provar, talvez goste — disse o pai de Coraline, mas ela balançou a cabeça.
Naquela noite, Coraline ficou acordada na cama. A chuva passara. Estava quase
adormecendo, quando algo fez t-t-t-t-t-t. Coraline sentou-se na cama.
O barulho prosseguiu kriii...... aaaak
Coraline levantou-se da cama e olhou pelo corredor, mas não viu nada de estranho.
Percorreu o corredor até o final. Do quarto de seus pais, vinha um ronco baixo — era seu pai
— e um balbucio ocasional — era sua mãe.
Coraline pensou com seus botões se não teria sonhado com aquilo, fosse lá o que fosse.
Algo moveu-se.
Era pouco mais do que uma sombra e percorreu rapidamente o corredor escurecido como
um pequeno fragmento de noite.
Coraline torceu para que não fosse uma aranha. As aranhas causavam-lhe intenso
desconforto.
A forma negra entrou na sala de visitas e Coraline seguiu-a um tanto nervosamente.
A sala estava escura. A única luz vinha do corredor e Coraline, que estava em pé no vão
da porta, projetava uma sombra enorme e distorcida sobre o tapete da sala — parecia uma
mulher magra e gigantesca.
Perguntava-se justamente se deveria ou não acender a luz, quando viu a forma negra
esgueirar-se lentamente de sob o sofá, fazer uma pausa e, em seguida, precipitar-se,
silenciosa, pelo tapete em direção ao canto mais afastado da sala.
Não havia móveis naquele canto.
Coraline acendeu a luz.
Não havia nada no canto. Nada a não ser a velha porta que abria para a parede de tijolos.
Coraline tinha certeza de que sua mãe havia fechado a porta, no entanto, esta achava-se
ligeiramente aberta agora. Apenas uma fresta. Coraline aproximou-se e olhou para dentro. Não
havia nada lá — apenas uma parede feita de tijolos vermelhos.
Coraline fechou a velha porta de madeira, apagou a luz e foi para a cama.
Sonhou com formas negras que deslizavam de um lugar para outro, evitando a luz até que
todas se reuniam sob a lua. Pequeninas formas negras, com pequeninos olhos vermelhos e
dentes amarelos afiados.
Começaram a cantar:
Somos pequenos, porém muitos
Muitos somos, bem pequenos
Ao topo já vimos te ergueres
Ao tombo nós assistiremos.
Suas vozes eram agudas, sussurrantes e ligeiramente gemidas. Faziam Coraline sentir-se
inquieta.
Depois, Coraline sonhou com alguns comerciais e então não sonhou mais nada.
II
II.
NO DIA SEGUINTE, a chuva havia parado, mas uma névoa densa e branca descera sobre
a casa.
— Vou dar uma volta — disse Coraline.
— Não se afaste demais — recomendou sua mãe. — E agasalhe-se bem.
Coraline vestiu seu casaco azul de capuz, seu cachecol vermelho e as galochas amarelas.
Saiu. A senhorita Spink estava passeando com seus cachorros.
— Olá, Caroline — falou a senhorita Spink. — Que tempo horroroso.
— Sim — respondeu Coraline.
— Sabe, uma vez eu interpretei Portia — contou a senhorita Spink. — A senhorita
Forcible fala da sua Ofélia, mas era a minha Portia a que as pessoas vinham assistir. Quando
pisávamos a ribalta.
A senhorita Spink estava embrulhada em suéteres e casacos, parecendo assim menor e
mais redonda do que nunca. Lembrava um grande ovo macio. Estava usando óculos de lentes
grossas que faziam seus olhos parecerem imensos.
— Costumavam mandar flores para mim, em meu camarim. Eles costumavam — disse ela.
— Quem costumava? — perguntou Coraline.
A senhorita Spink olhou ao redor cautelosamente, voltando a cabeça primeiro para um
lado depois para o outro, observando com atenção por entre a neblina, como se alguém
pudesse estar escutando.
— Os homens — sussurrou. Então, puxou os cachorros firmemente pela coleira para
aquietá-los e foi-se embora bamboleando em direção à casa.
Coraline prosseguiu a caminhada.
Tinha completado três quartos do caminho em volta da casa, quando avistou a senhorita
Forcible em pé, junto à porta do apartamento que compartilhava com a senhorita Spink.
— Viu a senhorita Spink, Caroline?
Coraline respondeu que sim e que a senhorita Spink estava passeando com os cachorros.
— Espero realmente que ela não se perca — isso poderia provocar-lhe uma crise de
bronquite, você vai ver — disse a senhorita Forcible. — É preciso ser um explorador para se
guiar nessa neblina.
— Eu sou uma exploradora — afirmou Coraline.
— Claro que sim, amoreco — respondeu a senhorita Forcible. — Agora, não vá se
perder.
Coraline continuou a andar pelos jardins em meio à névoa cinzenta. Mantinha a casa
sempre à vista. Depois de uns dez minutos de caminhada, estava de volta ao ponto onde havia
começado.
Os cabelos caíam disformes e molhados sobre seus olhos e seu rosto parecia um pouco
úmido.
— Olá! Caroline! — chamou o velho maluco do andar de cima.
— Oh, olá — respondeu Coraline.
Mal conseguia enxergar o velho através do nevoeiro.
Ele desceu os degraus da escada externa que levava ao seu apartamento, passando em
frente à porta de entrada de Coraline. Desceu vagarosamente. Coraline esperou-o ao pé da
escada.
— Os ratos não gostam da neblina — disse ele. — Faz com que seus bigodes se curvem.
— Também não gosto muito da neblina — admitiu Coraline. O velho abaixou-se na
direção de Coraline, chegou tão perto que as pontas do seu bigode faziam cócegas na orelha
dela.
— Os ratos têm uma mensagem para você — sussurrou. Coraline não sabia o que dizer.
— A mensagem é a seguinte: Não passe pela porta. — Fez uma pausa. — Isso faz algum
sentido para você?
— Não — respondeu Coraline. O velho encolheu os ombros.
— São esquisitos, os ratos. Entendem as coisas errado. Entenderam seu nome errado,
sabe? Insistem em chamá-la Coraline, e não Caroline. De modo algum Caroline.
O velho apanhou uma garrafa de leite que estava ao pé da escada e começou a subir de
volta para seu apartamento no sótão.
Coraline entrou em casa. Sua mãe estava trabalhando em seu estúdio. O estúdio cheirava
a flores.
— O que eu faço? — perguntou Coraline.
— Quando recomeçam as aulas? — perguntou sua mãe.
— Na semana que vem — informou Coraline.
— Hmm — disse a mãe. — Acho que vou ter que comprar um uniforme novo para você.
Lembre-me, querida, senão vou esquecer — e voltou a digitar coisas na tela do computador.
— O que eu faço? — repetiu Coraline.
— Desenhe algo. — Sua mãe passou-lhe uma folha de papel e uma caneta esferográfica.
Coraline tentou desenhar a névoa. Dez minutos depois, ainda tinha uma folha branca de
papel com
escrito em um dos cantos, em letras ligeiramente onduladas. Resmungou e passou o papel
para a mãe.
— Mmm. Muito moderno, querida — avaliou a mãe de Coraline.
Coraline dirigiu-se cautelosamente até a sala de visitas e tentou abrir a velha porta no
canto. Estava trancada. Pensou que sua mãe a tivesse trancado novamente. Encolheu os
ombros.
Foi ver seu pai.
Tinha as costas voltadas para a porta, enquanto digitava no computador.
— Pode dar a meia-volta — disse bem humoradamente quando ela entrou.
— Estou entediada — queixou-se Coraline.
— Aprenda a sapatear — sugeriu o pai, sem virar-se. Coraline balançou a cabeça.
— Por que você não vem brincar comigo? — pediu.
— Ocupado — respondeu. — Trabalhando — acrescentou. Ainda não tinha se voltado
para vê-la. — Por que não vai perturbar a senhorita Spink e a senhorita Forcible?
Coraline vestiu o casaco, ajeitou o capuz e saiu de casa. Desceu as escadas. Tocou a
campainha do apartamento da senhorita Spink e da senhorita Forcible. Podia ouvir o latido
frenético dos cães escoceses enquanto corriam para a saleta de entrada. Depois de alguns
instantes, a senhorita Spink abriu a porta.
— Ah, é você, Caroline — exclamou. — Angus, Hamish, Bruce, já para o chão,
amorecos. É só a Caroline. Entre, querida. Aceita uma xícara de chá?
O apartamento cheirava a lustra-móveis e cães.
— Sim, por favor — agradeceu Coraline. A senhorita Spink conduziu-a a uma saleta
empoeirada, a qual chamava sala de estar. Nas paredes, havia fotografias em preto-e-branco
de mulheres muito bonitas assim como programas de teatro emoldurados. A senhorita Forcible
estava sentada em uma das poltronas, concentrada em seu tricô.
Serviram chá a Coraline em uma pequena xícara de finíssima porcelana rosa e um pires.
Ofereceram-lhe também um biscoito seco para acompanhar o chá.
A senhorita Forcible olhou para a senhorita Spink, apanhou seu tricô e respirou fundo:
— De qualquer maneira, April. Como estava dizendo, você precisa admitir: ainda há vida
no velho cachorro.
— Miriam, querida, nenhuma de nós é mais tão jovem.
— Madame Arcati — respondeu a senhorita Forcible. — A enfermeira em Romeu. Lady
Bracknell. Papéis de personalidade. Não podem aposentar você do palco.
— Bem, Miriam, nós concordamos — disse a senhorita Spink. Coraline perguntava-se se
elas não teriam esquecido de sua presença. Não estavam agindo com muito sentido. Chegou à
conclusão de que aquela discussão era tão velha e confortável quanto uma poltrona, o tipo de
discussão que ninguém nunca perde ou ganha e que pode continuar indefinidamente se ambas
as partes assim desejarem.
Coraline sorveu um pequeno gole de chá.
— Posso ler as folhas, se quiser — disse a senhorita Spink à Coraline.
— Como assim? — perguntou Coraline.
— As folhas do chá, querida. Vou ler seu futuro.
Coraline passou sua xícara para a senhorita Spink. A senhorita Spink examinou bem de
perto as folhas de chá preto no fundo. Comprimiu os lábios.
— Sabe, Caroline — disse após alguns momentos —, você está correndo sério perigo.
A senhorita Forcible bufou, deixando o tricô de lado.
— Não seja tola, April. Pare de amedrontar a menina. Sua vista está ruim. Passe-me aqui
a xícara, filha.
Coraline levou a xícara até a senhorita Forcible. A senhorita Forcible olhou
cuidadosamente dentro da xícara, balançou a cabeça e olhou mais uma vez.
— Oh, querida. Você tem razão, April. Ela está correndo perigo.
— Está vendo, Miriam — exclamou a senhorita Spink triunfalmente. — Meus olhos estão
tão bons como sempre...
— Que tipo de perigo estou correndo? — perguntou Coraline. As senhoritas Spink e
Forcible olharam para ela surpresas.
— Aqui não diz — respondeu a senhorita Spink. — As folhas de chá não são confiáveis
para esse tipo de coisa. Não, realmente. São boas para as generalidades, não para os detalhes.
— Então, o que devo fazer? — perguntou Coraline, que estava ligeiramente alarmada com
o fato.
— Não use verde em seu camarim — sugeriu a senhorita Spink.
— Não mencione a peça escocesa — acrescentou a senhorita Forcible.
Coraline se perguntou por que, dentre os adultos que conhecera, tão poucos agiam com
sentido. Às vezes se indagava com quem eles achavam que estavam falando.
— E tome muito, muito cuidado — disse a senhorita Spink. Levantou-se da poltrona e foi
até a lareira. Sobre o console, havia um pote pequeno. Destampou-o e começou a retirar
coisas de dentro dele: ura pequeno pato de porcelana, um dedal, uma estranha moedinha de
latão, dois clipes de papel e uma pedra com um furo no meio.
Passou a pedra com o furo no meio para Coraline.
— Para que serve? — perguntou Coraline. O furo atravessava todo o meio da pedra.
Coraline segurou a pedra contra a janela e olhou através dela.
— Pode ser que ajude — disse a senhorita Spink. — É boa para coisas ruins, às vezes.
Coraline vestiu o casaco, despediu-se das senhoritas Spink e Forcible e dos cachorros e
saiu.
A névoa envolvia a casa como uma cegueira. Coraline caminhou lentamente até os
degraus que levavam ao apartamento de sua família, então parou e olhou ao seu redor.
Em meio à névoa, o mundo era fantasmagórico.
Em perigo? resmungou Coraline. Isto soava-lhe emocionante. Não soava como algo ruim.
De modo algum.
Coraline subiu a escada de volta, o punho cerrado em torno da sua nova pedra.
III.
NO DIA SEGUINTE, o sol brilhava e a mãe de Coraline levou-a até a cidade grande mais
próxima para comprar uniformes. Deixaram o pai de Coraline na estação de trem. Ia passar o
dia em Londres para encontrar algumas pessoas.
Coraline acenou-lhe.
Foram até a loja de departamentos para comprar roupas de escola.
Coraline avistou algumas luvas verde-fosforescentes que lhe agradaram muito. Sua mãe
recusou-se a comprá-las, preferindo, em vez disso, meias brancas, roupas de baixo azulmarinho
para a escola, quatro blusas de cor cinzenta e uma saia cinza escuro.
— Mas, mamãe, todo mundo na escola tem blusas cinzentas e tudo o mais. Ninguém tem
luvas verdes. Eu poderia ser a única.
A mãe ignorou-a; estava conversando com uma funcionária da loja. Falavam sobre qual
tipo de suéter deveria levar para Coraline e concordaram que a melhor coisa a fazer era levar
um suéter constrangedoramente grande e largo, na esperança de que um dia ela cresceria e o
preencheria.
Coraline saiu perambulando e viu uma vitrine de galochas com formas de sapo, pato e
coelho.
Depois perambulou de volta.
— Coraline? Ah, aí está você. Onde você se meteu?
— Fui seqüestrada por alienígenas — respondeu Coraline. — Vieram do espaço sideral
com armas de raios, mas consegui enganá-los pondo uma peruca e rindo com um sotaque
estrangeiro, e escapei.
— Está bem, querida. Agora, que tal comprarmos alguns prendedores novos de cabelo?
— Não.
— Bem, digamos meia dúzia para garantir — disse a mãe. Coraline não respondeu.
No carro, no caminho de volta, Coraline perguntou:
— O que que tem lá no apartamento vazio?
— Não sei. Nada, espero. Provavelmente se parece com nosso apartamento antes de nos
mudarmos. Cômodos vazios.
— Acha que dá para chegar lá através do nosso apartamento?
— Não creio, a não ser que consiga andar através de tijolos, querida.
— Ah.
Chegaram em casa por volta da hora do almoço. O sol brilhava, apesar de o dia estar frio.
A mãe de Coraline espiou na geladeira. Encontrou um pequeno tomate tristonho e um pedaço
de queijo com coisas verdes crescendo na superfície. Na caixa de pão, restara apenas uma
casca.
— É melhor correr até o mercado e comprar alguns bolinhos de peixe ou algo parecido
— disse a mãe. — Quer vir comigo?
— Não — respondeu Coraline.
— Como quiser — disse sua mãe e partiu. Em seguida, voltou, pegou sua carteira e as
chaves do carro e saiu novamente.
Coraline estava entediada.
Folheou um livro que sua mãe estava lendo sobre povos nativos de um país distante e
como eles, todos os dias, pegavam retalhos de seda branca e desenhavam sobre os mesmos
com cera. Em seguida, mergulhavam os retalhos em tintas, desenhavam novamente com cera e
tingiam ainda mais um pouco. Depois removiam a cera, fervendo a seda em água quente, e
finalmente jogavam os retalhos, agora lindos, no fogo para queimá-los até virarem cinzas.
Parecia-lhe algo particularmente inútil, mas torcia para que eles achassem divertido.
Continuava entediada e sua mãe ainda não tinha voltado.
Pegou uma cadeira e empurrou-a até a porta da cozinha. Subiu e esticou o braço. Desceu e
foi apanhar uma vassoura no armário de vassouras. Subiu novamente na cadeira e esticou o
braço segurando a vassoura.
Chink.
Desceu da cadeira e apanhou as chaves. Sorriu vitoriosamente. Em seguida, encostou a
vassoura contra a parede e dirigiu-se à sala de visitas.
A família não usava a sala de visitas. Haviam herdado a mobília da avó de Coraline,
juntamente com uma mesa de centro de madeira, uma mesinha lateral, um cinzeiro de vidro
pesado e uma pintura a óleo de uma bandeja de frutas. Coraline jamais conseguira entender
por que alguém quisera pintar uma bandeja de frutas. Fora isso, a sala estava vazia: não havia
bugigangas sobre o console da lareira, nem estátuas, nem relógios; nada que tornasse a sala
aconchegante ou habitada.
A velha chave escura era mais fria do que todas as outras. Coraline enfiou-a na fechadura.
Ela girou facilmente, com umclunk satisfatório.
Coraline parou e escutou. Sabia que estava fazendo algo errado e tentou ouvir se sua mãe
estava voltando, mas não ouviu nada. Então, pôs a mão na maçaneta, girou-a e finalmente abriu
a porta.
Ela dava para um corredor escuro. Os tijolos haviam desaparecido como se nunca
tivessem estado lá. Um odor frio e bolorento passava pelo vão aberto: cheirava a alguma
coisa muito velha e muito lenta.
Coraline atravessou a porta.
Imaginava como seria o apartamento vago — se é que o corredor levava até ele.
Percorreu o corredor apreensivamente. Algo nele lhe parecia muito familiar.
O tapete sob seus pés era o mesmo tapete que tinham em seu apartamento. O papel de
parede era o mesmo. O quadro pendurado no corredor era o mesmo que havia pendurado no
corredor em sua casa.
Sabia onde estava: estava em casa. Não tinha saído de lá.
Balançou a cabeça, sentindo-se confusa.
Olhou atentamente para o quadro pendurado na parede: não, não era exatamente o mesmo.
O quadro que tinham no corredor era de um menino em roupas antigas, observando algumas
bolhas. Mas agora, a expressão no rosto do menino era diferente — olhava as bolhas como se
planejasse fazer alguma maldade com elas. E havia algo peculiar em seus olhos.
Coraline observou atentamente os olhos do menino, tentando entender qual era exatamente
a diferença.
Estava a ponto de conseguir, quando alguém chamou:
— Coraline?
Parecia a voz de sua mãe. Coraline entrou na cozinha, de onde partira a voz. Uma mulher
estava em pé, de costas para a porta. Lembrava um pouco a mãe de Coraline. Apenas...
Apenas sua pele era branca como papel.
Apenas ela era mais alta e mais magra.
Apenas seus dedos eram demasiado longos e não paravam nunca de mexer, e suas unhas
vermelho-escuras eram curvadas e afiadas.
— Coraline? — disse a mulher. — É você?
E, então, voltou-se para ela. Seus olhos eram grandes botões negros.
— Hora do almoço, Coraline — disse.
— Quem é você? — perguntou Coraline.
— Sou sua outra mãe — respondeu a mulher. — Vá dizer ao seu outro pai que o almoço
está pronto. — Ela abriu a porta do forno e Coraline se deu conta, de repente, do quanto
estava faminta. O cheiro era maravilhoso. — Bem, vá logo.
Coraline percorreu o corredor que levava ao estúdio de seu pai. Abriu a porta. Havia um
homem sentado diante do teclado, de costas para ela.
— Olá — disse Coraline. — Quer-quer dizer, ela pediu para avisar que o almoço está
pronto.
O homem virou-se.
Seus olhos eram botões grandes, negros e brilhantes.
— Olá, Coraline — disse. — Estou morto de fome.
Levantou-se e acompanhou Coraline até a cozinha. Sentaram-se à mesa, e a outra mãe de
Coraline serviu o almoço. Um frango assado enorme e dourado com batatas fritas e pequenas
ervilhas verdes. Coraline despejava a comida pela boca. Tinha um sabor maravilhoso.
— Há muito tempo que esperamos por você — disse o outro pai de Coraline.
— Por mim?
— Sim — disse a outra mãe. — Não é a mesma coisa aqui sem você. Mas sabíamos que
viria um dia, e, então, seríamos uma família de verdade. Aceita mais um pouco de frango?
Era o melhor frango que Coraline já havia comido. Às vezes, sua mãe fazia frango, mas
era sempre congelado ou industrializado. Ficava muito ressecado e nunca tinha gosto. Quando
o pai de Coraline preparava frango, comprava frango de verdade, mas fazia coisas estranhas
com ele, como cozinhá-lo ao vinho ou estufá-lo com ameixas ou assá-lo em uma crosta e
Coraline, por princípio, recusava-se sempre a tocá-lo.
Serviu-se de mais frango.
— Não sabia que tinha outra mãe — observou Coraline cautelosamente.
— Certamente que tem. Todo mundo tem — disse a outra mãe, seus olhos de botão
reluzindo. — Depois do almoço, pensei que você talvez quisesse brincar em seu quarto com
os ratos.
— Ratos?
— Lá de cima.
Coraline nunca vira um rato a não ser na televisão. Estava bastante interessada. Afinal,
aquele dia estava se mostrando deveras peculiar.
Depois do almoço, seus outros pais lavaram a louça e Coraline seguiu pelo corredor até
seu outro quarto.
Era diferente do seu quarto era casa. Para começar, estava pintado em um tom de verdecheguei
e em um tom extravagante de rosa.
Coraline concluiu que não gostaria de ter de dormir lá, mas que a combinação de cores
era incrivelmente mais atraente do que a de seu quarto.
Havia coisas extraordinárias as mais variadas lá dentro, que ela nunca havia visto antes:
anjos de dar corda que esvoaçavam pelo quarto como pardais assustados; livros com figuras
que se contorciam, engatinhavam e reluziam; pequenas caveiras de dinossauros que batiam os
dentes quando Coraline passava. Toda uma caixa repleta de brinquedos maravilhosos.
Isso sim, pensou Coraline. Olhou pela janela. Lá fora, a vista era semelhante à que tinha
de seu quarto: árvores, campos e, para além deles, no horizonte, longínquas colinas púrpuras.
Uma coisa preta passou correndo pelo chão e desapareceu embaixo da cama. Coraline
ajoelhou-se e olhou sob a cama. Cinqüenta olhinhos vermelhos fitaram-na de volta.
— Olá — disse Coraline. — Vocês são os ratos?
Eles saíram de baixo da cama, encolhendo os olhos sob a claridade. Tinham pêlo curto e
cor de fuligem. Os olhos eram pequenos e vermelhos. As patas rosadas pareciam mãos
diminutas, e os rabos, rosados e sem pêlos, pareciam longas minhocas lisas.
— Vocês sabem falar? — perguntou ela.
O rato maior e mais escuro acenou a cabeça. Tinha um tipo desagradável de sorriso,
pensou Coraline.
— Bem — perguntou Coraline —, o que vocês fazem? Os ratos formaram um círculo.
Começaram então a subir uns em cima dos outros de maneira ágil e cuidadosa, até
formarem uma pirâmide com o rato maior no topo.
Começaram a cantar com vozes agudas e sussurrantes:
Temos dentes e temos rabo
Rabo temos e olhos também
Ao teu tombo já assistimos
Nossa vitória, sabes que vem
Não era uma canção bonita. Coraline estava certa de já tê-la escutado antes ou algo
parecido, mas não se lembrava exatamente onde.
Então, a pirâmide se desfez e os ratos dispararam velozes e pretos em direção à porta.
O outro velho maluco do andar de cima estava em pé, no vão, segurando um chapéu alto e
preto nas mãos. Os ratos se precipitaram sobre ele, enfiando-se nos bolsos, subindo pela
camisa, pelas pernas da calça, descendo pelo pescoço.
O rato maior escalou até os ombros do velho, tomou um impulso nos longos bigodes
cinzentos, passou pelos olhos de botões grandes e negros e foi parar no topo da cabeça.
Em poucos segundos, o único vestígio da presença dos ratos eram os montinhos
irrequietos sob a roupa do velho, deslizando incessantemente de um lugar para outro pelo
corpo, e o rato maior, que olhava Coraline do alto da cabeça do velho, com olhos vermelhos
brilhantes.
O velho pôs o chapéu e o último rato desapareceu.
— Olá, Coraline — disse o outro velho do andar de cima. — Soube que estava aqui. Está
na hora dos ratos jantarem. Mas você pode vir comigo, se quiser assistir.
Havia algo faminto nos olhos de botões do velho, que fazia Coraline sentir-se inquieta.
— Não, obrigada — respondeu. — Vou sair para explorar.
O velho acenou com a cabeça bem devagar. Coraline podia ouvir os ratos sussurrando
entre si, embora não entendesse o que diziam.
Não estava bem certa se queria entender o que diziam.
Seus outros pais ficaram em pé no vão da porta da cozinha, sorrindo sorrisos idênticos e
acenando lentamente com as mãos enquanto Coraline seguia pelo corredor.
— Divirta-se lá fora — disse a outra mãe.
— Ficaremos aqui esperando você voltar — disse o outro pai. Quando Coraline chegou à
porta da frente, virou-se e olhou para eles. Ainda estavam lá observando-a, acenando e
sorrindo. Coraline saiu e desceu a escada.
IV
A CASA PARECIA EXATAMENTE a mesma do lado de fora. Ou quase exatamente: em
volta da porta da senhorita Spink e da senhorita Forcible, lâmpadas azuis e vermelhas
acendiam e apagavam, formando palavras que corriam umas atrás da outras. Uma atrás da
outra, acendendo e apagando, volta após volta. SURPREENDENTE! era seguido de UM
TRIUNFO e depois TEATRAL!!!
O dia estava ensolarado e frio, exatamente como aquele que Coraline deixara.
Um barulho sutil fez-se ouvir atrás dela.
Coraline virou-se. Em pé, sobre o muro próximo a ela, achava-se um gato grande e preto,
idêntico ao gato grande e preto que vira no terreno de casa.
— Boa tarde — disse o gato.
Sua voz soava como a voz de dentro dá cabeça de Coraline, a voz com a qual ela pensava
as palavras; mas essa era uma voz de homem, não de menina.
— Olá — disse Coraline. — Eu vi um gato como você no jardim lá de casa. Você deve
ser o outro gato.
O gato balançou a cabeça.
— Não — disse. — Não sou o outro coisa nenhuma. Sou eu. — Inclinou a cabeça para o
lado; os olhos verdes brilhavam. — Vocês, pessoas, se esparramam por toda parte. Nós,
gatos, nos mantemos íntegros, se é que me entende.
— Suponho que sim. Mas, se você é o mesmo gato que vi lá em casa, como sabe falar?
Gatos não têm ombros, não como as pessoas; mas ele encolheu-se em um movimento
suave que começava na ponta do rabo e terminava no gesto de elevação dos bigodes.
— Eu sei falar.
— Lá em casa, os gatos não falam.
— Não? — perguntou o gato.
— Não — respondeu Coraline.
O gato pulou gentilmente do muro para a grama perto dos pés de Coraline. Olhou-a
fixamente.
— Bem, é você a especialista — disse o gato secamente. — Afinal, que sei eu? Sou
apenas um gato.
Foi se afastando com a cabeça e a cauda erguidas orgulhosamente.
— Volte — disse Coraline. — Por favor, desculpe-me. Sinceramente, desculpe-me.
O gato parou de andar, sentou e começou a se lamber pensativo, aparentemente sem
perceber a existência de Coraline.
— Nós... poderíamos ser amigos, sabe? — disse Coraline.
— Nós poderíamos ser espécimes raros de uma raça exótica de elefantes africanos
dançarinos — respondeu o gato. — Mas não somos. Pelo menos — acrescentou felinamente
depois de disparar um rápido olhar para Coraline —, eu não sou.
Coraline suspirou.
— Por favor, qual é o seu nome? — perguntou ao gato. — Olha, sou Coraline. Tá?
O gato bocejou lenta e cuidadosamente, revelando uma boca e uma língua de um rosa
impressionante.
— Gatos não têm nomes — disse.
— Não? — perguntou Coraline.
— Não — respondeu o gato. — Agora, vocês pessoas têm nomes. Isso é porque vocês não
sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto não precisamos de nomes.
Havia algo irritantemente arrogante no gato, Coraline concluiu. Como se fosse, em sua
opinião, a única coisa em qualquer mundo ou lugar que pudesse ter alguma importância.
Metade de Coraline queria ser rude com ele, a outra metade queria ser educada e
respeitosa. A metade educada venceu.
— Por favor, que lugar é esse?
O gato olhou rapidamente ao seu redor.
— É aqui — respondeu.
— Isso eu posso ver. Bem, como você chegou aqui?
— Do mesmo modo que você. Eu caminhei — disse o gato. — Assim.
Coraline observou o gato andar lentamente pelo gramado. Passou por trás de uma árvore e
não reapareceu do outro lado. Coraline foi até a árvore e olhou por detrás. O gato havia
sumido.
Coraline caminhou de volta para a casa. Outro som sutil se fez ouvir por trás dela. Era
ele.
— A propósito — disse — foi sensato da sua parte trazer proteção. Eu me agarraria a ela,
se fosse você.
— Proteção?
— Foi o que eu disse — respondeu o gato. — E de qualquer modo...
Fez uma pausa e fixou o olhar era algo que não estava lá.
Então, abaixou-se e avançou lentamente uns dois ou três passos. Parecia espreitar um rato
invisível. Virou o rabo abruptamente e disparou para o bosque.
Desapareceu entre as árvores.
Coraline pensou sobre o que o gato quisera dizer.
Perguntava-se também se todos os gatos de onde ela vinha sabiam falar e apenas
preferiam não fazê-lo, ou se falavam apenas quando estavam ali — onde quer que ali fosse.
Desceu os degraus de tijolo que levavam à porta de entrada das senhoritas Spink e
Forcible. As luzes vermelhas e azuis piscavam.
A porta estava ligeiramente aberta. Coraline bateu, mas ao primeiro toque, a porta abriuse
por inteiro e ela entrou.
Encontrava-se em uma sala escura que cheirava a poeira e veludo. A porta fechou-se atrás
dela e a sala ficou preta. Coraline entrou em uma pequena ante-sala. Seu rosto roçou algo
macio. Era um tecido. Esticou a mão e empurrou o tecido. Ele abriu-se.
Estava do outro lado da cortina de veludo, piscando os olhos em um teatro mal iluminado.
Longe, na extremidade da sala, havia um palco alto de madeira, descoberto e vazio, uma luz
fraca de refletor iluminava-o de muito alto.
Entre Coraline e o palco havia poltronas. Fileiras e fileiras de poltronas. Ouviu o barulho
de algo se arrastando. Uma luz veio em sua direção, oscilando de um lado para o outro.
Quando se aproximou, Coraline viu que a luz vinha de uma lanterna trazida à boca por um
grande cão escocês preto, seu focinho acinzentado pela idade.
— Olá — disse Coraline.
O cachorro pôs a lanterna no chão e olhou para ela.
— Certo, vejamos o seu bilhete — ordenou asperamente.
— Bilhete?
— Foi o que eu disse. Bilhete. Não tenho o dia todo, sabe. Não pode assistir ao
espetáculo sem um bilhete.
Coraline suspirou.
— Não tenho bilhete — admitiu.
— Mais um — disse o cão tristemente. — Chegam aqui na cara de pau. “Seu bilhete, por
favor?” “Não tenho”, é, não sei não... — Balançou a cabeça e encolheu-se. — Por aqui, então.
Apanhou a lanterna com a boca e saiu apressado no escuro. Coraline seguiu-o. Ao
aproximar-se da frente do palco, deteve-se e apontou a lanterna para um assento vazio.
Coraline sentou-se e o cão se afastou.
A medida que seus olhos se acostumaram ao escuro, percebeu que os outros ocupantes
dos assentos também eram cachorros.
Um chiado repentino soou atrás do palco. Coraline julgou tratar-se de um velho disco
arranhado que alguém estava pondo na vitrola. O chiado transformou-se em som de trompetes,
e a senhorita Spink e a senhorita Forcible apareceram no palco.
A senhorita Spink estava dirigindo uma bicicleta de uma só roda e equilibrava bolas no
ar. A senhorita Forcible saltitava atrás dela, segurando uma cesta de flores. Espalhava as
pétalas das flores pelo palco enquanto avançava. Vieram até a frente do palco. A senhorita
Spink saltou agilmente do monociclo e as duas fizeram uma saudação, curvando-se até o chão.
Todos os cães bateram seus rabos e latiram com entusiasmo. Coraline aplaudiu
educadamente.
Em seguida, a senhorita Spink e a senhorita Forcible desabotoaram e abriram seus
casacos macios e rechonchudos, porém, não foram só os casacos que se abriram: também seus
rostos se abriram como conchas vazias, e, de dentro dos velhos corpos redondos,
rechonchudos e vazios, saíram duas jovens. Eram magras, pálidas e muito bonitas; e tinham
olhos de botões negros.
A nova senhorita Spink usava um maiô verde e botas marrons compridas que subiam por
quase toda a perna. A nova senhorita Forcible usava um vestido branco e tinha flores em seus
longos cabelos loiros.
Coraline apertou-se contra a poltrona.
A senhorita Spink saiu do palco. O som dos trompetes transformou-se em um ruído agudo,
à medida que a agulha do gramofone cavou seu caminho pelo disco e foi retirada.
— Essa é a minha parte favorita — cochichou o cachorrinho na poltrona vizinha à de
Coraline.
A outra senhorita Forcible puxou uma faca de dentro de uma caixa no canto do palco.
— É um punhal o que vejo diante de mim? — bradou.
— Sim! — gritaram todos os cachorros. — É!
A senhorita Forcible fez uma mesura e todos os cachorros aplaudiram novamente. Desta
vez, Coraline não se deu ao trabalho de aplaudir.
A senhorita Spink retornou ao palco. Deu um tapa na coxa e todos os cachorrinhos
latiram.
— E agora — disse a senhorita Spink —, Miriam e eu orgulhosamente apresentaremos um
adendo emocionante à nossa interpretação teatral. Estou vendo um voluntário?
O pequeno cachorro vizinho a Coraline cutucou-a com a pata dianteira.
— É você — assoprou.
Coraline levantou-se e subiu a escada de madeira que levava ao palco.
— Posso pedir uma salva de palmas para a jovem voluntária? — disse a senhorita Spink.
Os cachorros latiram, guincharam e bateram seus rabos sobre as poltronas de veludo.
— Bem, Coraline — disse a senhorita Spink —, qual é o seu nome?
— Coraline — disse Coraline.
— É, nós não nos conhecemos, não é?
Coraline olhou para a mulher magra e jovem com olhos de botões negros e balançou a
cabeça devagar.
— Agora, Coraline — disse a outra senhorita Spink —, fique em pé aqui. — Levou
Coraline até uma prancha, ao lado do palco, e pôs um balão sobre sua cabeça.
A senhorita Spink aproximou-se da senhorita Forcible. Vendou os seus olhos de botões
com um cachecol negro e colocou o punhal em suas mãos. Em seguida, fez com que desse uns
três ou quatro giros e parou-a na direção de Coraline. Coraline prendeu a respiração e apertou
os dedos, cerrando os dois punhos.
A senhorita Forcible atirou a faca na direção do balão, estourou-o ruidosamente. A faca
cravou-se na tábua logo acima da cabeça de Coraline e lá permaneceu zunindo. Coraline
soltou a respiração.
Os cachorros deliraram.
A senhorita Spink ofereceu uma caixa bem pequena de chocolates a Coraline e agradeceulhe
o espírito esportivo. Coraline voltou para sua poltrona.
— Você esteve ótima — saudou o cachorrinho.
— Obrigada — respondeu Coraline.
A senhorita Forcible e a senhorita Spink começaram a equilibrar grandes clavas de
madeira no ar. Coraline abriu a caixa de chocolates. O cão olhou-os avidamente.
— Aceita um? — perguntou ao cãozinho.
— Sim, obrigado — sussurrou o cachorro. — Só não quero os caramelos. Me fazem
babar.
— Achava que chocolate não era muito bom para cachorros — disse Coraline,
lembrando-se do que a senhorita Forcible lhe dissera certa vez.
— Talvez, de onde você vem — sussurrou o cãozinho. — Aqui, é só o que comemos.
Coraline não conseguia enxergar os chocolates no escuro. Mordeu um para experimentar;
era de coco. Coraline não gostava de coco. Ofereceu-o ao cachorro.
— Obrigado — disse o cachorro.
— De nada — respondeu Coraline.
A senhorita Forcible e a senhorita Spink estavam agora representando algumas cenas. A
senhorita Forcible, sentada sobre uma escadinha, e a senhorita Spink, de pé junto ao primeiro
degrau.
— Que importância tem um nome? — perguntou a senhorita Forcible. — Aquilo a que
chamamos rosa com qualquer outro nome teria o perfume igualmente doce.
— Você tem mais chocolate? — indagou o cachorro.
Coraline deu-lhe outro chocolate.
— Não sei como vos dizer quem sou — disse a senhorita Spink para a senhorita Forcible.
— Essa parte acaba logo — sussurrou o cachorro. — Depois elas começam as danças
folclóricas.
— Quanto tempo demora? — perguntou Coraline. — O teatro?
— O tempo todo — disse o cachorro. — Para sempre.
— Tome — disse Coraline. — Fique com os chocolates.
— Obrigado — respondeu o cachorro. Coraline levantou-se. — Até logo — disse o
cachorro.
— Tchau — disse Coraline. Caminhou para fora do teatro, de volta ao jardim. Precisava
encolher os olhos para acostumar-se à claridade do dia.
Seus outros pais aguardavam-na no jardim, em pé, um ao lado do outro. Sorriam.
— Você se divertiu? — perguntou sua outra mãe.
— Foi interessante — respondeu Coraline.
Os três subiram juntos de volta para a outra casa de Coraline. A outra mãe alisou-lhe o
cabelo com seus longos dedos brancos. Coraline desviou a cabeça.
— Não faça isso — disse.
Sua outra mãe afastou a mão.
— Então — perguntou o outro pai. — Você gostou daqui?
— Acho que sim — respondeu Coraline. — É muito mais interessante do que lá em casa.
Entraram.
— Fico feliz que esteja gostando — disse a mãe de Coraline. — Porque gostaríamos de
pensar que este é o seu lar. Pode ficar aqui para sempre, se quiser.
— Hmm — murmurou Coraline. Colocou as mãos nos bolsos e refletiu. Sua mão tocou a
pedra que as verdadeiras senhoritas Spink e Forcible haviam lhe dado na véspera, a pedra
com um furo no meio.
— Caso você queira — disse o seu outro pai —, há somente uma coisinha que precisamos
fazer para que possa ficar aqui para sempre.
Foram até a cozinha. Em um prato de porcelana sobre a mesa, achavam-se um carretel de
linha preta de algodão, uma longa agulha de prata e dois grandes botões negros.
— Acho que não quero — disse Coraline.
— Oh, mas queremos que fique — insistiu a outra mãe. — Queremos que fique. É só uma
coisinha à toa.
— Não vai doer — disse o outro pai.
Coraline sabia que quando os adultos falavam que alguma coisa não ia doer, quase
sempre doía. Balançou a cabeça.
Sua outra mãe abriu um grande sorriso. Os cabelos em sua cabeça flutuavam como plantas
no fundo do mar.
— Queremos apenas o melhor para você.
Pôs a mão sobre o ombro de Coraline. Coraline recuou.
— Agora já vou — disse Coraline. Colocou as mãos nos bolsos. Seus dedos se fecharam
em volta da pedra com o furo no meio.
A mão da outra mãe abandonou o ombro de Coraline como uma aranha assustada.
— Se é isso o que deseja — disse.
— Sim — afirmou Coraline.
— Nos veremos em breve, no entanto — disse o outro pai. — Quando você voltar.
— Umm — murmurou Coraline.
— E aí, ficaremos todos juntos como uma grande família feliz — disse sua outra mãe. —
Para sempre.
Coraline recuou. Virou-se, correu para a sala de visitas e empurrou a porta que ficava no
canto. Não havia parede de tijolos — somente a escuridão, uma escuridão subterrânea, negra
como a noite, em cujo interior coisas poderiam estar se movendo.
Coraline hesitou. Voltou-se para trás. Seu outro pai e sua outra mãe dirigiam-se para ela
de mãos dadas. Olhavam-na com seus olhos de botões negros. Ou, pelo menos, Coraline
pensou que olhavam. Não tinha certeza.
Sua outra mãe estendeu a mão que estava livre, chamando-a gentilmente com o dedo
branco. Seus lábios pálidos murmuraram:
— Volte logo — embora não dissesse nada alto.
Coraline respirou fundo e pisou na escuridão onde vozes estranhas sussurravam e ventos
longínquos sibilavam. Tinha certeza de que havia algo atrás dela no escuro: algo muito velho e
muito lento. Seu coração batia com tanta força e tão alto, que teve medo dele estourar em seu
peito. Fechou os olhos contra a escuridão.
Finalmente esbarrou em algo e abriu os olhos assustada. Era uma poltrona em sua sala de
visitas.
O vão aberto atrás de si estava bloqueado por duros tijolos vermelhos.
Estava em casa.
V
V.
CORALINE TRANCOU A PORTA da sala de visitas com a chave escura e fria.
Voltou até a cozinha e subiu em uma cadeira. Tentou recolocar o molho de chaves no
batente da porta. Tentou quatro ou cinco vezes, antes de ser forçada a aceitar que
simplesmente não era alta o bastante, e colocou as chaves sobre o balcão próximo à porta.
Sua mãe ainda não havia retornado da expedição de compras.
Coraline foi até o freezer e pegou o pão reserva congelado no compartimento de baixo.
Preparou algumas torradas com geléia e manteiga de amendoim. Bebeu um copo de água.
Esperou que os pais voltassem para casa.
Quando começou a escurecer, Coraline pôs uma pizza congelada no microondas.
Depois assistiu à televisão. Perguntava-se por que os adultos tinham direito a todos os
bons programas, com as gritarias e as Correrias.
Passado algum tempo, começou a bocejar. Então, tirou a roupa, escovou os dentes e foi
para a cama.
De manhã foi até o quarto dos pais, mas a cama não tinha sido mexida, e eles não estavam
em casa. Comeu espaguete enlatado no café da manhã.
No almoço, comeu uma barra de chocolate meio amargo e uma maçã. A maçã estava
amarelada e ligeiramente murcha, mas o gosto era doce e bom.
Na hora do chá, foi visitar as senhoritas Spink e Forcible. Comeu três biscoitos
digestivos, um copo de limanada e uma xícara de chá aguado. A limanada era muito
interessante. Não tinha o menor sabor de lima. Tinha um gosto verde cintilante vagamente
químico. Coraline adorou. Gostaria que tivessem aquilo em casa.
— Como estão seus queridos pai e mãe? — perguntou a senhorita Spink.
— Desaparecidos — respondeu Coraline. — Desde ontem não vejo nenhum dos dois.
Estou por minha própria conta. Acho que provavelmente me tornei uma família de filha única.
— Diga à sua mãe que encontramos os recortes de jornal do Teatro Glasgow Empire que
havíamos comentado com ela. Pareceu-nos bastante interessada quando Miriam os mencionou.
— Ela desapareceu em circunstâncias misteriosas — disse Coraline — e creio que meu
pai também.
— Estaremos fora o dia inteiro amanhã, Caroline, amoreco — disse a senhorita Forcible.
— Vamos passar a noite na casa da sobrinha de April, em Royal Tunbridge Wells.
Mostraram-lhe um álbum de fotografias com fotos da sobrinha da senhorita Spink e depois
Coraline voltou para casa.
Abriu seu cofrinho e foi até o supermercado. Comprou duas garrafas grandes de limanada,
um bolo de chocolate e um saco de maçãs novo. Voltou para casa e comeu seu jantar.
Escovou os dentes e foi para o estúdio do pai. Ligou seu computador e escreveu uma
história.
A HISTÓRIA DE CORALINE
HAVIA UMA MENINA QUE SE CHAMAVA MAÇÃ. COSTUMAVA DANÇAR
MUITO. ELA DANÇOU E DANÇOU E DANÇOU ATÉ QUE SEUS PÉS VIRARAM
SAUÇIXAS FIM.
Coraline imprimiu a história e desligou o computador. Depois desenhou a pequena menina
dançando sob as palavras no papel.
Preparou um banho com uma quantidade exagerada de espuma, e as bolhas transbordaram,
espalhando-se por todo o chão. Secou-se, secou o chão o melhor que pôde e enfiou-se na
cama.
Acordou durante a noite e foi até o quarto dos pais, mas a cama continuava arrumada e
vazia. Os números fosforescentes no relógio digital brilhavam 3:12 da manhã.
Totalmente só, no meio da noite, Coraline começou a chorar. Não havia nenhum outro som
no apartamento vazio.
Subiu na cama dos seus pais e, depois de algum tempo, adormeceu.
Coraline acordou com patas frias batendo contra o seu rosto. Abriu seus olhos. Olhos
grandes e verdes fitavam-na. Era o gato.
— Olá — disse Coraline. — Como foi que você entrou?
O gato não disse nada. Coraline levantou-se da cama. Estava usando uma camiseta
comprida e calças de pijama.
— Veio me dizer alguma coisa?
O gato bocejou, o que fez seus olhos verdes brilharem.
— Sabe onde mamãe e papai estão?
O gato piscou o olho lentamente para ela.
— Isso quer dizer sim?
O gato piscou novamente. Coraline concluiu que se tratava realmente de um sim.
— Você vai me levar até eles?
O gato olhou-a fixamente. Andou, então, até o corredor. Ela seguiu-o. Ele percorreu toda
a extensão e parou bem no final, onde um espelho de tamanho natural encontrava-se
pendurado. O espelho fora durante muito tempo o lado de dentro da porta de um armário.
Estava pendurado na parede desde antes da mudança, e, embora a mãe de Coraline falasse
ocasionalmente em substituí-lo por algo mais novo, nunca o fizera.
Coraline acendeu a luz do corredor.
O espelho mostrava o corredor atrás dela, o que era de se esperar. Refletidos no espelho,
porém, estavam os seus pais. Estavam de pé com dificuldade no reflexo do corredor.
Pareciam tristes e sozinhos. Enquanto Coraline olhava, acenaram lentamente para ela com as
mãos hesitantes. O pai de Coraline tinha o braço em volta de sua mãe.
Olharam-na fixamente do espelho. O pai abriu a boca e disse algo, mas ela não conseguia
ouvir nada. Sua mãe bafejou sobre o lado interno do espelho e rapidamente, antes que o
embaçado desaparecesse, escreveu
ORROCOS
com a ponta do indicador. O embaçado no interior do espelho foi sumindo, o mesmo
acontecendo aos pais de Coraline. Agora, o espelho refletia apenas o corredor, Coraline e o
gato.
— Onde estão eles? — Coraline perguntou ao gato. O gato não respondeu, mas ela podia
imaginar sua voz, seca como uma mosca morta no peitoril da janela durante o inverno, dizer:
Bem, onde você acha que estão?
— Eles não vão voltar, não é? — disse Coraline. — Não por conta própria.
O gato piscou para ela. Coraline entendeu como sim.
— Certo — disse Coraline. — Então suponho que só há uma coisa a fazer.
Entrou no estúdio do pai. Sentou-se à mesa. Em seguida, pegou o telefone, abriu a lista
telefônica e ligou para a delegacia local.
— Polícia — atendeu uma voz masculina áspera.
— Alô — disse Coraline. — Meu nome é Coraline Jones. — Você passou um pouco da
hora de dormir, não foi, senhorita? — comentou o policial.
— Possivelmente — respondeu Coraline, que não ia se deixar distrair —, mas, estou
ligando para denunciar um crime.
— E que tipo de crime seria?
— Seqüestro. Meus pais foram raptados para um mundo do outro lado do espelho em
nosso corredor.
— E você sabe quem os roubou? — perguntou o oficial de polícia. Coraline podia ouvir
o sorriso em sua voz. Fez um esforço dobrado para soar adulta e ser levada a sério.
— Acho que minha outra mãe tem os dois em suas garras. Pode ser que queira mantê-los
com ela e costurar seus olhos com botões negros ou talvez os mantenha simplesmente para me
atrair de volta ao alcance de seus dedos. Não estou bem certa.
— Ah. As garras nefastas de seus dedos diabólicos, não é? — disse. — Mmm. Sabe qual
é minha sugestão, senhorita Jones?
— Não — respondeu Coraline. — Qual?
— Peça para sua mãe preparar uma velha caneca de chocolate bem grande e bem quente e
te dar um velho abraço bem grande e bem forte. Não há nada como chocolate quente e abraços
para fazer os pesadelos irem embora. E, se ela começar a brigar com você por tê-la acordado
a esta hora da noite, diga-lhe que foi o policial quem mandou. — Tinha uma voz profunda e
tranqüilizadora.
Coraline não se tranqüilizou.
— Quando eu a vir — disse Coraline —, direi isso. — E pôs o telefone no gancho.
O gato preto, que ficara sentado no chão alisando o pêlo durante toda a conversa,
levantou-se e conduziu-a até o corredor.
Coraline voltou para o seu quarto, vestiu seu roupão azul e calçou os chinelos. Procurou
por uma lanterna debaixo da pia e encontrou uma, porém suas pilhas já haviam terminado há
muito tempo e ela mal acendia uma luz fraquíssima cor de palha. Colocou-a de volta no lugar
e encontrou uma caixa de velas de cera branca para emergências. Enfiou uma dentro de um
candelabro. Pôs uma maçã em cada bolso. Pegou o anel de chaves e retirou a velha chave
negra.
Foi até a sala de visitas e olhou para a porta. Tinha a sensação de que a porta a estava
olhando, o que, sabia, era uma tolice, mas inconscientemente sabia que de algum modo era
verdade.
Voltou para o seu quarto e mexeu no bolso do seu jeans. Achou a pedra com o furo no
meio e colocou-a no bolso do roupão.
Acendeu o pavio da vela com um fósforo e observou-o crepitar e encorpar. Em seguida,
pegou a chave negra. Estava fria em sua mão. Colocou-a no buraco da fechadura da porta sem
girá-la.
— Quando era pequena — Coraline disse para o gato —, quando vivíamos em nossa
velha casa, há muito, muito tempo, papai me levou para passear no terreno baldio que ficava
entre a nossa casa e as lojas.
“Não era o lugar ideal para passear. Lá ficavam todas aquelas coisas que as pessoas
tinham jogado fora — fogões velhos, pratos quebrados, bonecas sem braço e sem perna, latas
vazias e garrafas espatifadas. Papai e mamãe me fizeram jurar que não iria explorar lá atrás,
porque havia muitos objetos pontudos, tétano e coisas do gênero.”
“Mas continuei dizendo que queria explorar o lugar. Então, um dia, papai calçou suas
botas grandes marrons e suas luvas, pôs minhas botas, meu jeans e suéter, e fomos dar uma
volta.”
“Acho que andamos por cerca de vinte minutos. Descemos a colina até o fundo de um
barranco onde passava um rio quando, de repente, meu pai falou: ‘Coraline — fuja. Suba a
colina. Já!’ Falou de um jeito firme, com urgência, então obedeci. Subi a colina correndo.
Algo me atingiu atrás do braço enquanto eu fugia, mas continuei correndo.”
“Quando cheguei ao topo, ouvi alguém disparar colina acima atrás de mim como um raio.
Era o meu pai, atacando como um rinoceronte. Quando me alcançou, levantou-me em seus
braços e ergueu-me por sobre o cume da colina.”
“Então paramos ofegantes e palpitantes, e olhamos de volta para o barranco lá embaixo.”
“O ar estava animado com vespas amarelas. No caminho, devemos ter pisado em um
vespeiro dentro de algum tronco podre. E enquanto eu corria colina acima, meu pai ficou e foi
mordido, para me dar tempo de fugir. Seus óculos haviam caído durante a corrida.”
“Eu tinha uma única picada, atrás do braço. Ele tinha trinta e nove, espalhadas pelo
corpo. Contamos depois, no banho.”
O gato preto começou a lavar o rosto e os bigodes de um modo que indicava crescente
impaciência. Coraline abaixou-se e deu-lhe uma batidinha atrás da cabeça e do pescoço. O
gato levantou-se, deu alguns passos até sair do seu alcance, depois sentou-se e olhou-a
novamente.
— Então — disse Coraline —, mais para o fim da tarde, meu pai voltou ao terreno
baldio, para recuperar seus óculos. Disse que se deixasse passar um dia, não conseguiria
lembrar onde eles haviam caído.
“E logo ele voltou para casa, usando seus óculos. Disse que não teve medo quando ficou
lá em pé, sendo picado e ferido pelas vespas, vendo-me fugir. Sabia que tinha que me dar
tempo suficiente para correr, ou as vespas perseguiriam a nós dois.”
Coraline girou a chave na porta. A chave girou com umclunk sonoro.
A porta abriu-se completamente.
Não havia parede de tijolos do outro lado da porta: apenas escuridão. Um vento frio
soprava pela passagem.
Coraline não tomou a iniciativa de atravessar a porta.
— E ele disse que não tinha sido corajoso ao simplesmente ficar lá e ser mordido —
disse Coraline ao gato. — Não tinha sido corajoso porque ele não tivera medo: era a única
coisa que ele podia fazer. Mas, voltar para pegar os óculos, sabendo que as vespas estavam lá
e, desta vez sentindo medo, aquilo era coragem.
Coraline deu o primeiro passo para dentro do corredor. Podia sentir o cheiro de poeira,
umidade e mofo. O gato caminhava a seu lado.
— E por quê? — perguntou o gato, embora parecesse muito pouco interessado.
— Porque — disse ela — quando você tem medo e faz mesmo assim, isso é coragem.
A vela projetava sombras imensas, estranhas e trêmulas ao longo da parede. Ouviu algo
se mover na escuridão — imediatamente ao seu lado ou um pouco mais longe, não saberia
dizer. Parecia que a estava seguindo, seja lá o que fosse.
— Então é por isso que você vai voltar para o mundo dela? — perguntou o gato. —
Porque seu pai um dia salvou você das vespas?
— Não seja tolo — disse Coraline. — Estou voltando por eles, porque são meus pais. Se
eles percebessem que eu tinha sumido, tenho certeza de que fariam o mesmo por mim. Sabia
que você voltou a falar?
— Quanta sorte a minha — disse o gato — ter uma companheira de viagem com tamanha
sabedoria e inteligência. — Seu tom permanecia sarcástico, mas seu pêlo estava eriçado, e
sua cauda exuberante erguia-se no ar.
Coraline ia dizer algo como desculpe ou será que a caminhada não foi bem mais curta
da outra vez?, quando a vela apagou-se subitamente, como se alguém a tivesse apagado com a
mão.
Houve um escarafunchar de unhas e o barulho de patas pisando sobre o chão. Coraline
podia sentir seu coração bater contra as costelas. Estendeu a mão... e sentiu fios tênues como
teias de aranha roçarem suas mãos e seu rosto.
No final do corredor, a luz elétrica acendeu, ofuscando a vista após a escuridão. Uma
mulher erguia-se, a silhueta recortada pela luz, um pouco mais à frente de Coraline.
— Coraline? Querida? — ela chamou.
— Mãe! — disse Coraline, e avançou ansiosa, sentindo-se aliviada.
— Querida — disse a mulher. — Por que você fugiu de mim? Coraline estava perto
demais para parar e sentiu os braços frios da outra mãe abraçá-la. Ficou ali rígida e trêmula
enquanto a outra mãe a abraçava firmemente.
— Onde estão os meus pais? — perguntou Coraline.
— Estamos aqui — disse a outra mãe, com uma voz tão semelhante à da sua verdadeira
mãe que Coraline mal conseguia distingui-las. — Estamos aqui. Estamos prontos para amá-la,
para brincar com você, para alimentá-la e tornar a sua vida interessante.
Coraline recuou e a outra mãe deixou-a ir com relutância.
O outro pai, que estivera sentado em uma cadeira no corredor, levantou-se e sorriu.
— Vamos para a cozinha — disse ele. — Vou preparar um lanche de meia-noite. E você
vai querer algo para beber — quem sabe um chocolate quente?
Coraline percorreu o corredor até chegar ao espelho, no final. Não havia reflexos nele,
exceto uma menina de roupão e chinelos, com cara de quem havia chorado há pouco, mas com
olhos de verdade e não botões negros, segurando firmemente um castiçal com uma vela
apagada.
Olhou para a menina no espelho e a menina no espelho a olhou de volta.
Serei corajosa, pensou Coraline. Não, estou sendo corajosa.
Colocou o castiçal no chão e virou-se. O outro pai e a outra mãe observavam-na com
olhar faminto.
— Não preciso de lanche — disse. — Tenho uma maçã. Estão vendo? — Tirou uma maçã
do bolso do roupão e depois mordeu-a apetitosamente com um entusiasmo que não sentia
realmente.
O outro pai parecia desapontado. A outra mãe sorriu, mostrando uma fileira completa de
dentes, e cada um dos dentes era ligeiramente comprido demais. A luz no corredor fazia seus
olhos de botões negros cintilarem e brilharem.
— Vocês não me assustam — disse Coraline, embora eles a assustassem na realidade, e
muito. — Quero meus pais de volta.
O mundo parecia cintilar um pouco nas bordas.
— O que poderia eu ter feito aos seus antigos pais? Se abandonaramvocê, Coraline, deve
ser porque se entediaram ou se cansaram de você. Mas eu nunca me cansarei de você, nem
tampouco vou abandoná-la. Estará sempre segura aqui comigo. — Os cabelos negros com
aparência de molhados flutuavam em volta de sua cabeça como os tentáculos de uma criatura
nas profundezas do oceano.
— Eles não se cansaram de mim — disse Coraline. — Você está mentindo. Você os
raptou.
— Coraline bobinha, bobinha. Eles estão bem onde quer que estejam.
Coraline apenas fitou a outra mãe.
— Vou provar para você — disse a outra mãe e roçou a superfície do espelho com seus
longos dedos brancos. O espelho turvou-se como se um dragão tivesse baforado sobre ele e
depois clareou.
Dentro do espelho, já era dia. Coraline podia ver todo o corredor até a porta da frente. A
porta da rua abriu-se e a mãe e o pai de Coraline entraram. Carregavam malas.
— Que férias maravilhosas — disse o pai de Coraline.
— Como é bom não ter mais a Coraline — disse sua mãe com um sorriso de felicidade.
— Agora podemos fazer tudo o que sempre quisemos e nunca fizemos porque tínhamos uma
filha pequena. Coisas como viajar para o exterior, por exemplo.
— É — acrescentou o pai. — Fico sossegado em saber que sua outra mãe vai cuidar dela
muito melhor do que jamais pudemos cuidar.
O espelho cobriu-se de névoa, foi sumindo, a imagem evanescendo, até que voltou a
refletir a noite.
— Viu? — perguntou a outra mãe.
— Não — disse Coraline. — Não vi. E também não acredito. Esperava que o que
acabara de ver não fosse real, mas não estava tão segura disso quanto parecia. Havia uma
dúvida muito pequena dentro dela, como uma larva no miolo da maçã. Então, olhou para cima
e viu a expressão no rosto de sua outra mãe: um lampejo de raiva autêntica, que atravessava
seu rosto como um relâmpago de verão, e Coraline teve certeza em seu coração de que o que
vira no espelho não passava de uma ilusão. Sentou-se no sofá e comeu sua maçã.
— Por favor — disse a outra mãe —, não seja difícil. — Foi até a sala de visitas e bateu
palmas duas vezes. Ouviu-se um som de algo se arrastando e um rato preto surgiu. Fitou-a. —
Traga-me a chave — disse ela.
O rato soltou um guincho e correu em seguida pela porta aberta que levava de volta ao
apartamento de Coraline. Voltou arrastando atrás de si a chave.
— Por que você não tem sua própria chave desse lado? — perguntou Coraline.
— Há apenas uma chave. Há apenas uma porta — disse o outro pai.
— Silêncio! — disse a outra mãe. — Você não deve incomodar a cabeça de nossa
querida Coraline com tais trivialidades. — Ela colocou a chave na fechadura e girou-a. A
fechadura estava dura, mas fechou com umclunk.
Deixou cair a chave no bolso de seu avental.
Lá fora, o céu começara a clarear em um tom cinza luminoso.
— Se não vamos fazer um lanche de meia-noite — disse a outra mãe —, ainda
precisamos de nosso sono da beleza. Vou voltar para a cama, Coraline. E sugiro enfaticamente
que você faça o mesmo.
Colocou os longos dedos brancos sobre os ombros do outro pai e levou-o para fora do
cômodo.
Coraline foi até a porta no canto mais afastado da sala de visitas. Puxou-a com força mas
ela estava firmemente trancada. A porta do quarto dos seus outros pais tinha se fechado agora.
Coraline estava realmente cansada mas não queria dormir no quarto. Não queria dormir
sob o mesmo teto que sua outra mãe.
A porta da frente não estava trancada. Coraline saiu na madrugada e desceu os degraus de
pedra. Sentou-se sobre o último. Estava frio.
Alguma coisa peluda empurrou-se contra o seu lado em um movimento suave e insinuante.
Coraline deu um pulo e então respirou aliviada ao ver que se tratava do gato.
— Ah. É você — disse ao gato preto.
— Viu? — respondeu o gato. — Não foi tão difícil assim me reconhecer, foi? Mesmo sem
nome.
— Bem, e se quisesse chamar você?
O gato franziu o nariz, conseguindo parecer pouco impressionado.
— Chamar gatos — segredou — tende a ser uma atividade supervalorizada. É o mesmo
que chamar um redemoinho pelo nome.
— E se fosse hora de jantar? — perguntou Coraline. — Você não gostaria de ser chamado
então?
— Mas é claro — disse o gato. — Porém, um simples grito de ‘jantar!’ serviria muito
bem. Viu? Nenhuma necessidade de nomes.
— Por que ela me quer? — Coraline perguntou ao gato. — Por que quer que eu fique aqui
com ela?
— Quer algo para amar, acho — respondeu o gato. — Algo que não seja ela. Pode ser
que queira algo para comer também. É difícil dizer com criaturas daquelas.
— Você tem algum conselho? — indagou Coraline.
O gato parecia começar a dizer mais alguma coisa sarcástica. Então, sacudiu os bigodes e
disse:
— Desafie-a. Não há nenhuma garantia de que ela vai jogar limpo, mas uma criatura
dessas adora jogos e desafios.
— Que tipo de criatura é essa? — perguntou Coraline.
O gato não respondeu, simplesmente espreguiçou-se luxuriosamente e foi embora.
Então deteve-se, virou-se e disse:
— Se eu fosse você, entraria. Vá dormir. Você tem um longo dia pela frente.
E então, o gato sumiu. Coraline percebeu que ele tinha razão. Retornou cautelosamente
para a casa silenciosa, passou pela porta fechada atrás da qual a outra mãe e o outro pai... o
quê? Pensou. Dormiam? Esperavam? Então ocorreu-lhe que, se por acaso, ela abrisse a porta
do quarto, o encontraria vazio ou, mais precisamente, aquele era um quarto vazio, que
permaneceria vazio até o exato momento em que ela abrisse a porta.
De algum modo isso facilitava as coisas. Coraline entrou na paródia verde e rosa do seu
próprio quarto. Fechou a porta e puxou a caixa de brinquedos para a frente dela — isso não
manteria ninguém fora do quarto, mas a barulheira que faria, se tentassem removê-la, a
acordaria, assim esperava.
Os brinquedos dentro da caixa dormiam ainda quase todos. Mexeram-se e resmungaram
enquanto ela movia sua caixa e depois voltaram a dormir. Coraline olhou debaixo da cama,
procurando pelos ratos, mas não havia nada lá. Tirou seu roupão e seus chinelos, subiu na
cama e mergulhou no sono sem nem mesmo tempo para refletir, enquanto o fazia, sobre o que o
gato quisera dizer comum desafio.
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