quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Os miseráveis

LIVRO OITAVO — OS CEMITÉRIOS ACEITAM O QUE LHES DÃO I — Onde se trata do modo de entrar no convento Foi naquele convento que Jean Valjean, como dissera Fauchelevent, «caíra do céu». Saltara pelo muro que formava o ângulo para a rua Polonceau. O hino de anjos que ouvira no meio do silêncio da noite eram as religiosas entoando maƟnas; a sala que entre vira na escuridão era a capela; o fantasma que vira estendido no lajedo era a irmã «fazendo a reparação»; o Ɵnir que tão estranhamente o surpreendera, era o guizo do jardineiro, o guizo que Fauchelevent trazia preso ao joelho. Depois de CoseƩe deitada, Ɵnham Jean Valjean e Fauchelevent, como se viu, ceado um copo de vinho e um bocado de queijo, junto dum bom lume; em seguida, estando a única cama que havia na barraca ocupada por CoseƩe, Ɵnha-se deitado cada um num feixe de palha. Jean Valjean dissera antes de fechar os olhos: — Agora preciso ficar aqui. Estas palavras tinham-se agitado toda a noite no cérebro de Fauchelevent. Para falar verdade, nem um nem outro dormiram. Jean Valjean senƟndo-se descoberto e com Javert na pista, compreendeu logo que tanto ele como CoseƩe estavam perdidos, se tornassem a entrar em Paris. Uma vez que a nova rajada de vento que soprara sobre ele, o fizera encalhar naquele claustro, já não Ɵnha outro pensamento que não fosse o de ali ficar. Ora, para um desgraçado na sua posição, aquele convento era, ao mesmo tempo, o lugar mais perigoso e o mais seguro; mais perigoso, porque não podendo ali penetrar homem algum, a descoberta dele era um flagrante delito, e Jean Valjean não dava mais que um passo do convento para a cadeia; e mais seguro, porque conseguido que o aceitassem e deixassem lá permanecer, quem o iria buscar? Habitar num lugar em que fosse impossível estar, era a salvação. Fauchelevent, pela sua parte, dava voltas ao miolo. Começara por declarar a si mesmo que não percebia nada. Como era que o senhor Madelaine ali se achava apesar daqueles muros? Muros de claustro não se saltam. Como se achava ali com uma criança? Não se escala um muro com uma criança nos braços. Quem era aquela criança? Donde Ɵnham vindo ambos? Desde que Fauchelevent entrara no convento, nunca mais ouvira falar em Montreuil-sur-mer, portanto não Ɵnha a mínima ideia do que ali se passara. O senhor Madelaine Ɵnha um aspecto que não animava a fazer perguntas; e depois Fauchelevent dizia consigo: «A um santo não se pergunta nada». Madelaine conservara para ele todo o seu presơgio. Só por algumas palavras que escapavam a Jean Valjean, julgou o jardineiro dever concluir que o senhor Madelaine Ɵnha talvez quebrado em consequência dos tempos correrem maus, e que era perseguido pelos credores; ou que se comprometera em algum negócio políƟco, e que por isso se ocultava, o que não desagradou a Fauchelevent, o qual, como muitos camponeses do norte da França, Ɵnha um grande fundo bonaparƟsta. Madelaine querendo esconder-se tomara o convento por asilo; era portanto simples que ali quisesse ficar. Mas o ponto inexplicável de que Fauchelevent se não esquecia e com que quebrava a cabeça, era que Madelaine ali estivesse, e de mais a mais com aquela criança. Fauchelevent via-os, tocava-lhes, falava-lhes e não o podia crer. O incompreensível acabava de entrar na choupana do jardineiro. Fauchelevent andava às apalpadelas, mas não via senão isto. O senhor Madelaine salvou-me a vida. Esta única certeza era-lhe bastante, e foi o que o resolveu. Disse consigo: «Toca-me agora a minha vez»; e acrescentou na consciência: «O senhor Madelaine não levou tanto tempo a pensar, quando viu que era preciso meter-se debaixo da carroça para me livrar do seu peso». Decidiu portanto que salvaria o senhor Madelaine. Dirigiu pois a si mesmo diversas perguntas e deu diversas respostas: «Depois do que fez por mim, se fosse um ladrão salvá-lo-ia? Do mesmo modo. Salvá-lo-ia se fosse um assassino? Não tem que ver. Salvá-lo-ei, sendo um santo como é? Custe o que custar. Mas fazer com que ficasse no convento, que problema! Fauchelevent, na presença desta tentaƟva quase quimérica, não recuou; o pobre camponês picardo, sem outra escada além da sua dedicação, da sua boa vontade, e com alguma dessa pouca figura campesina, posta, desta vez, ao serviço de uma intenção generosa, empreendeu escalar as dificuldades do claustro e as rudes escarpas da ordem de S. Bento. O senhor Fauchelevent era um velho que toda a sua vida fora egoísta, e que no termo dos seus dias, coxo, doente, não tendo no mundo o menor interesse, achou doçura em ser reconhecido; e vendo que havia a praƟcar uma acção virtuosa, lançou-se a ela, como o homem que, próximo a deixar a vida, achasse ao alcance da mão um copo de bom vinho que nunca houvesse provado e o bebesse avidamente. Pode acrescentar-se que o ar que respirava havia anos, naquele convento, lhe destruíra a personalidade, acabando por lhe tornar necessária a prática de uma boa acção. Tomou, pois, uma resolução: dedicar-se a Madelaine. Acabamos de o qualificar de pobre camponês picardo. A qualificação é justa, mas incompleta. No ponto em que nos achamos desta história, tornam-se úteis alguns traços fisiológicos do senhor Fauchelevent. Era camponês, mas fora tabelião, o que lhe juntara à finura a chicana e a penetração à sinceridade. Tendo por causas diversas saído mal dos seus negócios de tabelião, caíra em carroceiro e trabalhador. Mas, a despeito das pragas e das chicotadas, necessárias aos cavalos, parece que conservara ainda o que quer que era de tabelião. Tinha certo talento natural; não dizia eu temos nem eu sabemos; conversava, coisa rara na aldeia, e os outros camponeses diziam dele: fala suavemente como um senhor fidalgo. Fauchelevent pertenceu com efeito, à espécie que o imperƟnente e ligeiro vocabulário do século passado qualificava de: meio burguês meio rúsƟco; a que as metáforas, caindo do palácio na choupana, apelidavam um pouco cidadão: sal e pimenta. Fauchelevent, ainda que muito experimentado e usado pela sorte, espécie de pobre velha alma já no fio, era todavia homem de primeiras impressões, e muito espontâneo; qualidade preciosa que sempre impede que se seja mau. Os seus defeitos e vícios, que os Ɵnha Ɵdo, não passaram da superİcie; em suma, a sua fisionomia era das que são bem aceitas pelo observador. Aquele velho rosto não tinha nenhuma das desgraçadas rugas da testa que significam maldade ou estupidez. Ao romper do dia, depois de haver sonhado extraordinariamente, Fauchelevent abriu os olhos e viu Madelaine sentado no feixe de palha, contemplando CoseƩe adormecida. Fauchelevent sentou-se também e disse: — Agora que está aqui, como foi que entrou? Estas palavras resumiram o facto e despertaram Jean Valjean da sua meditação. Os dois homens celebraram conselho. — Em primeiro lugar — disse Fauchelevent o senhor há-de começar por não pôr o pé fora desta barraca, nem tão-pouco a pequenita. Um passo na cerca pode deitar tudo a perder. — É justo. — Senhor Madelaine — tornou Fauchelevent — o senhor chegou em muito boa ocasião, quero dizer muito má: uma destas senhoras está gravemente doente, o que fará com que olhem pouco cá para o nosso lado. Parece que não escapa, porque estão fazendo as preces das quarenta horas. Anda toda a comunidade no ar. Isto dá-lhe que fazer. A que está próxima a deixar-nos é uma santa. A falar verdade, nós aqui todos somos santos; a diferença entre elas e eu, é que elas dizem: a nossa cela, e eu digo: a minha choupana; haverá a oração dos agonizantes, e depois a oração pelos mortos. Por hoje estaremos tranquilos aqui; mas pelo meio-dia de amanhã não respondo. — Contudo — observou Jean Valjean — esta barraca está oculta pelas ruínas e pelas árvores; não se vê do convento. — E eu acrescento que as religiosas nunca se lhe aproximam. — E então? — disse Jean Valjean. O ponto de interrogação que acentuava este então, significava: Parece-me que se pode estar aqui oculto. Foi no ponto de interrogação que Fauchelevent respondeu. — Mas há as pequenas. — Quais pequenas? — tornou Jean Valjean. Quando Fauchelevent abrira a boca para responder, explicando as suas palavras, ouviu-se o toque duma sineta. — Morreu a religiosa — disse ele. — Aí estão dobrando. E fez sinal a Jean Valjean para que escutasse. A sineta deu segunda badalada. — É o dobre, senhor Madelaine. A sineta conƟnuará por vinte e quatro horas dando aquelas badaladas, de minuto a minuto, até que o corpo saia da igreja. Mas o senhor bem sabe, as crianças nunca param quietas. Nas horas de recreio vêm brincar para a cerca e basta que se desencaminhe alguma pela para que elas, apesar das proibições, venham para este lado procurá-las e comecem por aí a sarilhar por uma banda e por outra, revistando e mexendo em tudo. São uns diabos aqueles querubins. — Quem? — perguntou Jean Valjean. — As pequenas. Era um instante enquanto aqui vinham dar consigo e logo gritariam: Olhem um homem! Mas hoje não há perigo. Não haverá recreio. O dia irá todo em orações. Ouve a sineta? É o que eu lhe disse, uma badalada cada minuto. É o dobre. E Jean Valjean disse consigo: «E teria achado a educação de Cosette». Fauchelevent exclamou: — Com a fortuna! Um bando de pequeninas, que fariam grande gritaria à roda do senhor e que em seguida fugiriam todas! Ser homem neste lugar é o mesmo que estar empestado. Bem vê que me atam um guizo a uma perna, como se eu fosse um animal bravio. Jean Valjean cada vez meditava mais profundamente. «Este convento salvar-nos-ia», murmurou ele. Depois, levantando a voz: — A grande dificuldade está em poder ficar. — Nada — disse Fauchelevent — a grande dificuldade está em poder sair. Jean Valjean sentiu o sangue refluir-lhe ao coração. — Sair! — Sim, senhor Madelaine; para tornar a entrar é preciso que tenha saído. E depois de deixar passar o ruído duma badalada do dobre, Fauchelevent prosseguiu: — Não é possível que o encontrem aqui deste modo. De onde veio o senhor? Cá para mim caiu do céu, porque o conheço; mas para as religiosas é preciso que entre pela porta. De repente, ouviu-se o dobre acrescentado com o som doutra sineta. — Aí está! — disse Fauchelevent — tocam as madres vocais. Vão para o capítulo quando alguma morre. Esta morreu ao amanhecer; é quase sempre ao amanhecer que se morre. Mas o senhor não poderia sair por onde entrou? Ora vejamos, isto é curiosidade, por onde foi que entrou? Jean Valjean empalideceu; só a ideia de tornar a encontrar-se na temível rua o fazia estremecer. Saí de uma floresta infestada de Ɵgres, e uma vez fora, imaginai um amigo aconselhando-vos para que torneis a entrar nela. Jean Valjean supunha ainda toda a polícia acumulada no bairro, parecia-lhe ver os agentes em observação, senƟnelas por todos os cantos, medonhos punhos pretendendo agarrá-lo pelo pescoço, e talvez Javert à esquina da rua. — É impossível! — disse ele. — Senhor Fauchelevent, diga que caí do céu. — Eu cá por mim acredito — retorquiu Fauchelevent — não precisa dizer-me. Deus pegou-lhe talvez pela mão para o ver de mais perto, e deixou-o em seguida cair. Mas enganou-se; o que Ele queria decerto era deixá-lo cair num convento de homens. Olhe, ainda outro toque. Este é para dizer ao porteiro que vá prevenir a municipalidade para que mande avisar o médico dos mortos., o qual deve vir cerƟficar-se de que morreu aqui uma pessoa. Tudo isto são as cerimónias da morte. As pobres freiras nem por isso gostam desta visita, porque, enfim, um médico é um homem que não acredita em nada. Elevem, levanta o véu, às vezes levanta também outra coisa. Mas como desta vez mandaram avisar o médico depressa! Que demónio haverá lá? A sua pequena ainda dorme? Como se chama ela? — Cosette. — É sua filha, quero dizer, é sua neta? — É. — Lá para ela sair daqui, isso é fácil. A porta por onde eu entro e saio, deita para o páƟo. Chego, bato, o porteiro abre e eu saio com o meu cesto às costas e a pequena dentro. Não tem nada; é o senhor Fauchelevent que sai com o seu cesto. Mas o senhor há-de dizer à pequena para ela estar muito quieta. Deste modo e com a tampa por cima, ninguém é capaz de adivinhar o que lá vai dentro. Depois levo-a para casa de uma fruteira minha amiga, que mora na rua do Caminho Verde. É velha e surda, mas muito boa mulher. Lá fica a pequena bem, porque ela tem uma caminha muito arranjada. Para ela não desconfiar, grito-lhe aos ouvidos que é uma sobrinha minha e que, portanto, ma guarde até ao outro dia. Depois a pequena há-de entrar consigo, pois eu hei-de fazê-lo entrar, isso é que não tem remédio. Mas para sair, para sair, como há-de o senhor arranjar? Jean Valjean abanou a cabeça. — Senhor Fauchelevent, o ponto está em que ninguém me veja. Veja se arranja a que eu saia também, como Cosette, dentro de um cesto com uma tampa por cima. Fauchelevent, porém, em vez de responder, coçava a ponta da orelha com o dedo médio da mão esquerda, sinal de sério embaraço, a que um terceiro toque veio fazer diversão. — Lá se vai embora o médico dos defuntos — disse Fauchelevent. — O médico chega, olha e depois diz: «Está bom; está morta». Depois que o médico visa o passaporte para o outro mundo, o armador manda um caixão. Se é alguma madre, são as madres que a metem dentro; se é soror, são as sorores. Depois quem prega sou eu. Esta tarefa também faz parte cá da minha jardinagem. Um jardineiro também é meio coveiro. O caixão leva-se para uma sala inferior da igreja que comunica para a rua e onde não pode entrar mais homem nenhum senão o médico dos defuntos. Eu por homens não me conto, a mim nem aos gatos-pingados. Nessa sala é onde eu prego o caixão. Depois vêm os gatos-pingados buscá-lo, e toca para diante, cocheiro! Como se vai para o céu assim. Trazem um carro vazio, levam-no com alguma coisa dentro. Aqui está como é um enterro. De profundis. Jean Valjean, sem dar atenção ao que Fauchelevent dizia, pusera-se outra vez a contemplar CoseƩe, que dormia ainda, com o rosto iluminado por um raio de sol horizontal e a boca vagamente entreaberta, semelhando um anjo a beber luz. Não ser escutado não é moƟvo para qualquer se calar. O honrado jardineiro continuava, pois, sossegadamente a sua ladainha. — O lugar onde as enterram é no cemitério de Vaugirard. Dizem que vão suprimir o tal cemitério de Vaugirard. É um cemitério anƟgo, fora dos regulamentos e sem uniforme, que vai ser aposentado. É pena, porque era cómodo. O coveiro de lá, o senhor MesƟenne, é um amigo meu. Cá as freiras têm o privilégio de serem levadas para o tal cemitério ao fechar da noite. Há uma ordem expressa da prefeitura que lhes concede isso. Mas que infinidade de coisas acontecidas desde ontem para cá! A madre Crucificação morta, o senhor Madelaine... — Enterrado! — atalhou Jean Valjean tristemente. Fauchelevent mudou o sentido a estas palavras: — Ora essa! Se esƟvesse aqui de todo, então, sim, então podia dizer que estava enterrado. Soou novo toque. Fauchelevent Ɵrou rapidamente do prego a joelheira do chocalho e atou-a ao joelho. — Agora é por mim. É a madre prioresa que quer falar comigo. Mau, que me piquei nos dentes da fivela! Senhor Madelaine, espere aqui por mim, mas não se mexa. Nós temos novidade. Se tiver vontade de comer, acolá está o vinho, o pão e o queijo. E saiu da casinhola gritando: — Eu lá vou, eu lá vou! Jean Valjean viu-o deitar a correr pelo jardim com a maior rapidez que a sua perna coxa lhe permiƟa e lançando de passagem um olhar para o seu meloal. Daí a menos de dez minutos, o senhor Fauchelevent, cujo chocalho afugentava as religiosas por onde ele passava, baƟa ao de leve a uma porta e uma voz agradável respondia: Para sempre, Para sempre, o que queria dizer: Pode entrar. A porta a que ele baƟa era a do locutório reservado ao jardineiro para as necessidades do serviço. Este locutório ficava conơguo à sala do capítulo. Sentada na única cadeira que havia no locutório, estava a prioresa à sua espera

II — Fauchelevent na presença da dificuldade É próprio de certos caracteres e de certas profissões, principalmente dos padres e dos religiosos, ter um ar agitado e grave nas circunstâncias críƟcas. Na ocasião em que Fauchelevent entrou, via-se esta dupla forma da preocupação no rosto da prioresa, que era a agradável e instruída Mademoiselle de Blemeur, madre Inocência, de ordinário tão jovial. O jardineiro fez uma saudação receosa e ficou no limiar da cela. A prioresa, que estava passando uma a uma as contas do seu rosário, ao dar por ele, ergueu a cabeça e disse: — Ah! É você, senhor Fauvent. No convento tinha sido adoptada esta abreviatura. Fauchelevent fez nova saudação. — Eu mandei-o chamar, senhor Fauvent... — Aqui estou, reverenda Madre. — Porque tenho que lhe dizer. — E eu — disse Fauchelevent com uma audácia de que ele interiormente Ɵnha medo — também tenho uma coisa para dizer a vossa reverendíssima. A prioresa fitou os olhos nele. — Ah! Você tem alguma comunicação a fazer-me? — Uma súplica. — Bem, então diga lá. O ex-tabelião Fauchelevent pertencia à categoria dos camponeses dotados de certa audácia. Uma tal ou qual ignorância hábil é uma força: como se não desconfia dela, alcança sempre o seu fim. Fauchelevent habitava no convento havia pouco mais de dois anos e obƟvera as boas graças de toda a comunidade. Sempre solitário e entregue aos seus trabalhos de horƟcultura, não Ɵnha outra coisa a fazer além de ser curioso. Distante como estava de todas aquelas mulheres veladas, girando de um para outro lado, não via diante de si uma agitação de sombras. A força de atenção e de penetração, chegara a resƟtuir a carne a todos aqueles fantasmas, de sorte que aquelas mortas viviam para ele. Era como um surdo, cuja vista adquire maior alcance, ou como um cego cujo ouvido se torna extremamente agudo. Aplicara-se a disƟnguir o som dos diferentes toques, e conseguira-o: de modo que aquele claustro enigmáƟco e taciturno não Ɵnha nada oculto para ele; aquela esfinge dizia-lhe ao ouvido todos os seus segredos. Sabendo tudo, fingia não saber coisa alguma. Era esta a sua arte. Todo o convento o julgava estúpido, o que em religião é um grande mérito. Às madres vocais faziam muito caso de Fauchelevent. Era um curioso mudo, inspirava confiança. Além disto Ɵnha uma vida muito regular; não saía nunca senão por alguma reconhecida necessidade do jardim ou da horta. A discrição deste procedimento era-lhe levada em conta. Mas apesar disto não deixava ele de puxar pela língua a dois homens; no convento, ao porteiro, que sabia as parƟcularidades do locutório; no cemitério, ao coveiro, por cuja intervenção conhecia as parƟcularidades da sepultura; deste modo, Ɵnha, em relação às religiosas, dupla luz que lhe iluminava a vida e a morte. Mas não abusava nunca. A congregação Ɵnha por ele todo o interesse. Velho, coxo, não vendo nunca coisa nenhuma, um tanto surdo; que excelentes qualidades! Dificilmente o substituiriam. O bom do homem, com o desafogo de quem se sente apreciado, encetou, em presença da prioresa, uma arenga campesina, muito difusa e extremamente profunda. Falou por muito tempo da sua idade e enfermidades, do aumento dos anos, que já Ɵnha de contar pelo dobro, das crescentes exigências do trabalho, da grandeza da cerca, das noites que Ɵnha de passar ao relento, como ainda lhe sucedera na úlƟma, em que fora preciso cobrir o meloal com esteiras, por causa da Lua, concluindo por dizer que Ɵnha um irmão (a prioresa fez um movimento) um irmão, já nada moço(segundo movimento da prioresa, mas revelando mais tranquilidade) que, se lhe dessem licença, poderia aquele irmão ir viver na sua companhia, podendo assim ajudá-lo, porque era excelente hortelão, que a comunidade teria no irmão um excelente servo, talvez melhor do que ele; que, doutro modo, se lhe não admiƟssem seu irmão mais velho, como se senƟa sem forças e insuficiente para o trabalho, ver-se-ia obrigado, ainda que com bastante pena, a reƟrar-se; e que seu irmão Ɵnha uma neta que levaria consigo, que se educaria religiosamente em tão santa casa; e que talvez, quem poderia adivinhar?, viesse um dia a ser religiosa. Quando o jardineiro acabou de falar, a prioresa interrompeu a passagem das contas por entre os dedos e disse-lhe: — Poderá você, daqui até à noite, obter uma barra de ferro bem grossa? — Para que fim, reverenda madre? — Para servir de alavanca. — Arranjar-se-á — respondeu Fauchelevent. A prioresa não acrescentou nem mais uma palavra, levantou-se e entrou na casa próxima, que era a sala do capítulo, onde se achavam reunidas as madres. Fauchelevent ficou só.

III — Madre Inocência Decorrido um quarto de hora, pouco mais ou menos, a prioresa tornou a entrar e veio sentar-se outra vez na cadeira. — Senhor Fauvent? — Reverenda Madre. — Conhece a capela? — Eu tenho lá um lugar de onde oiço missa e assisto aos ofícios. — Já entrou alguma vez no coro? — Uma ou duas vezes. — Pois trata-se de erguer uma pedra. — Pesada? — A laje do pavimento que fica ao lado do altar. — A pedra que fecha o carneiro? — Sim. — Para isso era preciso ter a força de dois homens. — Ajuda-o a madre Ascensão, que tem tanta força como um homem. — Ora! Uma mulher nunca é um homem! — Mas nós para o ajudar não temos senão uma mulher. Cada qual dá o que tem. Lá porque D. Mabillon dá quatrocentas e dezassete epístolas de S. Bernardo e que Merlonus Horstius dá só trezentas e sessenta e sete, eu não desprezo Merlonus Horstius. — Nem eu tão-pouco. — O merecimento está em cada um fazer aquilo que pode. Um claustro não é um estaleiro. — Nem uma mulher é um homem. Meu irmão é que é muito forte! — Você levará uma alavanca. — É a única chave que serve em semelhantes portas. — A pedra tem uma argola. — Por onde passarei a alavanca. — E a pedra está disposta de modo que gira sobre si. — Está bem, reverenda madre. Esteja vossa reverendíssima descansada de que hei-de abrir o carneiro. — Hão-de ajudá-lo as quatro madres cantoras para o que for preciso. — E quando o carneiro estiver aberto? — Deve-se tornar a fechá-lo — Mais nada? — Não. — Dê-me as suas ordens, reverenda madre. — Fauvent, olhe que nós temos confiança em si. — Eu estou aqui para tudo o que for preciso. — E para não dizer nada. — Sim, reverenda madre. — Quando o carneiro estiver aberto... — Fechá-lo-ei. — Mas antes disso... — O quê, reverenda madre? — Será necessário depositar nele alguma coisa. Seguiu-se um momento de silêncio. A prioresa, depois de estender o lábio inferior, o que indicava hesitação, continuou: — Senhor Fauvent? — Reverenda madre. — Sabe que morreu esta manhã uma madre? — Não sabia. — Não ouviu o dobre? — Lá no fim da cerca não se ouve nada. — Deveras? — Sabe Deus o que me custa a ouvir o toque que me diz respeito. — Pois morreu ao amanhecer. — E depois esta manhã não soprava o vento lá para o meu lado. — Foi a madre Crucificação. Uma bem-aventurada. A prioresa calou-se, moveu por um instante os lábios como em oração mental, e prosseguiu: — Há três anos que a senhora de Bethune, uma jansenista, se tornou ortodoxa, só por ver orar a madre Crucificação. — É verdade, reverenda madre; agora é que oiço o dobre. — As madres levaram-na para a casa mortuária que dá para a igreja. — Bem sei onde é. — Nenhum outro homem além de você pode ou deve entrar naquela casa. Teria que ver a entrada de um homem na câmara das defuntas! — A maior parte das vezes! — Heim? — A maior parte das vezes! — Que está dizendo? — Eu digo, a maior parte das vezes. — A maior parte das vezes o quê? — Reverenda madre, eu não disse a maior parte das vezes o quê: eu disse, a maior parte das vezes! — Não o percebo. Porque disse a maior parte das vezes? — Por dizer como a reverenda madre. — Mas eu não disse a maior parte das vezes. — A reverenda madre não disse, eu é que disse para dizer como a reverenda madre. Neste momento soaram nove horas. — Às nove horas da manhã e a todas as horas bendito e louvado seja o Sanơssimo Sacramento do altar! — disse a prioresa. — Ámen! — acrescentou Fauchelevent. As horas soaram em muito boa ocasião, porque acabaram com «a maior parte das vezes». É provável que se não fossem elas nunca a prioresa e Fauchelevent se Ɵrariam daquela meada. Fauchelevent limpou o suor. A prioresa tornou a fazer um murmuriozinho interior, provavelmente sagrado, e depois levantou a voz: — A madre Crucificação fez conversões durante a sua vida; depois da sua morte há-de fazer milagres. — Fará decerto — respondeu Fauchelevent, firmando-se nas pernas e esforçando-se por não se tornar a mover dali em diante. — Senhor Fauvent, a comunidade foi abençoada na madre Crucificação. Decerto não é dado a todos morrer como o cardeal Bérulle, celebrando o santo sacriİcio da missa e entregar a alma a Deus pronunciando as palavras: Home igitur oblaƟonem. Mas sem que alcançasse tanta felicidade, foi preciosíssima a morte da madre Crucificação. Teve perfeito conhecimento até ao úlƟmo instante. Falava connosco, e depois falava com os anjos, dando-nos parte das suas úlƟmas vontades. Se você Ɵvesse mais fé e se pudesse ter estado na sua cela, ter-lhe-ia ela curado a perna, tocando-lhe apenas. Conservou-se sempre risonha. Conhecia-se que ressuscitava em Deus. Teve a morte de um anjo. Fauchelevent, julgando que era o fim de uma oração, disse com a maior seriedade: — Ámen! — Senhor Fauvent, é preciso cumprir as vontades dos mortos. A prioresa passou entre os dedos algumas contas do rosário. Fauchelevent conƟnuava calado. A prioresa prosseguiu: — Consultei sobre este ponto muitos eclesiásƟcos que trabalham para a glória de Nosso Senhor, que se ocupam no exercício da vida clerical, e que produzem admiráveis frutos. — Reverenda madre, ouve-se aqui o dobre muito melhor do que lá no jardim. — E depois é mais do que uma morta, é uma santa. — Como a reverenda madre prioresa. — Havia vinte anos que dormia no seu caixão, com permissão expressa do nosso Santo Padre Pio VII. — Aquele que coroou o impera... Bonaparte. Para um homem hábil como Fauchelevent, a recordação era despropositada. Felizmente a prioresa, de todo entregue ao seu pensamento, não o ouviu e continuou: — Senhor Fauvent? — Reverenda madre. — S. Diodoro, arcebispo de Capadócia, quis que inscrevessem sobre a sua sepultura esta única palavra: Acarus, que significa verme da terra; assim se fez. É ou não é verdade? — É verdade, reverenda madre. — O bem-aventurado Mezzocano, abade de Aquila, quis ser enterrado debaixo da forca, e assim se fez. — É verdade. — S. Terêncio, bispo de Port, na embocadura do Tibre para o mar, pediu que lhe gravassem sobre a sepultura o sinal que costumavam pôr sobre as dos parricidas, com a esperança de que quem passasse lhe cuspisse no túmulo; e assim se fez. É preciso obedecer aos mortos. — Assim seja. — O corpo de Bernardo Guidonis, nascido em França, próximo a Roche-Abeille, foi levado, como ele próprio ordenara, e a despeito do rei de Castela, para a igreja dos dominicanos de Limoges, conquanto Bernardo Guidonis fosse bispo de Tuy em Espanha. Poder-se-á dizer o contrário? — Decerto que não, reverenda madre. — O facto é atestado por Plantavit della Fosse. Depois de passar silenciosamente mais algumas contas do rosário, a prioresa continuou: — Senhor Fauvent, a madre Crucificação será sepultada no caixão em que dormiu por espaço de vinte anos. — É justo. — É a continuação do seu sono. — Terei então de a fechar nesse caixão? — Terá! — E poremos de parte o caixão das pompas fúnebres? — Exactamente. — Estou às ordens da reverendíssima comunidade. — Ajudá-lo-ão as quatro madres cantoras. — A pegar no caixão? Não precisarei de ajuda. — Não; a fazê-lo descer. — Para onde? — Para o carneiro. — Qual carneiro? — O que está por baixo do altar. Fauchelevent quase deu um salto. — O carneiro debaixo do altar! — Debaixo do altar. — Mas... — Terá consigo uma barra de ferro. — Sim, mas... — Com a barra de ferro levantará a laje, por meio da argola. — Mas... — É preciso obedecer aos mortos. Ser sepultada no carneiro que está por debaixo do altar da capela, não ser lançada em solo profano, ficar morta onde orou viva; tal foi o voto supremo da madre Crucificação. Eis o que nos pediu, ou antes, nos ordenou. — Mas é proibido. — Proibido pelos homens, ordenado por Deus. — E se vier a saber-se? — Nós temos confiança em si. — Quanto a isso sou como qualquer pedra dos muros do convento. — Reuniu-se o capítulo. As madres vocais, que acabo de consultar e que estão ainda deliberando, decidiram que a madre Crucificação seria sepultada, segundo o desejo que expressou, no seu caixão, sob o nosso altar. Imagine, senhor Fauvent, se agora aqui iam fazer-se milagres. Que glória para Deus nesta comunidade! Os milagres saem dos túmulos. — Mas, reverenda madre, se o delegado de saúde... — S. Bento II, em matéria de sepultura, resistiu a Constantino Pogonat. — No entanto, o comissário de polícia... — Chonodemaire, um dos sete reis alemães que entraram nas Gálias, sob o império de Constâncio, reconheceu expressamente o direito dos religiosos serem enterrados dentro dos muros dos seus conventos, isto é, debaixo do altar. — Mas o inspector da prefeitura... — O mundo não é coisa nenhuma em presença da cruz. MarƟnho, décimo primeiro geral dos Cartuchos, deu à sua ordem esta divisa: Stat crux dum volvitur orbis. — Ámen! — disse Fauchelevent, imperturbável neste modo de se Ɵrar de embaraços, todas as vezes que ouvia alguma coisa em latim. Para quem por muito tempo se conservou calado é suficiente qualquer auditório. Gymnastoras saiu da prisão tendo recolhidos em si muitos dilemas e silogismos, parou diante da primeira árvore que encontrou, começou a arengar-lhe e fez grandes esforços para convencê-la. A prioresa, habitualmente sujeita ao silêncio, e tendo superabundância no seu reservatório, levantou-se e exclamou com a loquacidade de represa solta: — À minha direita tenho Bento, à minha esquerda Bernardo. Quem é Bernardo? É o primeiro abade de Claraval. Fontaines, em Borgonha, é uma terra abençoada por tê-lo visto nascer. Seu pai chamava-se Técelin e sua mãe Alèthe. Principiou Bernardo por Cister para terminar por Claraval; foi ordenado abade por Guilherme de Chainpeaux, bispo de Chalons-sur-Saône; teve setecentos noviços e fundou cento e sessenta mosteiros; no concílio de Sens, que teve lugar em 1140, derrotou Abeillard, Pedro de Bruys, Henri, discípulo deste, e os sequazes de outra espécie de seita, chamados os Apostólicos; confundiu Arnaldo de Brexe, fulminou o monge Raoul, o matador de judeus, presidiu no concílio de Reims, que teve lugar em 1148, fez condenar Gilberto de lá Porée, bispo de PoiƟers; fez condenar Éon de l’Étoile, compôs as desavenças que entre si traziam alguns príncipes, guiou o rei Luís o Novo, aconselhou o papa Eugénio III, regulou o templo, pregou a Cruzada, fez duzentos e cinquenta milagres em sua vida, e só num dia chegou o número destes a trinta e nove. Quem é Bento? É o patriarca do Monte Cassino, é o segundo fundador da SanƟdade Claustral, é o Basílio do Ocidente. A sua ordem produziu quarenta Papas, duzentos cardeais, cinquenta patriarcas, mil e seiscentos arcebispos, quatro mil e seiscentos bispos, quatro imperadores, doze imperatrizes, quarenta e uma rainhas, três mil e seiscentos canonizados, e dura há mil e quatrocentos anos. De um lado S. Bernardo, do outro o delegado de saúde! De um lado S. Bento, do outro o inspector da higiene pública! Nós queremos cá saber do Estado, do armador, do delegado, do inspector, dos regulamentos ou da administração? Não passa por aí ninguém que se não indignasse, se visse o modo como nos tratam. Pois nem sequer podemos ter o direito de dar a Jesus Cristo o nosso pó! Fora lá com os vossos delegados de saúde, que são uma invenção revolucionária! Deus subordinado ao comissário de polícia; aqui está como é o século! Fauvent, silêncio! Fauchelevent não se achava bem sob esta inundação, porém a prioresa continuou: — O direito do mosteiro à sepultura é indubitável para todos. Só os fanáƟcos e os sequazes do erro é que o negam. Vivemos em tempos de bem terrível confusão! Ignorase o que se deve saber e sabe-se o que se deve ignorar. Não se vê senão ímpios e ignorantes em matéria de religião. Há gente, no tempo presente, que não faz disƟnção entre o grandíssimo S. Bernardo e o Bernardo chamado dos Pobres Católicos, eclesiásƟco cheio de bondade que vivia no século XIII. Outros blasfemam, a ponto de comparar o cadafalso de Luís XVI com a cruz de Jesus Cristo, sendo Luís XVI apenas um rei. Já não há justo nem injusto. Sabe-se o nome de Voltaire e não se sabe o nome de César de Bus, e, contudo, César de Bus é um bem-aventurado e Voltaire um desgraçado. O arcebispo passado, o cardeal de Perigord, nem sequer sabia que Carlos de Gondren sucedeu a Bérulle, e Francisco de Bourgoin a Gondren e Jean Francisco Senault Bourgoin, e o pai de Santa Marta a Jean Francisco Senault. Conhece-se o nome do Padre Coton, não porque foi um dos três que cooperaram para a fundação do Oratório, mas por ter sido objecto das imprecações do rei calvinista Henrique IV. O que faz com que as pessoas mundanas gostem de S. Francisco de Sales é ter ele sido trapaceiro ao jogo. E, além disto, ataca-se a religião, e porquê? Porque tem havido maus padres, porque Sagitário, bispo de Gap, era irmão de Salone, bispo de Embrun, e porque ambos seguiram Mommol. Que tem lá isso? Isto obsta acaso a que MarƟnho de Tours fosse um santo e desse metade da sua capa a um pobre? Fecham os olhos às verdades e não querem viver senão nas trevas. Os animais mais ferozes são os que são cegos. Ninguém se lembra que há um inferno. Oh, que maldade de gente! Da parte do rei hoje significa da parte da revolução. Já ninguém sabe o que deve, nem aos vivos nem aos mortos. É proibido morrer santamente. O sepulcro é um negócio civil. Isto causa horror. S. Leão II escreveu expressamente duas cartas, uma a Pedro Notário, outra ao rei dos Visigodos, para combater e rejeitar, nas questões que dizem respeito aos mortos, a autoridade do exarca e a supremacia do imperador. GauƟer, bispo de Chalons, neste ponto resisƟa a Otão, duque de Borgonha. Noutro tempo ơnhamos nós voto em capítulo, mesmo nas coisas do Século. O abade de Cister, geral da ordem, era conselheiro nato no parlamento de Borgonha. Quanto aos nossos mortos, desses fazíamos o que queríamos. O corpo do próprio S. Bento não está em França, na abadia de Fleury, chamada S. Bento de Loire, apesar de ter morrido na Itália, no Monte Cassino, num sábado 21 de Março do ano 543? Tudo isto é incontestável. Eu aborreço as coristas, odeio os priores, execro os hereges, mas ainda detestaria mais quem me sustentasse o contrário. Basta ler Arnoul Wion, Gabriel Bucelin, Tritemo, Maurolicus e D. Lucas de Achery. Neste momento a prioresa respirou e depois voltou-se para Fauchelevent: — Senhor Fauvent, está combinado? — Sim, reverenda madre. — Podemos contar consigo? — Hei-de obedecer. — Está bem. — Eu sou inteiramente dedicado ao convento. — Ficamos entendidos. Você fecha o caixão que as sorores hão-de levar para a capela. Canta-se o oİcio dos defuntos e depois entra-se para o claustro. Por volta das onze horas para a meia-noite, você vem com a sua alavanca. Mas tudo há-de ser feito com o maior segredo. Na capela não está mais ninguém senão as quatro madres cantoras, a madre Ascensão e você. — E a soror que estiver no poste. — Essa está, mas não se volta. — Mas ouve. — Ela não escuta. Quanto mais, o que sabe o claustro. Ignora-o o mundo. Houve ainda outra pausa, após a qual a prioresa prosseguiu: — Mas Ɵre o chocalho. É escusado que a soror que esƟver de poste conheça que anda na capela. — Reverenda madre? — Que é, senhor Fauvent? — O médico dos defuntos já veio fazer a visita do costume? — Fá-la hoje às quatro horas. Já para ele vir se fez o sinal. Mas então você, realmente, não ouve sinal nenhum? — Eu não presto atenção senão ao que é para chamar por mim. — Está bem, senhor Fauvent. — Reverenda madre, há-de ser precisa uma alavanca que tenha pelo menos seis pés. — Aonde a há-de arranjar? — Onde não faltam grades não faltam barras de ferro. Num canto do jardim tenho lá um montão de ferros velhos. — Não se esqueça, três quartos de hora antes da meia-noite, pouco mais ou menos. — Reverenda madre? — Que é? — Se vossa reverendíssima Ɵver mais alguma obra como esta, eu chamo meu irmão, que é forte como um turco! — Há-de andar o mais depressa que puder. — Lá isso é que eu não poderei muito bem, porque sou aleijado aqui de uma perna. Por isso é que eu queria outro homem que me ajudasse. Sou coxo, reverenda madre. — Ser coxo não é defeito, ou antes, talvez seja uma bênção. O imperador Henrique II, que combateu o anƟ-Papa Gregório e restabeleceu Bento VIII, teve dois sobrenomes, o de Santo e o de Coxo. — Oh, dois sobrenomes é bem boa coisa! — murmurou Fauchelevent, que na realidade, não era muito fino de ouvido. — Senhor Fauvent, lembra-me que será melhor marcar uma hora inteira; talvez se não arranje tudo nos três quartos de hora. Não é de mais. Esteja, portanto, ao pé do altarmor, com a sua barra de ferro, às onze horas. O oİcio principia à meia-noite. Porém deve estar tudo concluído um bom quarto de hora antes. — Hei-de fazer tudo para provar o meu zelo à comunidade. Aqui está como é. As onze horas em ponto, depois de ter pregado o caixão, devo estar na capela, onde estarão as madres cantoras e a madre Ascensão. Dois homens era melhor. Mas, enfim, não importa! Como eu levo a alavanca... Devemos abrir o carneiro, descer o caixão e torná-lo a fechar. Depois passe por lá muito bem. O governo não saberá de coisa nenhuma. Reverenda madre, fica tudo assim bem arranjado? — Não. — Então que temos ainda? — Resta o caixão vazio. Isto causou uma pausa. Fauchelevent e a prioresa meditavam. — Senhor Fauvent, que se há-de fazer do caixão vazio? — Leva-se para o cemitério. — Vazio? Outro silêncio. Fauchelevent, porém, fez com a mão esquerda essa espécie de gesto com que se despede uma pergunta molesta. — Reverenda madre, como sou eu o que hei-de pregar o caixão, na sala inferior da igreja, como lá não pode entrar mais ninguém senão eu, cubro a tumba com o pano mortuário. — Sim, mas os que a conduzem, ao pô-la no carro e ao descê-la à cova, conhecerão que não leva nada dentro. — Ah! di... — exclamou Fauchelevent. A prioresa fez o sinal da cruz, fitando os olhos no jardineiro. «Abo» ficou-lhe na garganta. Apressou-se, porém, a improvisar um expediente para fazer esquecer a praga. — Reverenda madre, sabe o que eu faço? Encho o caixão de terra, de modo que há-de parecer que leva gente. — Tem razão. A terra é a mesma coisa que o homem. De maneira que você arranja o caixão vazio? — Deixe-me cá o negócio por minha conta. O rosto da prioresa, até então turvo e escuro, serenou e a madre fez-lhe o sinal do superior que despede o inferior. Fauchelevent dirigiu-se para a porta, porém, no momento em que ia a sair, a prioresa elevou de mansinho a voz e disse-lhe: — Senhor Fauvent, estou saƟsfeita consigo; amanhã depois do enterro, traga-me seu irmão e diga-lhe que traga também a criança.

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