segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A incrível e triste historia de Candida Eréndira e sua avó desalmada

A avó examinou-o de corpo inteiro, sem o diminuir, mas tentando calcular o verdadeiro tamanho dos seus tomates. - Por mim não há inconveniente - disse-lhe -, se me pagas o que perdi pelo seu descuido. São oitocentos e setenta e dois mil e trezentos e quinze pesos, menos quatrocentos e vinte que já me pagou, ou seja, oitocentos e setenta e um mil oitocentos e noventa e cinco. O camião arrancou. - Creia-me que lhe daria esse montão de dinheiro se o tivesse - disse o carregador com seriedade. - A menina vale-os. À avó caiu-lhe bem a decisão do rapaz. - Pois volta quando o tiveres, filho - replicou-lhe num tom simpático -, mas agora parte, que, se voltamos a fazer as contas, ainda me estás a dever dez pesos. O carregador saltou para a plataforma do camião, que se afastava. Daí disse adeus a Eréndira com a mão, mas ela estava ainda tão assustada que não lhe retribuiu. No mesmo terreno baldio onde as deixou o camião, Eréndira e a avó improvisaram uma barraca para viver, com folhas de zinco e restos de tapetes asiáticos. Puseram duas esteiras no solo e dormiram tão bem como na mansão, até que o sol abriu buracos no tecto e lhes abrasou a cara. Ao contrário de sempre, foi a avó quem nessa manhã se ocupou de arranjar Eréndira. Pintou-lhe a cara com um estilo de beleza sepulcral que tinha estado na moda durante a sua juventude e arrematou-a com umas pestanas postiças e um laço de organdi que parecia uma borboleta na cabeça. - Achas-te horrorosa - admitiu -, mas assim é melhor: os homens são muito duros em assuntos de mulheres. Ambas reconheceram, muito antes de vê-las, os passos de duas mulas na secura do deserto. A uma ordem da avó, Eréndira deitou-se na esteira, como o teria feito uma aprendiza de teatro no momento em que ia abrir-se o pano de boca. Apoiada no bordão episcopal, a avó abandonou a barraca e sentou-se no trono à espera da passagem das mulas. Aproximava-se o homem do correio. Não tinha mais de vinte anos, embora estivesse envelhecido pelo ofício, e trazia um fato de caqui, polainas, capacete de cortiça, e uma pistola de militar no cinturão de cartucheiras. Montava uma boa mula e levava outra de cabresto, menos robusta, sobre a qual se amontoavam os sacos de lona do correio. Ao passar em frente da avó, saudou-a com a mão e continuou o caminho. Mas ela fez um sinal para que deitasse um olhar no interior da barraca. O homem deteve-se, e viu Eréndira deitada na esteira com os seus adornos póstumos e um vestido de sanefas cor de amora. - Agrada-te? - perguntou a avó. O homem do correio não tinha compreendido até esse momento o que lhe estavam a propor. - Em jejum não está mal - riu levemente. - Cinquenta pesos - disse a avó. - Ena! Deve tê-la de ouro! - disse ele. - Isso é o que me custa a comida de um mês. - Não sejas agarrado - disse a avó. - O correio aéreo tem melhor ordenado que um cura. - Eu sou o correio nacional - disse o homem. - O correio aéreo é esse que anda numa camioneta. - De qualquer maneira, o amor é tão importante como a comida - disse a avó. - Mas não alimenta. A avó compreendeu que a um homem que vivia das esperanças alheias lhe sobejava demasiado tempo para regatear. - Quanto tens? - perguntou-lhe. O correio desmontou, tirou do bolso umas notas amarrotadas e mostrou-as à avó. Ela apanhou-as todas juntas, com uma mão de ave de rapina, como se fossem um novelo. - Faço-te um abatimento - disse -, mas com uma condição: fazes propaganda por toda a parte. - Até ao outro lado do mundo - disse o homem do correio. - É para isso que sirvo. Eréndira, que não tinha podido pestanejar, tirou então as pestanas postiças e chegouse para um lado da esteira para deixar espaço ao noivo casual. Mal ele entrou na barraca, a avó fechou a entrada com um puxão enérgico na cortina de correr. Foi um tratado eficaz. Atraídos pelas vozes do correio, vieram homens de muito longe, para conhecer a novidade de Eréndira. Atrás dos homens vieram mesas de jogos de azar e barracas de comida e atrás de todos veio um fotógrafo em bicicleta, que instalou em frente do acampamento um aparelho de cavalete, com manga de luto e uma tela de fundo com um lago de cisnes inválidos. A avó, abanando-se no trono, parecia alheia à sua própria feira. A única coisa que lhe interessava era a ordem na fila dos clientes que esperavam turno e a exactidão do dinheiro que pagavam adiantadamente para entrar na tenda de Eréndira. Ao princípio tinha sido tão severa que até chegou a repelir um bom cliente porque lhe faltavam cinco pesos. Mas, com o decorrer dos meses, foi assimilando as lições da realidade e acabou por admitir que completassem o pagamento com medalhas de santos, relíquias de família, anéis matrimoniais e tudo quanto fosse capaz de demonstrar, mordendo-o, que era ouro de boa lei, embora não brilhasse. Ao cabo de uma longa estadia naquela primeira povoação, a avó teve suficiente dinheiro para comprar um burro, e internou-se no deserto em busca de outros lugares mais propícios para pagar-se da dívida. Viajava numa padiola que tinham improvisado sobre o burro e protegia-se do Sol imóvel com o guarda-chuva desvaretado que Eréndira mantinha por cima da sua cabeça. Atrás delas caminhavam quatro índios de carga com os pedaços do acampamento: as esteiras de dormir, o trono restaurado, o anjo de alabastro e o baú com os restos dos Amadises. O fotógrafo perseguia a caravana na sua bicicleta, mas sem se aproximar, como se fosse para outra festa. Tinham passado seis meses desde o incêndio quando a avó pôde ter uma visão inteira do negócio. - Se as coisas continuam assim - disse a Eréndira -, ter-me-ás pago a dívida dentro de oito anos, sete meses e onze dias. - Voltou a examinar os seus cálculos, com os olhos fechados, ruminando os grãos que tirava de uma fraldiqueira de bainha onde tinha também o dinheiro, e precisou: - Claro que tudo isso é sem contar com os salários e a comida dos índios, e outros gastos menores. Eréndira, que caminhava ao passo do burro, angustiada pelo calor e o pó, não fez nenhuma crítica às contas da avó, mas teve de conter-se para não chorar. - Tenho vidro moído nos ossos - disse. - Tenta dormir. - Sim, avó. Fechou os olhos, respirou a fundo uma baforada de ar escaldante e continuou a caminhar adormecida. Uma camioneta carregada de jaulas apareceu, espantando chibos entre a poeirada do horizonte, e o alvoroço dos pássaros foi um jorro de água fresca na modorra dominical de San Miguel del Desierto. Ao volante ia um corpulento fazendeiro com a pele rachada pela intempérie e uns bigodes cor de esquilo que tinha herdado de algum bisavô. Seu filho Ulisses, que viajava no outro banco, era um adolescente dourado, de olhos marítimos e solitários, com a identidade de um anjo furtivo. Ao holandês chamou-lhe a atenção uma barraca de campanha em frente da qual esperavam vez todos os soldados da guarnição local. Estavam sentados no solo, bebendo de uma mesma garrafa, que passavam de boca em boca, e tinham ramos de amendoeira na cabeça, como se estivessem emboscados para um combate. O holandês perguntou na sua língua: - Que diabos venderão ali? - Uma mulher - respondeu-lhe seu filho, com toda a naturalidade. - Chama-se Eréndira. - Como o sabes? - Toda a gente o sabe no deserto - respondeu Ulisses. O holandês desceu no hotelzinho da povoação. Ulisses ficou na camioneta, abriu com os dedos ágeis uma pasta de negócios que o seu pai tinha deixado no assento, tirou um maço de notas, meteu várias nos bolsos e tornou a deixar tudo como estava. Nessa noite, enquanto o seu pai dormia, saiu pela janela do hotel e foi meter-se na bicha em frente da tenda de campanha de Eréndira. A festa estava no seu esplendor. Os recrutas, embriagados, dançavam sós, para não desperdiçar a música grátis, e o fotógrafo tirava retratos nocturnos com auxílio de magnésio. Enquanto controlava o negócio, a avó contava notas no solo, repartia-as em maços iguais e arrumava-as dentro de um cesto. Não havia nessa altura mais do que doze soldados, mas a bicha da tarde tinha crescido com clientes civis. Ulisses era o último. O turno correspondia a um soldado de aparência lúgubre. A avó não só lhe impediu a passagem, como evitou o contacto com o seu dinheiro. - Não, filho - disse-lhe -, tu não entras, nem por todo o ouro do mundo. És ave de mau agouro. O soldado, que não era daquelas terras, surpreendeu-se. - Que é isso? - Que contagias a má sombra - disse a avó. - Basta olhar-te para a cara. Afastou-o com a mão, mas sem lhe tocar, e deu passagem ao soldado seguinte. - Entra tu, valentão - disse-lhe, com boa disposição. - E não te demores, que a pátria precisa de ti. O soldado entrou, mas tornou a sair imediatamente, porque Eréndira queria falar com a avó. Ela pendurou no braço o cesto de dinheiro e entrou na tenda de campanha, cujo espaço era estreito, mas ordenado e limpo. No fundo, numa cama de tela, Eréndira não podia reprimir o tremor do corpo, estava maltratada e suja de suor de soldados. - Avó - soluçou -, estou a morrer. A avó tocou-lhe na testa e, ao constatar que não tinha febre, tentou consolá-la. - Já não faltam mais de dez militares - disse. Eréndira desatou a chorar, com uns grunhidos de animal sobressaltado. A avó então soube que tinha transposto os limites do horror, e, acariciando-lhe a cabeça, ajudou-a a acalmar-se. - O que sucede é que estás fraca - disse-lhe. - Anda, não chores mais, lava-te com água de sálvia, para que se te restaure o sangue. Saiu da tenda quando Eréndira começou a ficar serena e devolveu o dinheiro ao soldado que esperava. «Acabou-se por hoje», disse-lhe. «Volta amanhã e dou-te o primeiro lugar.» A seguir, gritou aos da fila: - Acabou-se rapazes. Até amanhã, às nove. Soldados e civis romperam fileiras com gritos de protesto. A avó enfrentou-os de bom grado, mas brandindo a sério o bordão devastador. - Malcriados! Ordinários! - gritava. - O que é que imaginam, que essa criatura é de ferro? Bem gostaria eu de vê-los na situação dela. Pervertidos! Apátridas de merda! Os homens replicavam-lhe com insultos mais grosseiros, mas ela acabou por dominar a revolta e manteve-se de guarda com o bordão, até que levaram as mesas de fritadas e desmontaram as tendas de jogos. Dispunha-se a voltar à tenda quando viu Ulisses de corpo inteiro, só, no espaço vago e escuro onde antes estivera a fila de homens. Tinha uma aura irreal e parecia visível na penumbra pelo fulgor próprio da sua beleza. - E tu - disse-lhe a avó -, onde deixaste as asas? - Quem as tinha era o meu avô - respondeu Ulisses, com a sua naturalidade -, mas ninguém o acredita. A avó voltou a examiná-lo com uma atenção enfeitiçada. «Pois eu, sim, acredito», disse. «Trá-las postas amanhã.» Entrou na tenda e deixou Ulisses a arder no seu sítio. Eréndira sentiu-se melhor depois do banho. Tinha vestido uma combinação curta e bordada e estava a secar o cabelo para deitar-se, mas ainda fazia esforços para reprimir as lágrimas. A avó dormia. Por trás da cama de Eréndira, muito devagar, Ulisses assomou a cabeça. Ela viu os olhos ansiosos e diáfanos, mas, antes de dizer alguma coisa, esfregou a cara com a toalha, para ter a prova de que não era uma ilusão. Quando Ulisses pestanejou pela primeira vez, Eréndira perguntou-lhe em voz muito baixa: - Quem és tu? Ulisses mostrou-se até aos ombros. «Chamo-me Ulisses», disse. Mostrou-lhe as notas roubadas e acrescentou: - Trago o dinheiro. Eréndira apoiou as mãos em cima da cama, aproximou a sua cara da de Ulisses e continuou a falar com ele como numa brincadeira de escola primária. - Tinhas de te pôr na bicha - disse. - Esperei toda a noite - disse Ulisses. - Pois agora tens de esperar até amanhã - disse Eréndira. - Sinto-me como se me tivessem dado com trancas nos rins. Nesse instante a avó começou a falar adormecida. - Vai fazer vinte anos que choveu a última vez - disse. - Foi uma tormenta tão terrível que a chuva veio de mistura com água do mar e a casa amanheceu cheia de peixes e de conchas, e o teu avô Amadís, que em paz descanse, viu uma manta luminosa a navegar pelo ar. Ulisses voltou a esconder-se por detrás da cama. Eréndira teve um sorriso divertido. - Fica sossegado - disse-lhe. - Sempre fica como louca quando está adormecida, mas não acorda nem com um tremor de terra. Ulisses mostrou-se de novo. Eréndira contemplou-o com um sorriso travesso, e até um pouco carinhoso, e tirou da esteira o lençol usado. - Vem - disse-lhe -, ajuda-me a mudar o lençol. Então Ulisses saiu de trás da cama e segurou o lençol por uma ponta. Como era um lençol muito mais grande que a esteira, eram necessários vários tempos para o dobrar. No fim de cada dobra, Ulisses estava mais perto de Eréndira. - Estava doido por ver-te - disse subitamente. - Toda a gente diz que és muito bela, e é verdade. - Mas vou morrer - disse Eréndira. - A minha mãe diz que os que morrem no deserto não vão para o céu, mas para o mar - disse Ulisses. Eréndira pôs de lado o lençol sujo e cobriu a esteira com outro, limpo e engomado. - Não conheço o mar - disse. - É como o deserto, mas com água - disse Ulisses. - Então não se pode andar. - O meu papá conheceu um homem que sim, que podia - disse Ulisses -, mas há muito tempo. Eréndira estava encantada, mas queria dormir. - Se vens amanhã bem cedo, pões-te no primeiro lugar- disse. - Parto com o meu papá pela madrugada - disse Ulisses. - E não voltam a passar por aqui? - Sabe-se lá quando - disse Ulisses. - Agora passámos por acaso, porque nos perdemos no caminho da fronteira. Eréndira olhou, pensativa, para a avó adormecida. - Bem - decidiu -, dá-me o dinheiro. Ulisses deu-lho. Eréndira deitou-se na cama, mas ele permaneceu trémulo no seu sítio: no instante decisivo, a sua determinação tinha fraquejado. Eréndira tomou-o pela mão, para que se apressasse, e só então reparou na sua tribulação. Ela conhecia esse medo. - É a primeira vez? - perguntou-lhe. Ulisses não respondeu, mas teve um sorriso desolado. Eréndira tornou-se diferente. - Respira devagar - disse-lhe. - É sempre assim ao princípio, e depois nem dás por isso. Deitou-o ao seu lado, e, enquanto lhe tirava a roupa, foi-o apaziguando com recursos maternos. - Como é que te chamas? - Ulisses. - É nome de gringo - disse Eréndira. - Não, de navegante. Eréndira descobriu-lhe o peito, deu-lhe beijinhos órfãos, farejou-o. - Pareces todo de ouro - disse -, mas cheiras a flores. - Deve ser a laranjas - disse Ulisses. Já mais tranquilo, teve um sorriso de cumplicidade. -Andamos com muitos pássaros, para despistar - acrescentou -, mas o que levamos para a fronteira é um contrabando de laranjas. - As laranjas não são contrabando - disse Eréndira. - Estas sim - disse Ulisses. - Cada uma custa cinquenta mil pesos. Eréndira riu-se pela primeira vez, desde havia muito tempo. - O que mais gosto de ti - disse -, é a seriedade com que inventas os disparates. Tinha-se tornado espontânea e loquaz como se a inocência de Ulisses lhe tivesse mudado não só o humor, como também a índole. A avó, a tão curta distância da fatalidade, continuou a falar adormecida. - Por esses tempos, em princípios de Março, trouxeram-te para casa - disse. - Parecias uma lagartixa envolvida em algodões. Amadís, teu pai, que era jovem e bonito, estava tão contente naquela tarde que mandou buscar cerca de vinte carroças carregadas de flores, e chegou gritando e atirando flores pela rua, até que todo o povoado ficou doirado de flores como o mar. Delirou várias horas, em altos gritos, e com uma paixão obstinada. Mas Ulisses não a ouviu, porque Eréndira o tinha amado tanto, e com tanta sinceridade, que tornou a amá-lo pela metade do seu preço, enquanto a avó delirava, e continuou a amá-lo sem dinheiro até ao amanhecer. Um grupo de missionários com os crucifixos levantados tinham-se fincado ombro a ombro no meio do deserto. Um vento tão bravo como o da desgraça sacudia os seus hábitos de canhamaço e as suas barbas agrestes, e mal lhes permitia manterem-se de pé. Atrás deles estava o edifício da missão, um promontório colonial com um campanário minúsculo sobre os muros ásperos e caiados. O missionário mais jovem, que comandava o grupo, apontou com o indicador uma greta natural no solo de argila vidrada. - Não passem essa risca - gritou. Os quatro carregadores índios que transportavam a avó num palanquim de tábuas detiveram-se ao ouvir o grito. Apesar de ir mal sentada no soalho do palanquim e de ter o ânimo entorpecido pelo pó e o suor do deserto, a avó mantinha-se na sua altivez. Eréndira ia a pé. Atrás do palanquim havia uma fila de oito índios de carga, e por fim o fotógrafo na bicicleta. - O deserto não é de ninguém - disse a avó. - É de Deus - disse o missionário -, e violais as suas santas leis com o vosso tráfico imundo. A avó reconheceu então a forma e a dicção peninsulares do missionário e iludiu o encontro frontal, para não se sair mal contra a sua intransigência. Voltou a ser ela mesma. - Não entendo os teus mistérios, filho. O missionário indicou Eréndira. - Essa criatura é menor de idade. - Mas é minha neta. - Ainda pior - replicou o missionário. - Põe-na debaixo da nossa custódia, às boas, ou teremos de recorrer a outros métodos. A avó não esperava que chegassem a tanto. - Está bem - cedeu, assustada. - Mas mais tarde ou mais cedo passarei, hás-de ver. Três dias depois do encontro com os missionários, a avó e Eréndira dormiam numa povoação próxima do convento, quando uns corpos sigilosos, mudos, rastejando como patrulhas de assalto, deslizaram para dentro da tenda de campanha. Eram seis noviças índias, fortes e jovens, com os hábitos de tela crua que pareciam fosforescentes nos lampejos de Lua. Sem fazer um único ruído, cobriram Eréndira com um toldo de mosquiteiro, levantaram-na, sem a acordar, e levaram-na embrulhada como um peixe grande e frágil capturado numa rede lunar. Não houve um recurso que a avó não tivesse intentado para resgatar a neta da tutela dos missionários. Só quando lhe falharam todos, desde os mais direitos aos mais torcidos, recorreu à autoridade civil, que era exercida por um militar. Encontrou-o no pátio da sua casa, com o torso nu, disparando com um rifle de guerra contra uma nuvem escura e solitária no céu ardente. Tentava perfurá-la, para que chovesse, e os seus disparos eram encarniçados e inúteis, mas fez as pausas necessárias para escutar a avó. - Eu não posso fazer nada - explicou-lhe, quando acabou de ouvi-la -, os padrezinhos, de acordo com a Concordata, têm direito a ficar com a menina até que seja maior de idade. Ou até que se case. - E então para que o têm a si como alcaide? - perguntou a avó. - Para que faça chover - disse o alcaide. A seguir, vendo que a nuvem se tinha posto fora do seu alcance, interrompeu os seus deveres oficiais e ocupou-se completamente da avó. - O que a senhora precisa é de uma pessoa de muita influência que responda por si - disse-lhe. - Alguém que garanta a sua moralidade e os seus bons costumes, com uma carta assinada. Não conhece o senador Onésimo Sánchez? Sentada sob o sol puro num tamborete demasiado estreito para as suas nádegas siderais, a avó respondeu com uma raiva solene: - Sou uma pobre mulher isolada na imensidade do deserto. O alcaide, com o olho direito torcido pelo calor, contemplou-a com dó. - Então não perca mais tempo, senhora - disse. - Levou-a o Diabo. Não a levou, é de supor. Instalou a tenda em frente do convento da missão e sentou-se a pensar, como um guerreiro solitário que mantivesse em estado de sítio uma cidade fortificada. O fotógrafo ambulante, que a conhecia muito bem, carregou os seus utensílios na grade da bicicleta e dispôs-se a partir só, quando a viu em pleno sol, os olhos fixos no convento. - Vamos a ver quem se cansa primeiro - disse a avó -, eles ou eu. - Eles estão ali há trezentos anos, e ainda aguentam - disse o fotógrafo. - Eu vou-me embora. Só então a avó viu a bicicleta carregada. - Para onde vais? - Para onde me leve o vento - disse o fotógrafo, e foi-se embora. - O mundo é grande. A avó suspirou. - Não tanto como tu pensas, desmerecido. Mas não moveu a cabeça, apesar do rancor, para não apartar a vista do convento. Não a apartou durante muitos dias de calor mineral, durante muitas noites de ventos perdidos, durante o tempo da meditação, em que ninguém saiu do convento. Os índios construíram um alpendre de palmas junto da tenda, e ali instalaram as suas redes, mas a avó velava até muito tarde, cabeceando no seu trono e ruminando os cereais crus da sua fraldiqueira com a indolência invencível de um boi deitado. Uma noite passou muito perto dela uma fila de camiões tapados, lentos, cujas únicas luzes eram umas grinaldas de focos de cores que lhes davam um tamanho espectral de altares sonâmbulos. A avó reconheceu-os imediatamente, porque eram iguais aos camiões dos Amadises. O último do séquito atrasou-se, deteve-se e um homem desceu da cabina para arranjar alguma coisa na plataforma da carga. Parecia uma réplica dos Amadises, com um barrete de aba revirada, botas altas, duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil militar e duas pistolas. Vencida por uma tentação irresistível, a avó chamou o homem. - Não sabes quem sou? - perguntou-lhe. O homem iluminou-a sem piedade, com uma lanterna de pilhas. Contemplou durante um momento o rosto estragado pela vigília, os olhos apagados de cansaço, o cabelo desbotado da mulher que, mesmo com a idade que tinha, teria podido dizer que tinha sido a mais bela do mundo. Depois de a examinar suficientemente, para se convencer de que não a tinha visto nunca, apagou a lanterna. - A única coisa que sei com toda a certeza - disse -, é que você não é a Virgem dos Remédios. - Exactamente o contrário - disse a avó, com uma voz doce. - Sou a Dama. O homem pôs a mão na pistola, por puro instinto. - Qual dama? - A de Amadís, o Grande. - Então não é deste mundo - disse ele, tenso. - O que é que quer? - Que me ajudem a resgatar a minha neta, neta de Amadís, o Grande, filha do nosso Amadís, que está presa nesse convento. O homem dominou os seus receios. - Enganou-se na porta - disse. - Se pensa que somos capazes de contrariar os desígnios de Deus, você não é a que diz que é, nem sequer conheceu os Amadises, nem tem a mais pura ideia do que é o contrabando. Nessa madrugada a avó dormiu menos que nas anteriores. Passou-a a ruminar, envolvida numa manta de lã, enquanto o tempo da noite lhe confundia a memória e os delírios reprimidos lutavam por sair, embora estivesse acordada, e tinha de apertar o coração com a mão para que não a sufocasse a recordação de uma casa de praia com grandes flores coloridas, onde tinha sido feliz. Assim se manteve até que tocou o sino do convento e se acenderam as primeiras luzes nas janelas e o deserto se encheu do cheiro a pão quente das matinas. Só então se abandonou ao cansaço, enganada pela ilusão de que Eréndira se tinha levantado e estava a procurar a maneira de escapar-se para voltar para ela. Eréndira, em contrapartida, não perdeu nem uma noite de sono desde que a levaram para o convento. Tinham-lhe cortado o cabelo com umas tesouras de podar, até lhe deixarem a cabeça como uma escova, vestiram-lhe o rude balandrau de tela das reclusas e entregaram-lhe um balde de água de cal e uma escova, para que caiasse os degraus das escadas cada vez que alguém os pisasse. Era um trabalho de mula, porque havia um subir e descer incessante de missionários cobertos de barro e noviças de carga, mas Eréndira sentiu-o como um domingo de todos os dias depois da galera mortal da cama. Além disso, não era ela a única esgotada quando anoitecia, pois aquele convento não estava consagrado à luta contra o Demónio, mas à luta contra o deserto. Eréndira tinha visto as noviças indígenas desbravando as vacas com pancadas no pescoço, para ordenhá-las nos estábulos, saltando dias inteiros sobre as tábuas para espremer os queijos, assistindo as cabras num parto difícil. Tinha-as visto transpirar como estivadores curtidos tirando a água do poço, regando à mão uma horta temerária que outras noviças tinham lavrado com enxadões para plantar legumes no pedernal do deserto. Tinha visto o inferno terrestre dos fornos do pão e os alojamentos de pranchas. Tinha visto uma freira a perseguir um porco pelo pátio, viu-a escorregar com o porco chimarrão agarrado pelas orelhas e rebolar-se num barrocal sem o largar, até que duas noviças com aventais de couro a ajudaram a dominá-lo e uma delas o degolou com uma faca de magarefe e todas ficaram empapadas de sangue e de lodo. Tinha visto no pavilhão afastado do hospital as freiras tísicas, com os seus camisões de mortas, que esperavam a última ordem de Deus bordando lençóis matrimoniais nos terraços, enquanto os homens da missão predicavam no deserto. Eréndira vivia na sua penumbra, descobrindo outras formas de beleza e de horror que nunca tinha imaginado no mundo estreito da cama, mas nem as noviças mais bravias nem as mais persuasivas tinham conseguido que dissesse uma palavra desde que a levaram para o convento. Uma manhã, quando estava misturando a cal com a água num balde, ouviu uma música de cordas que parecia uma luz mais diáfana na luz do deserto. Cativada pelo milagre, assomou a um salão imenso e vazio de paredes nuas e janelas grandes, por onde entrava a jorros e ficava detida a claridade deslumbrante de Junho, e no centro do salão viu uma freira bela que ainda não tinha visto, tocando uma oratória de Páscoa no clavicórdio. Eréndira escutou a música sem pestanejar, com a alma num fio, até que tocou o sino para a refeição. Depois do almoço, enquanto branqueava a escada com a broxa de esparto, esperou que todas as noviças acabassem de subir e descer, ficou só, aonde ninguém a pudesse ouvir, e então falou pela primeira vez desde que tinha entrado no convento. - Sou feliz - disse. De maneira que, para a avó, se tinham acabado as esperanças de que Eréndira se escapasse para voltar para ela, mas manteve o seu assédio de granito, sem tomar nenhuma decisão, até ao Domingo de Pentecostes. Por essa época os missionários percorriam o deserto à procura de concubinas grávidas, para as casar. Iam até às povoações mais esquecidas numa camionetazinha decrépita, com quatro homens da tropa bem armados e um arcaz com géneros de pacotilha. O mais difícil daquela caça de índios era convencer as mulheres, que se defendiam da graça divina com o argumento verídico de que os homens se sentiam com direito a exigir às esposas legítimas um trabalho mais pesado que às concubinas, enquanto eles dormiam esparramados nas redes. Era preciso seduzi-las com recursos de engano, dissolvendo-lhes a vontade de Deus no xarope do seu próprio idioma, para que a achassem menos áspera, mas até as mais manhosas acabavam por se convencer com umas arrecadas de ouropel. Aos homens, em troca, uma vez obtido o assentimento da mulher, tiravam-nos com coronhadas das redes e levavam-nos amarrados na plataforma de carga, para casá-los à força. Durante vários dias a avó viu passar em direcção do convento o camiãozinho carregado de índias grávidas, mas não reconheceu a sua oportunidade. Teve-a no próprio Domingo de Pentecostes, quando ouviu os foguetes e o repenicar dos sinos, e viu a multidão miserável e alegre que passava para a festa, e viu que entre as multidões havia mulheres grávidas com véus e coroas de noiva, levando pelo braço os maridos de acaso para torná-los legítimos na boda colectiva. Entre os últimos do desfile passou um rapaz de coração inocente, de cabelo índio cortado como uma íotuma (Espécie de abóbora americana que, depois de seca, serve para conter líquidos. (N. da T.)) e vestido com andrajos, que levava na mão um círio pascal com um laço de seda. A avó chamou-o. - Explica-me uma coisa, filho - perguntou-lhe, com a sua voz mais terna. - Que vais fazer com essa cumbiambal (Dança da América do Sul em que os bailarinos levam um círio na mão. (N. da T.)) O rapaz sentia-se intimidado com o círio e tinha dificuldade em fechar a boca, por causa dos seus dentes de burro. - É que os padrezinhos vão dar-me a primeira comunhão - disse. - Quanto te pagaram? - Cinco pesos. A avó tirou da fraldiqueira um rolo de notas, que o rapaz olhou assombrado. - Eu vou dar-te vinte - disse a avó. - Mas não para que faças a primeira comunhão, e sim para que te cases. - E isso com quem? - Com a minha neta. Foi assim que Eréndira se casou no pátio do convento, com o balandrau de reclusa e uma mantilha de renda que lhe ofereceram as noviças, e sem saber sequer como se chamava o esposo que a sua avó lhe tinha comprado. Suportou com uma esperança incerta o tormento dos joelhos no solo de salitre, a pestilência de couro de cabrito das duzentas noivas grávidas, o castigo da Epístola de São Paulo martelada em latim sob a canícula imóvel, porque os missionários não encontraram recursos para opor-se à artimanha da boda imprevista, mas tinham-lhe prometido uma última tentativa para a manter no convento. Não obstante, no fim da cerimónia, e em presença do prefeito apostólico, do alcaide militar que disparava contra as nuvens, do seu esposo recente e da sua avó impassível, Eréndira sentiu-se de novo sob o encantamento que a tinha dominado desde o seu nascimento. Quando lhe perguntaram qual era a sua vontade livre, verdadeira e definitiva, não teve nem um suspiro de hesitação. - Quero ir-me embora - disse. E esclareceu, apontando para o esposo: - Mas não vou com ele, e sim com a minha avó. Ulisses tinha perdido a tarde a tentar roubar uma laranja na plantação de seu pai, pois este não lhe tirou a vista de cima enquanto podavam as árvores doentes e a sua mãe vigiava-o de casa. De maneira que renunciou ao seu intento, pelo menos por aquele dia, e ficou de má vontade a ajudar o seu pai, até que acabaram de podar as últimas laranjeiras. A extensa plantação era discreta e escondida e a casa, de madeira com tecto de latão, tinha redes de cobre nas janelas e um terraço grande suportado por estacas, com plantas primitivas de flores intensas. A mãe de Ulisses estava no terraço, deitada numa cadeira de balanço vienense, com folhas esfumaçadas nas têmporas, para aliviar a dor de cabeça, e o seu olhar de índia pura seguia os movimentos do filho como um feixe de luz invisível até aos lugares mais esquivos do laranjal. Era muito bela, muito mais jovem que o marido, e não só continuava a vestir-se com o camisão da tribo, como também conhecia os segredos mais antigos do seu sangue. Quando Ulisses voltou a casa com os ferros de podar, sua mãe pediu-lhe o medicamento das quatro, que estava numa mesinha próxima. Mal ele lhes tocou, o copo e o frasco mudaram de cor. A seguir tocou por simples travessura numa jarra de cristal que estava na mesa com outros copos, e também a jarra se tornou azul. A sua mãe observou-o enquanto tomava o remédio, e quando teve a certeza de que não era um delírio da sua dor perguntou-lhe em língua guajira: - Há quanto tempo te acontece? - Desde que voltámos do deserto - disse Ulisses, também em guajiro. - É só com as coisas de vidro. Para o demonstrar, tocou um a seguir aos outros nos copos que estavam na mesa, e todos mudaram de cores diferentes. - Essas coisas só acontecem por amor - disse a mãe. - Quem é? Ulisses não respondeu. O seu pai, que não sabia a língua guajira, passava nesse momento pelo terraço com um cacho de laranjas. - De que falam? - perguntou a Ulisses em holandês. - De nada de especial - respondeu Ulisses. A mãe de Ulisses não sabia o holandês. Quando o seu marido entrou em casa, perguntou ao filho em guajiro: - Que te disse? - Nada de especial - disse Ulisses. Perdeu o seu pai de vista quando ele entrou em casa, mas tornou a vê-lo, por uma janela, dentro do escritório. A mãe esperou até ficar a sós com Ulisses, e então insistiu: - Diz-me quem é. - Não é ninguém - respondeu Ulisses. Respondeu distraído, porque estava pendente dos movimentos do seu pai dentro do escritório. Tinha-o visto pôr as laranjas sobre a caixa forte para compor a chave do segredo. Mas, enquanto ele vigiava seu pai, a sua mãe vigiava-o a ele. - Há muito tempo que não comes pão - observou ela. - Não me agrada. O rosto da mãe adquiriu de repente uma vivacidade insólita. «Mentira», disse. «É porque estás a padecer de amor, e os que estão assim não podem comer pão.» A sua voz, como os seus olhos, tinha passado da súplica à ameaça. - Mais vale que me digas quem é - disse -, ou dou-te à força uns banhos de purificação. No escritório, o holandês abriu a caixa forte, meteu lá as laranjas e tornou a fechar a porta blindada. Ulisses afastou-se então da janela e respondeu à sua mãe com impaciência: - Já te disse que não é ninguém. Se não me acreditas, pergunta-o ao meu pai. O holandês apareceu na porta do escritório, acendendo o cachimbo de navegante e com a sua Bíblia carcomida debaixo do braço. A mulher perguntou-lhe em castelhano: - Quem conheceram no deserto? - Ninguém - respondeu-lhe o seu marido, um pouco nas nuvens. - Se não me acreditas, pergunta-o a Ulisses. Sentou-se no fundo do corredor a chupar o cachimbo, até que se lhe esgotou o tabaco. Depois abriu a Bíblia ao acaso e recitou fragmentos salteados durante quase duas horas, num holandês fluido e retumbante. À meia-noite, Ulisses continuava a pensar com tanta intensidade que não podia dormir. Revirou-se na rede mais uma hora, tentando dominar a dor das recordações, até que a própria dor lhe deu a força que lhe fazia falta para decidir. Então vestiu as calças de vaqueiro, a camisa de quadrados escoceses e as botas de montar e saltou pela janela e fugiu de casa na camioneta carregada de pássaros. Ao passar pela plantação arrancou as três laranjas maduras que não tinha podido roubar durante a tarde. Viajou pelo deserto o resto da noite, e, ao amanhecer, perguntou pelas povoações e povoados qual era o rumo de Eréndira, mas ninguém lhe dava notícias. Por fim informaram-no de que ia atrás da comitiva eleitoral do senador Onésimo Sánchez, e que este devia encontrar-se naquele dia em Nueva Castilla. Não o encontrou ali, mas na povoação seguinte, e já Eréndira não andava com ele, pois a avó tinha conseguido que o senador engolisse a sua moralidade com uma carta escrita pela sua mão, e ia-se abrindo com ela as portas melhor trancadas do deserto. No terceiro dia encontrou-se com o homem do correio nacional, e este indicou-lhe a direcção que procurava. - Vão para o mar - disse-lhe. - E apressa-te, que a intenção da fodida velha é passar para a ilha de Aruba. Nesse rumo, Ulisses divisou ao cabo de meia jornada a capa ampla e maltratada que a avó tinha comprado a um circo em falência. O fotógrafo errante tinha tornado ajuntar-se a ela, convencido de que, com efeito, o mundo não era tão grande como pensava, e tinha instalado cerca da barraca os seus panos de fundo idílicos. Uma banda de músicos de charanga cativava os clientes de Eréndira com uma valsa taciturna. Ulisses esperou o seu turno para entrar, e a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a ordem e a limpeza no interior da barraca. A cama da avó tinha recuperado o seu esplendor vice-real, a estátua do anjo estava no seu lugar, junto ao baú funerário dos Amadises, e havia, além disso, uma banheira de estanho com patas de leão. Deitada no seu novo leito de dossel, Eréndira estava nua e plácida e irradiava um fulgor infantil sob a luz filtrada da barraca. Dormia com os olhos abertos. Ulisses deteve-se junto dela, com as laranjas na mão, e reparou que o estava a olhar sem vê-lo. Então passou a mão diante dos seus olhos e chamou-a pelo nome que tinha inventado para pensar nela: - Arídnere. Eréndira acordou. Sentiu-se nua diante de Ulisses, soltou um guincho surdo e tapou-se com o lençol até à cabeça. - Não olhes para mim - disse. - Estou horrível. - Estás toda cor de laranja - disse Ulisses. Pôs as frutas à altura dos seus olhos, para que ela comparasse. - Olha. Eréndira destapou os olhos e constatou que, com efeito, as laranjas tinham a sua cor. - Agora não quero que fiques - disse. - Só entrei para mostrar-te isto - disse Ulisses. - Repara. Abriu uma laranja com as unhas, partiu-a com as duas mãos, e mostrou a Eréndira o interior: cravado no coração da fruta, estava um diamante legítimo. - Estas são as laranjas que levamos à fronteira - disse. - Mas são laranjas vivas! - exclamou Eréndira. - Claro - sorriu Ulisses. - Semeia-as o meu pai. Eréndira não o podia acreditar. Destapou a cara, pegou no diamante com os dedos e contemplou-o, assombrada. - Com três assim damos a volta ao mundo - disse Ulisses. Eréndira devolveu-lhe o diamante, com um ar de desalento. Ulisses insistiu. - Além disso, tenho uma camioneta - disse. - E ainda... Olha! Tirou de baixo da camisa uma pistola arcaica. - Não posso ir-me embora antes de dez anos - disse Eréndira. - Irás - disse Ulisses. - Esta noite, quando adormecer a baleia branca, eu estarei lá fora, piando como a coruja. Fez uma imitação tão perfeita do piar da coruja que os olhos de Eréndira sorriram pela primeira vez. - É minha avó - disse. - A coruja? - A baleia. Ambos se riram do engano, mas Eréndira retomou o fio. - Ninguém pode partir para nenhuma parte sem a autorização da sua avó. - Não é preciso dizer-lhe nada. - De todas as maneiras, virá a sabê-lo - disse Eréndira. - Ela sonha as coisas. - Quando começar a sonhar que te vais embora, já estaremos do outro lado da fronteira. Passaremos como os contrabandistas... - disse Ulisses. Empunhando a pistola com um à-vontade de bandido de cinema, imitou o som dos disparos, para animar Eréndira com a sua audácia. Ela não disse nem que sim nem que não, mas os seus olhos suspiraram, e despediu Ulisses com um beijo. Ulisses, comovido, murmurou: - Amanhã veremos passar os navios. Naquela noite, pouco depois das sete, Eréndira estava a pentear a avó quando voltou a soprar o vento da sua desgraça. Ao abrigo da barraca estavam os índios carregadores e o director da charanga esperando o pagamento do seu salário. A avó acabou de contar as notas de um arcaz que tinha cerca de si, e, depois de consultar um caderno de contas, pagou ao chefe dos índios. - Aqui tens - disse-lhe -, vinte pesos por semana, menos oito pela comida, menos três pela água, menos cinquenta centavos pelo tratamento das camisas novas, são oito e cinquenta. Conta-os bem. O índio chefe contou o dinheiro, e todos se retiraram com uma reverência. - Obrigado, branca. O seguinte era o director dos músicos. A avó consultou o caderno de contas e dirigiuse ao fotógrafo, que estava a tentar remendar o fole da máquina com emplastros de gutapercha. - Em que ficamos - disse-lhe -, pagas ou não pagas a quarta parte da música? O fotógrafo nem sequer levantou a cabeça para responder. - A música não se vê nos retratos. - Mas desperta nas pessoas a vontade de tirar retratos - replicou a avó. - Pelo contrário - disse o fotógrafo -, faz-lhes recordar os mortos, e depois ficam nos retratos com os olhos fechados. O director da charanga interveio. - O que faz fechar os olhos não é a música - disse -, são os relâmpagos de tirar retratos à noite. - É a música - insistiu o fotógrafo. A avó pôs fim à discussão. «Não sejas estúpido», disse ao fotógrafo. «Repara como as coisas correm bem ao senhor Onésimo Sánchez, e é graças aos músicos que leva.» A seguir, de uma maneira dura, concluiu: - De maneira que pagas a parte que te corresponde ou continuas só com o teu destino. Não é justo que essa pobre criatura acarrete com todo o peso dos gastos. - Sigo só o meu destino - disse o fotógrafo. - Ao fim e ao cabo, eu o que sou é um artista. A avó encolheu os ombros e ocupou-se do músico. Entregou-lhe um maço de notas, de acordo com a cifra escrita no caderno. - Duzentas e cinquenta e quatro peças - disse-lhe -, a cinquenta centavos cada uma, mais trinta e duas nos domingos e feriados, a sessenta centavos cada uma, são cento e cinquenta e seis e vinte. O músico não recebeu o dinheiro. - São cento e oitenta e dois e quarenta - disse. - As valsas são mais caras. - E isso porquê? - Porque são mais tristes - disse o músico. A avó obrigou-o a pegar no dinheiro. - Pois então esta semana tocas-nos duas peças alegres por cada valsa que te devo, e ficamos em paz. O músico não compreendeu a lógica da avó, mas aceitou as contas enquanto desenredava o enredo. Nesse momento, o vento espavorido quase desenraizou a barraca, e, no silêncio que deixou na sua passagem, ouviu-se lá fora, nítido e lúgubre, o piar do mocho. Eréndira não soube como fazer para dissimular a sua perturbação. Fechou a arca do dinheiro e escondeu-a debaixo da cama, mas a avó reparou-lhe no tremor da mão quando lhe entregou a chave. «Não te assustes», disse-lhe. «Há sempre corujas nas noites de vento.» Contudo, não deu mostras da mesma convicção quando viu sair o fotógrafo com a câmara às costas. - Se queres, fica até amanhã - disse-lhe -, a morte anda à solta esta noite. Também o fotógrafo reparou no piar da coruja, mas não mudou de ideias. - Fica, filho - insistiu a avó -, quando por mais não seja, pelo carinho que te tenho. - Mas não pago a música - disse o fotógrafo. - Ah, não - disse a avó. - Isso não. - Está a ver? - disse o fotógrafo. - Você não gosta de ninguém. A avó empalideceu de raiva. - Então põe-te a andar - disse. - Filho da puta! Sentia-se tão ultrajada que continuou a disparatar contra ele enquanto Eréndira a ajudava a deitar-se. «Filho de má mãe», resmungava. «O que saberá esse bastardo do coração alheio.» Eréndira não lhe prestou atenção, pois a coruja chamava-a com uma insistência tenaz nas pausas do vento e estava atormentada pela incerteza. A avó acabou de deitar-se com o mesmo ritual que era de rigor na mansão antiga, e, enquanto a neta a abanava, conseguiu sobrepor-se ao rancor e tornou a respirar os seus ares estéreis. - Tens de madrugar - disse então -, para me ferveres a infusão do banho antes que cheguem as pessoas. - Sim, avó. - Com o tempo que te sobre, lava a muda suja dos índios, e assim teremos alguma coisa mais para descontar-lhes na semana que entra. - Sim, avó - disse Eréndira. - E dorme devagar, para não te cansares, que amanhã é quinta-feira, o dia mais longo da semana. - Sim, avó. - E pões a comida à avestruz. - Sim, avó - disse Eréndira. Deixou o leque na cabeceira da cama e acendeu duas velas de altar diante do altar dos seus mortos. A avó, já adormecida, deu-lhe a ordem atrasada. - Não te esqueças de acender as velas dos Amadises. - Sim, avó. Eréndira sabia nessa altura que não acordaria, porque tinha começado a delirar. Ouviu os ladridos do vento em volta da barraca, mas também dessa vez não tinha reconhecido o sopro da sua desgraça. Saiu para a noite, até que voltou a piar a coruja, e o seu instinto de liberdade prevaleceu finalmente contra o feitiço da avó. Não tinha dado cinco passos fora da barraca quando encontrou o fotógrafo, que estava a amarrar os seus aparelhos na grade da bicicleta. O seu sorriso cúmplice tranquilizou-a. - Eu não sei nada - disse o fotógrafo -, não vi nada, nem pago a música. Despediu-se com uma bênção universal. Eréndira correu então em direcção do deserto, decidida para sempre, e perdeu-se nas trevas do vento, onde piava a coruja. Dessa vez a avó recorreu imediatamente à autoridade civil. O comandante do piquete de prevenção local saltou da rede às seis da manhã, quando ela lhe pôs diante dos olhos a carta do senador. O pai de Ulisses esperava na porta. - Porra, como quer que a leia - gritou o comandante -, se não sei ler?! - É uma carta de recomendação do senador Onésimo Sánchez - disse a avó. Sem mais perguntas, o comandante despendurou um rifle que tinha perto da rede e começou a gritar ordens aos seus agentes. Cinco minutos depois estavam todos dentro de uma camioneta militar, voando em direcção à fronteira, com um vento contrário que apagava os rastos dos fugitivos. No assento da frente, junto do condutor, viajava o comandante. Atrás estava o holandês, com a avó, e em cada estribo ia um agente armado. Muito próximo da povoação detiveram uma caravana de camiões cobertos com lona impermeável. Vários homens que viajavam escondidos na plataforma da carga levantaram a lona e apontaram para a camioneta com metralhadoras e rifles de guerra. O comandante perguntou ao condutor do primeiro camião a que distância tinha encontrado uma camioneta de fazenda carregada de pássaros. O condutor arrancou, antes de responder. - Nós não somos chibos - disse, indignado -, somos contrabandistas. O comandante viu passar muito perto dos seus olhos os canos enegrecidos das metralhadoras, levantou os braços e sorriu. - Pelo menos - gritou-lhes -, tenham a decência de não circular em pleno sol. O último camião levava um letreiro no pára-choques posterior: «Penso em ti Eréndira». O vento ia-se tornando mais árido à medida que avançavam para o norte, e o sol era mais forte com o vento, e era difícil respirar, por causa do calor e do pó, dentro da camioneta fechada. A avó foi a primeira que avistou o fotógrafo: pedalava no mesmo sentido em que eles voavam, sem outro amparo contra a insolação que um lenço amarrado na cabeça. - Lá está - apontou-o -, esse foi o cúmplice. Filho da puta. O comandante ordenou a um dos agentes do estribo que se encarregasse do fotógrafo. - Agarra-o e esperas-nos aqui - disse-lhe. -Já voltamos. O agente saltou do estribo e deu duas vozes de parar ao fotógrafo. O fotógrafo não o ouviu, pelo vento contrário. Quando a camioneta o ultrapassou, a avó fez-lhe um gesto enigmático, mas ele confundiu-o com uma saudação, sorriu e disse-lhe adeus com a mão. Não ouviu o disparo. Deu uma cambalhota no ar e caiu morto em cima da bicicleta, com a cabeça destroçada por uma bala de rifle que nunca soube de onde lhe veio. Antes do meio-dia começaram a ver as penas. Passavam no vento, e eram penas de pássaros novos, e o holandês conheceu-as, porque eram as dos seus pássaros depenados pelo vento. O condutor corrigiu o rumo, carregou a fundo no pedal, e antes de meia hora avistaram a camioneta no horizonte. Quando Ulisses viu aparecer o carro militar no espelho do retrovisor, fez um esforço para aumentar a distância, mas o motor não dava para mais. Tinham viajado sem dormir e estavam estragados de cansaço e de sede. Eréndira, que dormitava no ombro de Ulisses, acordou assustada. Viu a camioneta que estava quase a alcançá-los e com uma determinação cândida pegou na pistola do porta-luvas. - Não serve - disse Ulisses. - Era de Francis Drake. Puxou-lhe o gatilho várias vezes e atirou-a pela janela. A patrulha militar ultrapassou a destrambelhada camioneta carregada de pássaros depenados pelo vento, fez uma curva forçada e barrou-lhe o caminho. Conheci-as por essa época, que foi a de mais grande esplendor, apesar de que não viria a esquadrinhar os pormenores da sua vida senão muitos anos depois, quando Rafael Escalona revelou numa canção o desenlace terrível do drama e me pareceu que era bom para contar. Eu andava a vender enciclopédias e livros de medicina pela província de Riohacha. Álvaro Cepeda Samudio, que andava também por esses rumos a vender máquinas de cerveja gelada, levou-me na sua camioneta pelas povoações do deserto, com a intenção de falar-me de não sei quê, e falámos tanto de nada e tomámos tanta cerveja que sem saber quando nem por onde atravessámos o deserto inteiro e chegámos até à fronteira. Ali estava a barraca do amor errante, sob as telas com letreiros penduradas: «Eréndira é melhor», «Vá e volte, Eréndira espera-o», «Isto não é vida sem Eréndira». A bicha interminável e ondulante, composta por homens de raças e condições diferentes, parecia uma serpente de vértebras humanas que dormitava através de solares e praças, por entre bazares coloridos e mercados barulhentos, e saía das ruas daquela cidade fragorosa de traficantes de passagem. Cada rua era uma casa de jogo pública, cada casa uma taberna, cada porta um refúgio de desertores. As numerosas músicas indecifráveis e os pregões lançados formavam um só estrondo de pânico no calor alucinante. Entre a multidão de desertores e fura-vidas estava Blacamán o Bom, encarrapitado numa mesa, pedindo uma cobra verdadeira para demonstrar em carne própria um antídoto da sua invenção. Estava a mulher que se tinha convertido em aranha por desobedecer aos seus pais, que por cinquenta centavos se deixava tocar para que vissem que não havia engano e respondia às perguntas que quisessem fazer-lhe sobre a sua desventura. Estava um enviado da vida eterna que anunciava a chegada iminente do pavoroso morcego sideral, cujo ardente ofego de enxofre havia de transtornar a ordem da natureza e faria vir à superfície os mistérios do mar. O único asilo de sossego era o bairro de tolerância, aonde unicamente chegavam os restos do fragor urbano. Mulheres vindas dos quatro quadrantes da rosa náutica bocejavam de tédio nos abandonados salões de dança. Tinham feito a sesta sentadas, sem que ninguém as despertasse para amá-las, e continuavam esperando o morcego sideral sob os ventiladores de cruzes atarraxadas no céu limpo. De repente uma delas levantou-se e foi a um balcão de amores-perfeitos que dava para a rua. Por ali passava a bicha dos pretendentes de Eréndira. - Vamos a saber - gritou-lhes a mulher. - Que é que tem essa que nós não temos? - Uma carta de um senador - gritou alguém. Atraídas pelos gritos e gargalhadas, outras mulheres vieram debruçar-se ao balcão. - Há dias que essa bicha está assim - disse uma delas. - Calcula, a cinquenta pesos cada um! A que tinha ido primeiro decidiu: - Pois eu vou ver o que é que tem de ouro essa sete-mesinha. - Eu também - disse outra. - Será melhor do que estar aqui a aquecer gratuitamente o assento. Pelo caminho, juntaram-se outras, e quando chegaram à tenda de Eréndira tinham formado uma comparsaria buliçosa. Entraram sem anunciar-se, espantaram com almofadas o homem que encontraram gastando o melhor que podia o dinheiro que tinha pago e carregaram com a cama de Eréndira e levaram-na em andor para a rua. - Isto é um insulto - gritava a avó. - Cáfila de desleais! Covardes! - E a seguir, contra os homens da bicha: - E vocês, medricas, onde têm os testículos, que permitem este abuso contra uma pobre criatura indefesa. Maricas! Continuou a gritar até onde lhe chegava a voz, distribuindo pancadas com o bordão sobre os que se punham ao seu alcance, mas a sua cólera era inaudível entre os gritos e os assobios de troça da multidão. Eréndira não pôde escapar ao escárnio porque lho impediu a corrente de cão com que a avó a acorrentava a uma barra da cama desde que tentou fugir. Mas não lhe fizeram nenhum mal. Mostraram-na no seu altar de dossel pelas ruas de mais estrépito, como o passeio alegórico da penitente acorrentada, e por fim puseram-na em câmara-ardente no centro da praça maior. Eréndira estava enroscada, com a cara escondida, mas sem chorar, e assim ficou no sol terrível da praça, mordendo de vergonha e de raiva a corrente de cão do seu mau destino, até que alguém lhe fez a caridade de tapá-la com uma camisa. Essa foi a única vez que as vi, mas soube que tinham permanecido naquela cidade fronteiriça sob o amparo da força pública, até que rebentaram as arcas da avó, e que então abandonaram o deserto em direcção do mar. Nunca se viu tanta opulência junta por aqueles reinos de pobres. Era um desfile de carroças puxadas por bois, sobre as quais se amontoavam algumas réplicas de pacotilha do mobiliário luxuoso desaparecido com o desastre da mansão, e não só os bustos imperiais e os relógios raros, mas também um piano em segunda mão e uma grafonola com os discos da nostalgia. Uma recua de índios ocupava-se da carga e uma banda de músicos anunciava nas povoações a sua chegada triunfal. A avó viajava num palanquim com grinaldas de papel, ruminando os cereais da fraldiqueira, à sombra de um pálio de igreja. O seu tamanho monumental tinha aumentado, porque trazia vestido debaixo da blusa um colete de lona de veleiro, no qual guardava os lingotes de ouro como se metem as balas num cinturão de cartucheiras. Eréndira estava junto dela, vestida com tecidos vistosos e com franjas de estopa penduradas, mas sempre com a corrente de cão no tornozelo. - Não te podes queixar - tinha-lhe dito a avó, ao sair da cidade fronteiriça. - Tens roupa de rainha, uma cama de luxo, uma banda de música particular e catorze índios ao teu serviço. Não te parece magnífico? - Sim, avó. - Quando eu te faltar - prosseguiu a avó -, não ficarás à mercê dos homens, porque terás a tua própria casa numa cidade de importância. Serás livre e feliz. Era uma visão nova e imprevista do futuro. Em contrapartida, não tinha voltado a falar da dívida de origem, cujos pormenores se retorciam e cujos prazos aumentavam, à medida que se tornavam mais complicadas as despesas do negócio. Não obstante, Eréndira não emitiu um suspiro que permitisse vislumbrar o seu pensamento. Submeteu-se em silêncio ao tormento da cama nos charcos de salitre, na madorna das povoações lacustres, na cratera lunar das minas de talco, enquanto a avó lhe cantava a visão do futuro, como se a estivesse a decifrar nos baralhos. Uma tarde, no fim de um desfiladeiro opressivo, sentiram um vento de loureiros antigos, e escutaram farrapos de diálogos de Jamaica, e sentiram umas ânsias de vida, e um nó no coração, e era que tinham chegado ao mar. - Aí o tens - disse a avó, respirando a luz de vidro do Caribe ao cabo de meia vida de desterro. - Não te agrada? - Sim, avó. Ali instalaram a barraca. A avó passou a noite falando sem sonhar, e às vezes confundia as suas nostalgias com a clarividência do futuro. Dormiu até mais tarde que de costume e acordou sossegada pelo rumor do mar. Contudo, quando Eréndira lhe estava a dar banho, tornou a fazer-lhe prognósticos sobre o futuro, e era uma clarividência tão febril que parecia um delírio de vigília. - Serás uma proprietária senhorial - disse-lhe. - Uma dama de linhagem venerada pelas tuas protegidas e contentada e honrada pelas mais altas autoridades. Os capitães dos barcos mandar-te-ão postais de todos os portos do mundo. Eréndira não a escutava. A água tépida perfumada de orégão jorrava na banheira por um canal alimentado pelo exterior. Eréndira recolhia-a com uma totuma impenetrável, sem querer respirar, e deitava-a sobre a avó com uma das mãos, enquanto a ensaboava com a outra. - O prestígio da tua casa voará de boca em boca desde o cordão das Antilhas até aos reinos de Holanda - dizia a avó. - E há-de ser mais importante que a casa presidencial, porque nela se discutirão os assuntos do governo e se preparará o destino da nação. De repente, a água extinguiu-se no canal. Eréndira saiu da barraca para averiguar o que se passava e viu que o índio encarregado de deitar a água no canal estava a cortar lenha na cozinha. - Acabou-se - disse o índio. - Tem de se arrefecer mais água. Eréndira foi até ao fogareiro, onde estava outra panela grande com folhas aromáticas fervidas. Envolveu as mãos num trapo e certificou-se de que podia levantar a panela sem a ajuda do índio. - Vai-te embora - disse. - Eu deito a água. Esperou até que o índio saísse da cozinha. Então tirou do lume a panela fervente, levantou-a com muito custo até à altura do canal, e já ia a deitar a água mortífera na conduta da banheira quando a avó gritou no interior da barraca: - Eréndira! Foi como se a tivesse visto. A neta, assustada pelo grito, arrependeu-se no instante final. - Já vou, avó - disse. - Estou a arrefecer a água. Naquela noite esteve cismando até muito tarde, enquanto a avó cantava, adormecida, com o colete de ouro. Eréndira contemplou-a da sua cama com uns olhos intensos, que pareciam de gato na penumbra. A seguir deitou-se como um afogado, com os braços no peito e os olhos abertos, e chamou com toda a força da sua voz interior: - Ulisses. Ulisses acordou subitamente na casa do laranjal. Tinha ouvido a voz de Eréndira com tanta nitidez que a procurou nas sombras do quarto. Ao cabo de um instante de reflexão, fez um embrulho com as suas roupas e os seus sapatos e abandonou o quarto de dormir. Tinha atravessado o terraço quando o surpreendeu a voz de seu pai: - Para onde vais? Ulisses viu-o, iluminado de azul pela Lua. - Para o mundo - respondeu. - Desta vez não to vou impedir - disse o holandês. - Mas aviso-te de uma coisa: seja aonde for que vás, perseguir-te-á a maldição de teu pai. - Assim seja - disse Ulisses. Surpreendido, e até um pouco orgulhoso pela resolução do filho, o holandês seguiu-o pelo laranjal enluarado, com um olhar que pouco a pouco começava a sorrir. A sua mulher estava atrás dele, com a sua maneira de estar de índia formosa. O holandês falou quando Ulisses fechou o portão. - Há-de voltar - disse -, espancado pela vida, mais depressa do que tu pensas. - És muito duro - suspirou ela. - Não voltará nunca. Nessa ocasião Ulisses não precisou de perguntar a ninguém o rumo de Eréndira. Atravessou o deserto escondido em camiões de passagem, roubando para comer e dormir, e roubando muitas vezes pelo puro prazer do risco, até que encontrou a barraca noutra povoação do mar, da qual se viam os edifícios de vidro de uma cidade iluminada e onde ressoavam os adeuses nocturnos dos navios que levantavam ferro para a ilha de Aruba. Eréndira estava adormecida, acorrentada à barra e na mesma posição de afogado à deriva, em que o tinha chamado. Ulisses ficou a contemplá-la um grande espaço de tempo sem a acordar, mas contemplou-a com tanta intensidade que Eréndira acordou. Então beijaram-se na obscuridade, acariciaram-se sem pressa, despiram-se até à fadiga, com uma ternura silenciosa e uma felicidade recôndita que se pareceram mais do que nunca com o amor. No outro extremo da barraca, a avó adormecida deu uma volta monumental e começou a delirar: - Isso foi pelos tempos em que chegou o barco grego - disse. - Era uma tripulação de loucos, que faziam felizes as mulheres e não lhes pagavam com dinheiro, mas com esponjas, umas esponjas vivas, que depois andavam a caminhar por dentro das casas, gemendo como doentes de hospital e fazendo chorar as crianças para beber as lágrimas. Endireitou-se com um movimento subterrâneo e sentou-se na cama. - Foi então que chegou ele, meu Deus - gritou -, mais forte, mais grande e muito mais homem que Amadís. Ulisses, que até àquele momento não tinha prestado atenção ao delírio, tentou esconder-se quando viu a avó sentada na cama. Eréndira tranquilizou-o. - Fica descansado - disse-lhe. - Sempre que chega a essa parte senta-se na cama, mas não acorda. Ulisses encostou-se ao seu ombro. - Eu nessa noite estava a cantar com os marinheiros e pensei que era um tremor de terra - continuou a avó. - Todos devem ter pensado o mesmo, porque fugiram a dar gritos, mortos de riso, e só fiquei eu sob o coberto de trepadeiras. Recordo como se tivesse sido ontem que eu estava a cantar a canção que todos cantavam naqueles tempos. Até os papagaios, nos pátios, cantavam. Sem tom nem som, como só é possível cantar nos sonhos, cantou as linhas da sua amargura: Senhor, Senhor, devolve-me a minha antiga inocência, para gozar o seu amor outra vez desde o princípio. Só então Ulisses se interessou pela nostalgia da avó. - Lá estava ele - dizia -, com um papagaio no ombro e um trabuco de matar canibais, como chegou Guatarral às Guianas, e eu senti o seu alento de morte quando se especou em frente de mim e me disse: «Dei mil vezes a volta ao mundo e vi todas as mulheres de todas as nações, de maneira que tenho autoridade para dizer-te que és a mais altiva e a mais diligente, a mais formosa da Terra». Deitou-se de novo e soluçou na almofada. Ulisses e Eréndira permaneceram um grande momento em silêncio, embalados na penumbra pela respiração descomunal da anciã adormecida. De repente, Eréndira perguntou, sem uma fraqueza mínima na voz: - Serias capaz de a matar? Apanhado de surpresa, Ulisses não soube que responder. - Quem sabe - disse. - Tu és capaz? - Eu não posso - disse Eréndira -, porque é minha avó. Então Ulisses observou outra vez o enorme corpo adormecido, como se estivesse a medir a sua quantidade de vida, e decidiu: - Por ti sou capaz de tudo. Ulisses comprou uma libra de veneno para ratazanas, misturou-a com nata de leite e marmelada de framboesa e verteu aquele creme mortal dentro de uma empada, à qual tinha tirado o seu recheio de origem. Depois pôs-lhe por cima um creme mais denso, arranjando-o com uma colher até que não ficou nenhum vestígio da manobra sinistra, e completou o engano com setenta e duas velazinhas róseas. A avó endireitou-se no trono brandindo o bordão ameaçador quando o viu entrar na barraca com a empada de festa. - Descarado - gritou. - Como te atreves a pôr os pés nesta casa! Ulisses escondeu-se por detrás da sua cara de anjo. - Venho para lhe pedir perdão - disse -, hoje, dia do seu aniversário. Desarmada pela sua mentira certeira, a avó mandou pôr a mesa como para um jantar de boda. Sentou Ulisses à sua direita, enquanto Eréndira os servia, e, depois de apagar as velas com um sopro arrasador, cortou a empada em partes iguais. Serviu Ulisses. - Um homem que sabe fazer-se perdoar tem ganha a metade do céu - disse. - Deixo-te o primeiro pedaço, que é o da felicidade. - Não gosto de doce - disse ele. - Bom proveito. A avó ofereceu a Eréndira outro pedaço de empada. Ela levou-o para a cozinha e deitou-o no caixote do lixo. A avó comeu sozinha todo o resto. Metia os pedaços inteiros na boca e engolia-os sem mastigar, gemendo de gozo e olhando para Ulisses do limbo do seu prazer. Quando não teve mais no seu prato, comeu também o que Ulisses tinha desprezado. Enquanto mastigava o último bocado, apanhava com os dedos e metia na boca as migalhas da toalha. Tinha comido arsénico bastante para exterminar uma geração de ratazanas. No entanto, tocou piano e cantou até à meia-noite, deitou-se feliz e conseguiu um sono natural. O único indício novo foi um rastro pedregoso na sua respiração. Eréndira e Ulisses vigiaram-na da outra cama e só esperavam pelo seu estertor final. Mas a voz era tão viva como sempre, quando começou a delirar. - Pôs-me louca, meu Deus, pôs-me louca! - gritou. - Eu punha duas trancas no quarto de dormir, para que não entrasse, punha o toucador e a mesa contra a porta e duas cadeiras sobre a mesa, e bastava que ele desse uma pancadinha com o anel para que as barricadas ruíssem, as cadeiras desciam por si mesmas da mesa, a mesa e o toucador afastavam-se por si mesmos, as trancas saíam por si mesmas das argolas. Eréndira e Ulisses contemplavam-na com um assombro crescente, à medida que o delírio se tornava mais profundo e dramático e a voz mais íntima. - Eu sentia que ia morrer, empapada em suor de medo, suplicando por dentro que a porta se abrisse sem abrir-se, que ele entrasse sem entrar, que não partisse nunca, mas que também não voltasse jamais, para não ter de matá-lo. Continuou a recapitular o seu drama durante várias horas, até nos seus detalhes mais ínfimos, como se o tivesse voltado a viver no sonho. Pouco antes do amanhecer virou-se na cama com um movimento de acomodação sísmica e a voz quebrou-se-lhe com a iminência dos soluços. - Eu preveni-o, e riu-se - gritava -, voltei a preveni-lo e voltou a rir-se, até que abriu os olhos aterrados, dizendo: «Ai rainha! Ai rainha», e a voz não lhe saiu pela boca, mas pela facada da garganta. Ulisses, espantado com a tremenda evocação da avó, agarrou a mão de Eréndira. - Velha assassina! - exclamou. Eréndira não lhe prestou atenção, porque nesse instante começou a despontar a alvorada. Os relógios bateram as cinco. - Vai-te embora! - disse Eréndira. -Já vai acordar. - Está mais viva do que um elefante - exclamou Ulisses. - Não pode ser! Eréndira atravessou-o com um olhar mortal. - O que acontece - disse - é que tu não serves nem para matar ninguém. Ulisses impressionou-se tanto com a crueza da censura que se evadiu da barraca. Eréndira continuou a observar a avó adormecida, com o seu ódio secreto, com a raiva da frustração, à medida que se levantava o amanhecer e se ia despertando o ar dos pássaros. Então a avó abriu os olhos e olhou-a com um sorriso plácido. - Deus te salve, filha. A única mudança notável foi um princípio de desordem nas normas quotidianas. Era quarta-feira, mas a avó quis pôr um vestido de domingo, decidiu que Eréndira não recebesse nenhum cliente antes das onze e pediu-lhe que lhe pintasse as unhas de cor de romã e lhe fizesse um penteado pontifical. - Nunca tinha tido tanta vontade de tirar um retrato - exclamou. Eréndira começou a penteá-la, mas, ao passar o pente de desenredar, ficou entre os dentes um molho de cabelos. Mostrou-o, assustada, à avó. Ela examinou-o, tentou arrancar-se outra mecha grande com os dedos, e outro arbusto de cabelos lhe ficou na mão. Deitou-o ao chão e experimentou outra vez, e arrancou uma madeixa maior. Então começou a arrancar-se o cabelo com as duas mãos, morta de riso, atirando os punhados ao ar, com um júbilo incompreensível, até que a cabeça lhe ficou como um coco pelado. Eréndira não voltou a ter notícias de Ulisses até duas semanas mais tarde, quando ouviu fora da barraca o chamamento da coruja. A avó tinha começado a tocar piano e estava tão absorta na sua nostalgia que não se dava conta da realidade. Tinha na cabeça uma peruca de penas radiantes. Eréndira acudiu ao chamamento e só então descobriu a mecha de detonante que saía da caixa do piano e se prolongava por entre a maleza e se perdia na escuridão. Correu na direcção em que estava Ulisses, escondeu-se junto dele entre os arbustos, e ambos viram, com o coração oprimido, a chamazinha azul que se foi pela mecha do detonante, atravessou o espaço escuro e penetrou na barraca. - Tapa os ouvidos - disse Ulisses. Ambos o fizeram, sem que fosse preciso, porque não houve explosão. A tenda iluminou-se por dentro com uma deflagração radiante, estalou em silêncio e desapareceu numa tromba de fumo de pólvora molhada. Quando Eréndira se atreveu a entrar, pensando que a avó estava morta, encontrou-a com a peruca chamuscada e a camisa em farrapos, mas mais viva do que nunca, tentando sufocar o fogo com uma manta. Ulisses escapuliu-se, ao abrigo da gritaria dos índios, que não sabiam que fazer, confundidos pelas ordens contraditórias da avó. Quando conseguiram, por fim, dominar as chamas e dissipar o fumo, encontraram-se perante uma visão de naufrágio. - Parece coisa do maligno - disse a avó. - Os pianos não estalam por acaso. Fez toda a espécie de conjecturas para estabelecer as causas do novo desastre, mas as evasivas de Eréndira e a sua atitude impávida acabaram de confundi-la. Não encontrou a mínima fissura no comportamento da neta, nem se lembrou da existência de Ulisses. Esteve acordada até de madrugada, tecendo suposições e fazendo cálculos dos prejuízos. Dormiu pouco e mal. Na manhã seguinte, quando Eréndira lhe tirou o colete das barras de ouro, encontrou-lhe bolhas de fogo nos ombros e o peito em carne viva. «Razões tinha eu para dormir a dar voltas», disse, enquanto Eréndira lhe deitava claras de ovo nas queimaduras. «E, além disso, tive um sonho estranho.» Fez um esforço de concentração, para evocar a imagem, até que a teve, tão nítida na memória como no sonho. - Era um pavão numa rede de balouço branca - disse. Eréndira surpreendeu-se, mas refez imediatamente a sua expressão quotidiana. - É um bom anúncio - mentiu. - Os pavões dos sonhos são animais de longa vida. - Deus te ouça - disse a avó -, porque estamos outra vez como no princípio. É preciso começar de novo. Eréndira não se perturbou. Saiu da barraca com a bandeja das compressas e deixou a avó com o torso embebido de claras de ovo e o crânio besuntado de mostarda. Estava a deitar mais claras de ovo na bandeja, sob o alpendre de palmas que servia de cozinha, quando viu aparecer os olhos de Ulisses por detrás do fogão, como o viu a primeira vez por detrás da sua cama. Não se surpreendeu, mas disse-lhe, com uma voz de cansaço: - A única coisa que conseguiste foi aumentar-me a dívida. Os olhos de Ulisses turvaram-se de ansiedade. Permaneceu imóvel, olhando para Eréndira em silêncio, vendo-a partir os ovos com uma expressão fixa, de absoluto desprezo, como se ele não existisse. Ao cabo dum momento, os olhos moveram-se, revistaram as coisas da cozinha, as panelas penduradas, réstias de escórdios, os pratos, a faca de esquartejar. Ulisses endireitou-se, sempre sem dizer nada, entrou sob o alpendre e despendurou a faca. Eréndira não se virou para o olhar, mas, no momento em que Ulisses abandonava o alpendre, disse-lhe, em voz muito baixa: - Tem cuidado, que já teve um aviso da morte. Sonhou com um pavão e uma rede de balouço branca. A avó viu entrar Ulisses com a faca, e, fazendo um supremo esforço, endireitou-se sem a ajuda do bordão e levantou os braços. - Rapaz! - gritou. - Tornaste-te louco. Ulisses saltou-lhe em cima e deu-lhe uma facada certeira no peito desnudado. A avó lançou um gemido, atirou-se-lhe em cima e tentou estrangulá-lo com os seus potentes braços de urso. - Filho da puta - grunhiu. - Demasiado tarde reparo que tens cara de anjo traidor. Não pôde dizer mais nada, porque Ulisses conseguiu libertar a mão com a faca e assentou-lhe com uma segunda facada nas costas. A avó soltou um gemido recôndito e abraçou com mais força o agressor. Ulisses assentou um terceiro golpe, sem piedade, e um jorro de sangue expulso a alta pressão salpicou-lhe a cara: era um sangue oleoso, brilhante e verde, igual ao mel de menta. Eréndira apareceu na entrada, com a bandeja na mão, e observou a luta com uma impavidez criminosa. Grande, monolítica, grunhindo de suor e de raiva, a avó aferrou-se ao corpo de Ulisses. Os seus braços, as suas pernas, até o seu crânio pelado, estavam verdes de sangue. A enorme respiração de fole, transtornada pelos primeiros estertores, ocupava todo o ambiente. Ulisses conseguiu outra vez libertar o braço armado, abriu um talho na barriga, e uma explosão de sangue empapou-o de verde até aos pés. A avó tentou apanhar o ar que já lhe fazia falta para viver e deixou-se cair de bruços. Ulisses soltou-se dos braços exaustos e, sem permitir-se um instante de trégua, assentou no vasto corpo caído a facada final. Eréndira pôs então a bandeja numa mesa, inclinou-se sobre a avó, observou-a bem, sem lhe tocar, e, quando se convenceu de que estava morta, o seu rosto adquiriu subitamente toda a madureza de pessoa adulta que não lhe tinham dado os seus vinte anos de infortúnio. Com movimentos rápidos e precisos, pegou no colete de ouro e saiu da barraca. Ulisses permaneceu sentado junto do cadáver, esgotado pela luta, e quanto mais tentava limpar a cara mais a lambuzava com aquela matéria verde e viva que parecia fluir dos seus dedos. Só quando viu sair Eréndira com o colete de ouro tomou consciência do seu estado. Chamou-a, com gritos, mas não recebeu nenhuma resposta. Arrastou-se até à entrada da barraca e viu que Eréndira começava a correr pela beira-mar em direcção oposta à da cidade. Então fez um último esforço para persegui-la, chamando-a com uns gritos desgarrados que já não eram de amante, mas de filho, mas venceu-o o terrível esgotamento de ter matado uma mulher sem a ajuda de ninguém. Os índios da avó encontraram-no deitado de bruços na praia, chorando de solidão e de medo. Eréndira não o tinha ouvido. Ia a correr contra o vento, mais veloz que um veado, e nenhuma voz deste mundo a podia deter. Passou a correr, sem virar a cabeça, pelo vapor ardente dos charcos de salitre, pelas crateras de talco, pelo torpor das palafitas, até que se acabaram as ciências naturais do mar e começou o deserto, mas ainda continuou a correr, com o colete de ouro, mais além dos ventos áridos e dos entardeceres de nunca acabar, e jamais se voltou a ter a menor notícia dela nem se encontrou o vestígio mais ínfimo da sua desgraça.

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