LIVRO OITAVO — OS CEMITÉRIOS ACEITAM O QUE LHES DÃO
I — Onde se trata do modo de entrar no convento
Foi naquele convento que Jean Valjean, como dissera Fauchelevent, «caíra do céu».
Saltara pelo muro que formava o ângulo para a rua Polonceau. O hino de anjos que
ouvira no meio do silêncio da noite eram as religiosas entoando maƟnas; a sala que
entre vira na escuridão era a capela; o fantasma que vira estendido no lajedo era a irmã
«fazendo a reparação»; o Ɵnir que tão estranhamente o surpreendera, era o guizo do
jardineiro, o guizo que Fauchelevent trazia preso ao joelho.
Depois de CoseƩe deitada, Ɵnham Jean Valjean e Fauchelevent, como se viu, ceado
um copo de vinho e um bocado de queijo, junto dum bom lume; em seguida, estando a
única cama que havia na barraca ocupada por CoseƩe, Ɵnha-se deitado cada um num
feixe de palha. Jean Valjean dissera antes de fechar os olhos:
— Agora preciso ficar aqui.
Estas palavras tinham-se agitado toda a noite no cérebro de Fauchelevent.
Para falar verdade, nem um nem outro dormiram.
Jean Valjean senƟndo-se descoberto e com Javert na pista, compreendeu logo que
tanto ele como CoseƩe estavam perdidos, se tornassem a entrar em Paris. Uma vez que
a nova rajada de vento que soprara sobre ele, o fizera encalhar naquele claustro, já não
Ɵnha outro pensamento que não fosse o de ali ficar. Ora, para um desgraçado na sua
posição, aquele convento era, ao mesmo tempo, o lugar mais perigoso e o mais seguro;
mais perigoso, porque não podendo ali penetrar homem algum, a descoberta dele era
um flagrante delito, e Jean Valjean não dava mais que um passo do convento para a
cadeia; e mais seguro, porque conseguido que o aceitassem e deixassem lá permanecer,
quem o iria buscar? Habitar num lugar em que fosse impossível estar, era a salvação.
Fauchelevent, pela sua parte, dava voltas ao miolo. Começara por declarar a si mesmo
que não percebia nada. Como era que o senhor Madelaine ali se achava apesar daqueles
muros? Muros de claustro não se saltam. Como se achava ali com uma criança? Não se
escala um muro com uma criança nos braços. Quem era aquela criança? Donde Ɵnham
vindo ambos? Desde que Fauchelevent entrara no convento, nunca mais ouvira falar em
Montreuil-sur-mer, portanto não Ɵnha a mínima ideia do que ali se passara. O senhor
Madelaine Ɵnha um aspecto que não animava a fazer perguntas; e depois Fauchelevent
dizia consigo: «A um santo não se pergunta nada».
Madelaine conservara para ele todo o seu presơgio. Só por algumas palavras que
escapavam a Jean Valjean, julgou o jardineiro dever concluir que o senhor Madelaine
Ɵnha talvez quebrado em consequência dos tempos correrem maus, e que era
perseguido pelos credores; ou que se comprometera em algum negócio políƟco, e que
por isso se ocultava, o que não desagradou a Fauchelevent, o qual, como muitos
camponeses do norte da França, Ɵnha um grande fundo bonaparƟsta. Madelaine
querendo esconder-se tomara o convento por asilo; era portanto simples que ali
quisesse ficar. Mas o ponto inexplicável de que Fauchelevent se não esquecia e com que
quebrava a cabeça, era que Madelaine ali estivesse, e de mais a mais com aquela criança.
Fauchelevent via-os, tocava-lhes, falava-lhes e não o podia crer. O incompreensível
acabava de entrar na choupana do jardineiro. Fauchelevent andava às apalpadelas, mas
não via senão isto.
O senhor Madelaine salvou-me a vida. Esta única certeza era-lhe bastante, e foi o que
o resolveu. Disse consigo: «Toca-me agora a minha vez»; e acrescentou na consciência:
«O senhor Madelaine não levou tanto tempo a pensar, quando viu que era preciso
meter-se debaixo da carroça para me livrar do seu peso». Decidiu portanto que salvaria
o senhor Madelaine. Dirigiu pois a si mesmo diversas perguntas e deu diversas respostas:
«Depois do que fez por mim, se fosse um ladrão salvá-lo-ia? Do mesmo modo. Salvá-lo-ia
se fosse um assassino? Não tem que ver. Salvá-lo-ei, sendo um santo como é? Custe o
que custar.
Mas fazer com que ficasse no convento, que problema! Fauchelevent, na presença
desta tentaƟva quase quimérica, não recuou; o pobre camponês picardo, sem outra
escada além da sua dedicação, da sua boa vontade, e com alguma dessa pouca figura
campesina, posta, desta vez, ao serviço de uma intenção generosa, empreendeu escalar
as dificuldades do claustro e as rudes escarpas da ordem de S. Bento. O senhor
Fauchelevent era um velho que toda a sua vida fora egoísta, e que no termo dos seus
dias, coxo, doente, não tendo no mundo o menor interesse, achou doçura em ser
reconhecido; e vendo que havia a praƟcar uma acção virtuosa, lançou-se a ela, como o
homem que, próximo a deixar a vida, achasse ao alcance da mão um copo de bom vinho
que nunca houvesse provado e o bebesse avidamente. Pode acrescentar-se que o ar que
respirava havia anos, naquele convento, lhe destruíra a personalidade, acabando por lhe
tornar necessária a prática de uma boa acção.
Tomou, pois, uma resolução: dedicar-se a Madelaine.
Acabamos de o qualificar de pobre camponês picardo. A qualificação é justa, mas
incompleta. No ponto em que nos achamos desta história, tornam-se úteis alguns traços
fisiológicos do senhor Fauchelevent. Era camponês, mas fora tabelião, o que lhe juntara
à finura a chicana e a penetração à sinceridade. Tendo por causas diversas saído mal dos
seus negócios de tabelião, caíra em carroceiro e trabalhador. Mas, a despeito das pragas
e das chicotadas, necessárias aos cavalos, parece que conservara ainda o que quer que
era de tabelião.
Tinha certo talento natural; não dizia eu temos nem eu sabemos; conversava, coisa
rara na aldeia, e os outros camponeses diziam dele: fala suavemente como um senhor
fidalgo. Fauchelevent pertenceu com efeito, à espécie que o imperƟnente e ligeiro
vocabulário do século passado qualificava de: meio burguês meio rúsƟco; a que as
metáforas, caindo do palácio na choupana, apelidavam um pouco cidadão: sal e
pimenta. Fauchelevent, ainda que muito experimentado e usado pela sorte, espécie de
pobre velha alma já no fio, era todavia homem de primeiras impressões, e muito
espontâneo; qualidade preciosa que sempre impede que se seja mau.
Os seus defeitos e vícios, que os Ɵnha Ɵdo, não passaram da superİcie; em suma, a
sua fisionomia era das que são bem aceitas pelo observador. Aquele velho rosto não
tinha nenhuma das desgraçadas rugas da testa que significam maldade ou estupidez.
Ao romper do dia, depois de haver sonhado extraordinariamente, Fauchelevent abriu
os olhos e viu Madelaine sentado no feixe de palha, contemplando CoseƩe adormecida.
Fauchelevent sentou-se também e disse:
— Agora que está aqui, como foi que entrou?
Estas palavras resumiram o facto e despertaram Jean Valjean da sua meditação.
Os dois homens celebraram conselho.
— Em primeiro lugar — disse Fauchelevent o senhor há-de começar por não pôr o pé
fora desta barraca, nem tão-pouco a pequenita. Um passo na cerca pode deitar tudo a
perder.
— É justo.
— Senhor Madelaine — tornou Fauchelevent — o senhor chegou em muito boa
ocasião, quero dizer muito má: uma destas senhoras está gravemente doente, o que fará
com que olhem pouco cá para o nosso lado. Parece que não escapa, porque estão
fazendo as preces das quarenta horas. Anda toda a comunidade no ar. Isto dá-lhe que
fazer. A que está próxima a deixar-nos é uma santa. A falar verdade, nós aqui todos
somos santos; a diferença entre elas e eu, é que elas dizem: a nossa cela, e eu digo: a
minha choupana; haverá a oração dos agonizantes, e depois a oração pelos mortos. Por
hoje estaremos tranquilos aqui; mas pelo meio-dia de amanhã não respondo.
— Contudo — observou Jean Valjean — esta barraca está oculta pelas ruínas e pelas
árvores; não se vê do convento.
— E eu acrescento que as religiosas nunca se lhe aproximam.
— E então? — disse Jean Valjean.
O ponto de interrogação que acentuava este então, significava: Parece-me que se
pode estar aqui oculto. Foi no ponto de interrogação que Fauchelevent respondeu.
— Mas há as pequenas.
— Quais pequenas? — tornou Jean Valjean.
Quando Fauchelevent abrira a boca para responder, explicando as suas palavras,
ouviu-se o toque duma sineta.
— Morreu a religiosa — disse ele. — Aí estão dobrando.
E fez sinal a Jean Valjean para que escutasse.
A sineta deu segunda badalada.
— É o dobre, senhor Madelaine. A sineta conƟnuará por vinte e quatro horas dando
aquelas badaladas, de minuto a minuto, até que o corpo saia da igreja. Mas o senhor
bem sabe, as crianças nunca param quietas. Nas horas de recreio vêm brincar para a
cerca e basta que se desencaminhe alguma pela para que elas, apesar das proibições,
venham para este lado procurá-las e comecem por aí a sarilhar por uma banda e por
outra, revistando e mexendo em tudo. São uns diabos aqueles querubins.
— Quem? — perguntou Jean Valjean.
— As pequenas. Era um instante enquanto aqui vinham dar consigo e logo gritariam:
Olhem um homem! Mas hoje não há perigo. Não haverá recreio. O dia irá todo em
orações. Ouve a sineta? É o que eu lhe disse, uma badalada cada minuto. É o dobre.
E Jean Valjean disse consigo: «E teria achado a educação de Cosette».
Fauchelevent exclamou:
— Com a fortuna! Um bando de pequeninas, que fariam grande gritaria à roda do
senhor e que em seguida fugiriam todas! Ser homem neste lugar é o mesmo que estar
empestado. Bem vê que me atam um guizo a uma perna, como se eu fosse um animal
bravio.
Jean Valjean cada vez meditava mais profundamente. «Este convento salvar-nos-ia»,
murmurou ele.
Depois, levantando a voz:
— A grande dificuldade está em poder ficar.
— Nada — disse Fauchelevent — a grande dificuldade está em poder sair.
Jean Valjean sentiu o sangue refluir-lhe ao coração.
— Sair!
— Sim, senhor Madelaine; para tornar a entrar é preciso que tenha saído.
E depois de deixar passar o ruído duma badalada do dobre, Fauchelevent prosseguiu:
— Não é possível que o encontrem aqui deste modo. De onde veio o senhor? Cá para
mim caiu do céu, porque o conheço; mas para as religiosas é preciso que entre pela
porta.
De repente, ouviu-se o dobre acrescentado com o som doutra sineta.
— Aí está! — disse Fauchelevent — tocam as madres vocais. Vão para o capítulo
quando alguma morre. Esta morreu ao amanhecer; é quase sempre ao amanhecer que se
morre. Mas o senhor não poderia sair por onde entrou? Ora vejamos, isto é curiosidade,
por onde foi que entrou?
Jean Valjean empalideceu; só a ideia de tornar a encontrar-se na temível rua o fazia
estremecer. Saí de uma floresta infestada de Ɵgres, e uma vez fora, imaginai um amigo
aconselhando-vos para que torneis a entrar nela. Jean Valjean supunha ainda toda a
polícia acumulada no bairro, parecia-lhe ver os agentes em observação, senƟnelas por
todos os cantos, medonhos punhos pretendendo agarrá-lo pelo pescoço, e talvez Javert
à esquina da rua.
— É impossível! — disse ele. — Senhor Fauchelevent, diga que caí do céu.
— Eu cá por mim acredito — retorquiu Fauchelevent — não precisa dizer-me. Deus
pegou-lhe talvez pela mão para o ver de mais perto, e deixou-o em seguida cair. Mas
enganou-se; o que Ele queria decerto era deixá-lo cair num convento de homens. Olhe,
ainda outro toque. Este é para dizer ao porteiro que vá prevenir a municipalidade para
que mande avisar o médico dos mortos., o qual deve vir cerƟficar-se de que morreu aqui
uma pessoa. Tudo isto são as cerimónias da morte. As pobres freiras nem por isso
gostam desta visita, porque, enfim, um médico é um homem que não acredita em nada.
Elevem, levanta o véu, às vezes levanta também outra coisa. Mas como desta vez
mandaram avisar o médico depressa! Que demónio haverá lá? A sua pequena ainda
dorme? Como se chama ela?
— Cosette.
— É sua filha, quero dizer, é sua neta?
— É.
— Lá para ela sair daqui, isso é fácil. A porta por onde eu entro e saio, deita para o
páƟo. Chego, bato, o porteiro abre e eu saio com o meu cesto às costas e a pequena
dentro. Não tem nada; é o senhor Fauchelevent que sai com o seu cesto. Mas o senhor
há-de dizer à pequena para ela estar muito quieta. Deste modo e com a tampa por cima,
ninguém é capaz de adivinhar o que lá vai dentro. Depois levo-a para casa de uma
fruteira minha amiga, que mora na rua do Caminho Verde. É velha e surda, mas muito
boa mulher. Lá fica a pequena bem, porque ela tem uma caminha muito arranjada. Para
ela não desconfiar, grito-lhe aos ouvidos que é uma sobrinha minha e que, portanto, ma
guarde até ao outro dia. Depois a pequena há-de entrar consigo, pois eu hei-de fazê-lo
entrar, isso é que não tem remédio. Mas para sair, para sair, como há-de o senhor
arranjar?
Jean Valjean abanou a cabeça.
— Senhor Fauchelevent, o ponto está em que ninguém me veja. Veja se arranja a que
eu saia também, como Cosette, dentro de um cesto com uma tampa por cima.
Fauchelevent, porém, em vez de responder, coçava a ponta da orelha com o dedo
médio da mão esquerda, sinal de sério embaraço, a que um terceiro toque veio fazer
diversão.
— Lá se vai embora o médico dos defuntos — disse Fauchelevent. — O médico chega,
olha e depois diz: «Está bom; está morta». Depois que o médico visa o passaporte para o
outro mundo, o armador manda um caixão. Se é alguma madre, são as madres que a
metem dentro; se é soror, são as sorores. Depois quem prega sou eu. Esta tarefa
também faz parte cá da minha jardinagem. Um jardineiro também é meio coveiro. O
caixão leva-se para uma sala inferior da igreja que comunica para a rua e onde não pode
entrar mais homem nenhum senão o médico dos defuntos. Eu por homens não me
conto, a mim nem aos gatos-pingados. Nessa sala é onde eu prego o caixão. Depois vêm
os gatos-pingados buscá-lo, e toca para diante, cocheiro! Como se vai para o céu assim.
Trazem um carro vazio, levam-no com alguma coisa dentro. Aqui está como é um
enterro. De profundis.
Jean Valjean, sem dar atenção ao que Fauchelevent dizia, pusera-se outra vez a
contemplar CoseƩe, que dormia ainda, com o rosto iluminado por um raio de sol
horizontal e a boca vagamente entreaberta, semelhando um anjo a beber luz.
Não ser escutado não é moƟvo para qualquer se calar. O honrado jardineiro
continuava, pois, sossegadamente a sua ladainha.
— O lugar onde as enterram é no cemitério de Vaugirard. Dizem que vão suprimir o tal
cemitério de Vaugirard. É um cemitério anƟgo, fora dos regulamentos e sem uniforme,
que vai ser aposentado. É pena, porque era cómodo. O coveiro de lá, o senhor
MesƟenne, é um amigo meu. Cá as freiras têm o privilégio de serem levadas para o tal
cemitério ao fechar da noite. Há uma ordem expressa da prefeitura que lhes concede
isso. Mas que infinidade de coisas acontecidas desde ontem para cá! A madre
Crucificação morta, o senhor Madelaine...
— Enterrado! — atalhou Jean Valjean tristemente.
Fauchelevent mudou o sentido a estas palavras:
— Ora essa! Se esƟvesse aqui de todo, então, sim, então podia dizer que estava
enterrado.
Soou novo toque. Fauchelevent Ɵrou rapidamente do prego a joelheira do chocalho e
atou-a ao joelho.
— Agora é por mim. É a madre prioresa que quer falar comigo. Mau, que me piquei
nos dentes da fivela! Senhor Madelaine, espere aqui por mim, mas não se mexa.
Nós temos novidade. Se tiver vontade de comer, acolá está o vinho, o pão e o queijo.
E saiu da casinhola gritando:
— Eu lá vou, eu lá vou!
Jean Valjean viu-o deitar a correr pelo jardim com a maior rapidez que a sua perna
coxa lhe permiƟa e lançando de passagem um olhar para o seu meloal. Daí a menos de
dez minutos, o senhor Fauchelevent, cujo chocalho afugentava as religiosas por onde ele
passava, baƟa ao de leve a uma porta e uma voz agradável respondia: Para sempre, Para
sempre, o que queria dizer: Pode entrar.
A porta a que ele baƟa era a do locutório reservado ao jardineiro para as
necessidades do serviço. Este locutório ficava conơguo à sala do capítulo. Sentada na
única cadeira que havia no locutório, estava a prioresa à sua espera
II — Fauchelevent na presença da dificuldade
É próprio de certos caracteres e de certas profissões, principalmente dos padres e dos
religiosos, ter um ar agitado e grave nas circunstâncias críƟcas. Na ocasião em que
Fauchelevent entrou, via-se esta dupla forma da preocupação no rosto da prioresa, que
era a agradável e instruída Mademoiselle de Blemeur, madre Inocência, de ordinário tão
jovial.
O jardineiro fez uma saudação receosa e ficou no limiar da cela. A prioresa, que estava
passando uma a uma as contas do seu rosário, ao dar por ele, ergueu a cabeça e disse:
— Ah! É você, senhor Fauvent.
No convento tinha sido adoptada esta abreviatura.
Fauchelevent fez nova saudação.
— Eu mandei-o chamar, senhor Fauvent...
— Aqui estou, reverenda Madre.
— Porque tenho que lhe dizer.
— E eu — disse Fauchelevent com uma audácia de que ele interiormente Ɵnha medo
— também tenho uma coisa para dizer a vossa reverendíssima.
A prioresa fitou os olhos nele.
— Ah! Você tem alguma comunicação a fazer-me?
— Uma súplica.
— Bem, então diga lá.
O ex-tabelião Fauchelevent pertencia à categoria dos camponeses dotados de certa
audácia. Uma tal ou qual ignorância hábil é uma força: como se não desconfia dela,
alcança sempre o seu fim. Fauchelevent habitava no convento havia pouco mais de dois
anos e obƟvera as boas graças de toda a comunidade. Sempre solitário e entregue aos
seus trabalhos de horƟcultura, não Ɵnha outra coisa a fazer além de ser curioso.
Distante como estava de todas aquelas mulheres veladas, girando de um para outro
lado, não via diante de si uma agitação de sombras. A força de atenção e de penetração,
chegara a resƟtuir a carne a todos aqueles fantasmas, de sorte que aquelas mortas
viviam para ele. Era como um surdo, cuja vista adquire maior alcance, ou como um cego
cujo ouvido se torna extremamente agudo. Aplicara-se a disƟnguir o som dos diferentes
toques, e conseguira-o: de modo que aquele claustro enigmáƟco e taciturno não Ɵnha
nada oculto para ele; aquela esfinge dizia-lhe ao ouvido todos os seus segredos.
Sabendo tudo, fingia não saber coisa alguma. Era esta a sua arte. Todo o convento o
julgava estúpido, o que em religião é um grande mérito. Às madres vocais faziam muito
caso de Fauchelevent. Era um curioso mudo, inspirava confiança. Além disto Ɵnha uma
vida muito regular; não saía nunca senão por alguma reconhecida necessidade do jardim
ou da horta. A discrição deste procedimento era-lhe levada em conta. Mas apesar disto
não deixava ele de puxar pela língua a dois homens; no convento, ao porteiro, que sabia
as parƟcularidades do locutório; no cemitério, ao coveiro, por cuja intervenção conhecia
as parƟcularidades da sepultura; deste modo, Ɵnha, em relação às religiosas, dupla luz
que lhe iluminava a vida e a morte. Mas não abusava nunca. A congregação Ɵnha por ele
todo o interesse. Velho, coxo, não vendo nunca coisa nenhuma, um tanto surdo; que
excelentes qualidades! Dificilmente o substituiriam.
O bom do homem, com o desafogo de quem se sente apreciado, encetou, em
presença da prioresa, uma arenga campesina, muito difusa e extremamente profunda.
Falou por muito tempo da sua idade e enfermidades, do aumento dos anos, que já
Ɵnha de contar pelo dobro, das crescentes exigências do trabalho, da grandeza da cerca,
das noites que Ɵnha de passar ao relento, como ainda lhe sucedera na úlƟma, em que
fora preciso cobrir o meloal com esteiras, por causa da Lua, concluindo por dizer que
Ɵnha um irmão (a prioresa fez um movimento) um irmão, já nada moço(segundo
movimento da prioresa, mas revelando mais tranquilidade) que, se lhe dessem licença,
poderia aquele irmão ir viver na sua companhia, podendo assim ajudá-lo, porque era
excelente hortelão, que a comunidade teria no irmão um excelente servo, talvez melhor
do que ele; que, doutro modo, se lhe não admiƟssem seu irmão mais velho, como se
senƟa sem forças e insuficiente para o trabalho, ver-se-ia obrigado, ainda que com
bastante pena, a reƟrar-se; e que seu irmão Ɵnha uma neta que levaria consigo, que se
educaria religiosamente em tão santa casa; e que talvez, quem poderia adivinhar?, viesse
um dia a ser religiosa.
Quando o jardineiro acabou de falar, a prioresa interrompeu a passagem das contas
por entre os dedos e disse-lhe:
— Poderá você, daqui até à noite, obter uma barra de ferro bem grossa?
— Para que fim, reverenda madre?
— Para servir de alavanca.
— Arranjar-se-á — respondeu Fauchelevent.
A prioresa não acrescentou nem mais uma palavra, levantou-se e entrou na casa
próxima, que era a sala do capítulo, onde se achavam reunidas as madres.
Fauchelevent ficou só.
III — Madre Inocência
Decorrido um quarto de hora, pouco mais ou menos, a prioresa tornou a entrar e veio
sentar-se outra vez na cadeira.
— Senhor Fauvent?
— Reverenda Madre.
— Conhece a capela?
— Eu tenho lá um lugar de onde oiço missa e assisto aos ofícios.
— Já entrou alguma vez no coro?
— Uma ou duas vezes.
— Pois trata-se de erguer uma pedra.
— Pesada?
— A laje do pavimento que fica ao lado do altar.
— A pedra que fecha o carneiro?
— Sim.
— Para isso era preciso ter a força de dois homens.
— Ajuda-o a madre Ascensão, que tem tanta força como um homem.
— Ora! Uma mulher nunca é um homem!
— Mas nós para o ajudar não temos senão uma mulher. Cada qual dá o que tem. Lá
porque D. Mabillon dá quatrocentas e dezassete epístolas de S. Bernardo e que
Merlonus Horstius dá só trezentas e sessenta e sete, eu não desprezo Merlonus Horstius.
— Nem eu tão-pouco.
— O merecimento está em cada um fazer aquilo que pode. Um claustro não é um
estaleiro.
— Nem uma mulher é um homem. Meu irmão é que é muito forte!
— Você levará uma alavanca.
— É a única chave que serve em semelhantes portas.
— A pedra tem uma argola.
— Por onde passarei a alavanca.
— E a pedra está disposta de modo que gira sobre si.
— Está bem, reverenda madre. Esteja vossa reverendíssima descansada de que hei-de
abrir o carneiro.
— Hão-de ajudá-lo as quatro madres cantoras para o que for preciso.
— E quando o carneiro estiver aberto?
— Deve-se tornar a fechá-lo
— Mais nada?
— Não.
— Dê-me as suas ordens, reverenda madre.
— Fauvent, olhe que nós temos confiança em si.
— Eu estou aqui para tudo o que for preciso.
— E para não dizer nada.
— Sim, reverenda madre.
— Quando o carneiro estiver aberto...
— Fechá-lo-ei.
— Mas antes disso...
— O quê, reverenda madre?
— Será necessário depositar nele alguma coisa.
Seguiu-se um momento de silêncio. A prioresa, depois de estender o lábio inferior, o
que indicava hesitação, continuou:
— Senhor Fauvent?
— Reverenda madre.
— Sabe que morreu esta manhã uma madre?
— Não sabia.
— Não ouviu o dobre?
— Lá no fim da cerca não se ouve nada.
— Deveras?
— Sabe Deus o que me custa a ouvir o toque que me diz respeito.
— Pois morreu ao amanhecer.
— E depois esta manhã não soprava o vento lá para o meu lado.
— Foi a madre Crucificação. Uma bem-aventurada.
A prioresa calou-se, moveu por um instante os lábios como em oração mental, e
prosseguiu:
— Há três anos que a senhora de Bethune, uma jansenista, se tornou ortodoxa, só por
ver orar a madre Crucificação.
— É verdade, reverenda madre; agora é que oiço o dobre.
— As madres levaram-na para a casa mortuária que dá para a igreja.
— Bem sei onde é.
— Nenhum outro homem além de você pode ou deve entrar naquela casa. Teria que
ver a entrada de um homem na câmara das defuntas!
— A maior parte das vezes!
— Heim?
— A maior parte das vezes!
— Que está dizendo?
— Eu digo, a maior parte das vezes.
— A maior parte das vezes o quê?
— Reverenda madre, eu não disse a maior parte das vezes o quê: eu disse, a maior
parte das vezes!
— Não o percebo. Porque disse a maior parte das vezes?
— Por dizer como a reverenda madre.
— Mas eu não disse a maior parte das vezes.
— A reverenda madre não disse, eu é que disse para dizer como a reverenda madre.
Neste momento soaram nove horas.
— Às nove horas da manhã e a todas as horas bendito e louvado seja o Sanơssimo
Sacramento do altar! — disse a prioresa.
— Ámen! — acrescentou Fauchelevent.
As horas soaram em muito boa ocasião, porque acabaram com «a maior parte das
vezes». É provável que se não fossem elas nunca a prioresa e Fauchelevent se Ɵrariam
daquela meada.
Fauchelevent limpou o suor.
A prioresa tornou a fazer um murmuriozinho interior, provavelmente sagrado, e
depois levantou a voz:
— A madre Crucificação fez conversões durante a sua vida; depois da sua morte há-de
fazer milagres.
— Fará decerto — respondeu Fauchelevent, firmando-se nas pernas e esforçando-se
por não se tornar a mover dali em diante.
— Senhor Fauvent, a comunidade foi abençoada na madre Crucificação. Decerto não é
dado a todos morrer como o cardeal Bérulle, celebrando o santo sacriİcio da missa e
entregar a alma a Deus pronunciando as palavras: Home igitur oblaƟonem. Mas sem que
alcançasse tanta felicidade, foi preciosíssima a morte da madre Crucificação. Teve
perfeito conhecimento até ao úlƟmo instante. Falava connosco, e depois falava com os
anjos, dando-nos parte das suas úlƟmas vontades. Se você Ɵvesse mais fé e se pudesse
ter estado na sua cela, ter-lhe-ia ela curado a perna, tocando-lhe apenas. Conservou-se
sempre risonha. Conhecia-se que ressuscitava em Deus. Teve a morte de um anjo.
Fauchelevent, julgando que era o fim de uma oração, disse com a maior seriedade:
— Ámen!
— Senhor Fauvent, é preciso cumprir as vontades dos mortos.
A prioresa passou entre os dedos algumas contas do rosário. Fauchelevent conƟnuava
calado. A prioresa prosseguiu:
— Consultei sobre este ponto muitos eclesiásƟcos que trabalham para a glória de
Nosso Senhor, que se ocupam no exercício da vida clerical, e que produzem admiráveis
frutos.
— Reverenda madre, ouve-se aqui o dobre muito melhor do que lá no jardim.
— E depois é mais do que uma morta, é uma santa.
— Como a reverenda madre prioresa.
— Havia vinte anos que dormia no seu caixão, com permissão expressa do nosso
Santo Padre Pio VII.
— Aquele que coroou o impera... Bonaparte.
Para um homem hábil como Fauchelevent, a recordação era despropositada.
Felizmente a prioresa, de todo entregue ao seu pensamento, não o ouviu e continuou:
— Senhor Fauvent?
— Reverenda madre.
— S. Diodoro, arcebispo de Capadócia, quis que inscrevessem sobre a sua sepultura
esta única palavra: Acarus, que significa verme da terra; assim se fez. É ou não é
verdade?
— É verdade, reverenda madre.
— O bem-aventurado Mezzocano, abade de Aquila, quis ser enterrado debaixo da
forca, e assim se fez.
— É verdade.
— S. Terêncio, bispo de Port, na embocadura do Tibre para o mar, pediu que lhe
gravassem sobre a sepultura o sinal que costumavam pôr sobre as dos parricidas, com a
esperança de que quem passasse lhe cuspisse no túmulo; e assim se fez. É preciso
obedecer aos mortos.
— Assim seja.
— O corpo de Bernardo Guidonis, nascido em França, próximo a Roche-Abeille, foi
levado, como ele próprio ordenara, e a despeito do rei de Castela, para a igreja dos
dominicanos de Limoges, conquanto Bernardo Guidonis fosse bispo de Tuy em Espanha.
Poder-se-á dizer o contrário?
— Decerto que não, reverenda madre.
— O facto é atestado por Plantavit della Fosse.
Depois de passar silenciosamente mais algumas contas do rosário, a prioresa
continuou:
— Senhor Fauvent, a madre Crucificação será sepultada no caixão em que dormiu por
espaço de vinte anos.
— É justo.
— É a continuação do seu sono.
— Terei então de a fechar nesse caixão?
— Terá!
— E poremos de parte o caixão das pompas fúnebres?
— Exactamente.
— Estou às ordens da reverendíssima comunidade.
— Ajudá-lo-ão as quatro madres cantoras.
— A pegar no caixão? Não precisarei de ajuda.
— Não; a fazê-lo descer.
— Para onde?
— Para o carneiro.
— Qual carneiro?
— O que está por baixo do altar.
Fauchelevent quase deu um salto.
— O carneiro debaixo do altar!
— Debaixo do altar.
— Mas...
— Terá consigo uma barra de ferro.
— Sim, mas...
— Com a barra de ferro levantará a laje, por meio da argola.
— Mas...
— É preciso obedecer aos mortos. Ser sepultada no carneiro que está por debaixo do
altar da capela, não ser lançada em solo profano, ficar morta onde orou viva; tal foi o
voto supremo da madre Crucificação. Eis o que nos pediu, ou antes, nos ordenou.
— Mas é proibido.
— Proibido pelos homens, ordenado por Deus.
— E se vier a saber-se?
— Nós temos confiança em si.
— Quanto a isso sou como qualquer pedra dos muros do convento.
— Reuniu-se o capítulo. As madres vocais, que acabo de consultar e que estão ainda
deliberando, decidiram que a madre Crucificação seria sepultada, segundo o desejo que
expressou, no seu caixão, sob o nosso altar. Imagine, senhor Fauvent, se agora aqui iam
fazer-se milagres. Que glória para Deus nesta comunidade! Os milagres saem dos
túmulos.
— Mas, reverenda madre, se o delegado de saúde...
— S. Bento II, em matéria de sepultura, resistiu a Constantino Pogonat.
— No entanto, o comissário de polícia...
— Chonodemaire, um dos sete reis alemães que entraram nas Gálias, sob o império
de Constâncio, reconheceu expressamente o direito dos religiosos serem enterrados
dentro dos muros dos seus conventos, isto é, debaixo do altar.
— Mas o inspector da prefeitura...
— O mundo não é coisa nenhuma em presença da cruz. MarƟnho, décimo primeiro
geral dos Cartuchos, deu à sua ordem esta divisa: Stat crux dum volvitur orbis.
— Ámen! — disse Fauchelevent, imperturbável neste modo de se Ɵrar de embaraços,
todas as vezes que ouvia alguma coisa em latim.
Para quem por muito tempo se conservou calado é suficiente qualquer auditório.
Gymnastoras saiu da prisão tendo recolhidos em si muitos dilemas e silogismos, parou
diante da primeira árvore que encontrou, começou a arengar-lhe e fez grandes esforços
para convencê-la. A prioresa, habitualmente sujeita ao silêncio, e tendo
superabundância no seu reservatório, levantou-se e exclamou com a loquacidade de
represa solta:
— À minha direita tenho Bento, à minha esquerda Bernardo. Quem é Bernardo? É o
primeiro abade de Claraval. Fontaines, em Borgonha, é uma terra abençoada por tê-lo
visto nascer. Seu pai chamava-se Técelin e sua mãe Alèthe. Principiou Bernardo por
Cister para terminar por Claraval; foi ordenado abade por Guilherme de Chainpeaux,
bispo de Chalons-sur-Saône; teve setecentos noviços e fundou cento e sessenta
mosteiros; no concílio de Sens, que teve lugar em 1140, derrotou Abeillard, Pedro de
Bruys, Henri, discípulo deste, e os sequazes de outra espécie de seita, chamados os
Apostólicos; confundiu Arnaldo de Brexe, fulminou o monge Raoul, o matador de judeus,
presidiu no concílio de Reims, que teve lugar em 1148, fez condenar Gilberto de lá Porée,
bispo de PoiƟers; fez condenar Éon de l’Étoile, compôs as desavenças que entre si
traziam alguns príncipes, guiou o rei Luís o Novo, aconselhou o papa Eugénio III, regulou
o templo, pregou a Cruzada, fez duzentos e cinquenta milagres em sua vida, e só num
dia chegou o número destes a trinta e nove. Quem é Bento? É o patriarca do Monte
Cassino, é o segundo fundador da SanƟdade Claustral, é o Basílio do Ocidente. A sua
ordem produziu quarenta Papas, duzentos cardeais, cinquenta patriarcas, mil e
seiscentos arcebispos, quatro mil e seiscentos bispos, quatro imperadores, doze
imperatrizes, quarenta e uma rainhas, três mil e seiscentos canonizados, e dura há mil e
quatrocentos anos. De um lado S. Bernardo, do outro o delegado de saúde! De um lado
S. Bento, do outro o inspector da higiene pública! Nós queremos cá saber do Estado, do
armador, do delegado, do inspector, dos regulamentos ou da administração? Não passa
por aí ninguém que se não indignasse, se visse o modo como nos tratam. Pois nem
sequer podemos ter o direito de dar a Jesus Cristo o nosso pó! Fora lá com os vossos
delegados de saúde, que são uma invenção revolucionária! Deus subordinado ao
comissário de polícia; aqui está como é o século! Fauvent, silêncio!
Fauchelevent não se achava bem sob esta inundação, porém a prioresa continuou:
— O direito do mosteiro à sepultura é indubitável para todos. Só os fanáƟcos e os
sequazes do erro é que o negam. Vivemos em tempos de bem terrível confusão! Ignorase
o que se deve saber e sabe-se o que se deve ignorar. Não se vê senão ímpios e
ignorantes em matéria de religião. Há gente, no tempo presente, que não faz disƟnção
entre o grandíssimo S. Bernardo e o Bernardo chamado dos Pobres Católicos, eclesiásƟco
cheio de bondade que vivia no século XIII. Outros blasfemam, a ponto de comparar o
cadafalso de Luís XVI com a cruz de Jesus Cristo, sendo Luís XVI apenas um rei. Já não há
justo nem injusto. Sabe-se o nome de Voltaire e não se sabe o nome de César de Bus, e,
contudo, César de Bus é um bem-aventurado e Voltaire um desgraçado. O arcebispo
passado, o cardeal de Perigord, nem sequer sabia que Carlos de Gondren sucedeu a
Bérulle, e Francisco de Bourgoin a Gondren e Jean Francisco Senault Bourgoin, e o pai de
Santa Marta a Jean Francisco Senault. Conhece-se o nome do Padre Coton, não porque
foi um dos três que cooperaram para a fundação do Oratório, mas por ter sido objecto
das imprecações do rei calvinista Henrique IV. O que faz com que as pessoas mundanas
gostem de S. Francisco de Sales é ter ele sido trapaceiro ao jogo. E, além disto, ataca-se a
religião, e porquê? Porque tem havido maus padres, porque Sagitário, bispo de Gap, era
irmão de Salone, bispo de Embrun, e porque ambos seguiram Mommol. Que tem lá isso?
Isto obsta acaso a que MarƟnho de Tours fosse um santo e desse metade da sua capa a
um pobre? Fecham os olhos às verdades e não querem viver senão nas trevas. Os
animais mais ferozes são os que são cegos. Ninguém se lembra que há um inferno. Oh,
que maldade de gente! Da parte do rei hoje significa da parte da revolução. Já ninguém
sabe o que deve, nem aos vivos nem aos mortos. É proibido morrer santamente. O
sepulcro é um negócio civil. Isto causa horror. S. Leão II escreveu expressamente duas
cartas, uma a Pedro Notário, outra ao rei dos Visigodos, para combater e rejeitar, nas
questões que dizem respeito aos mortos, a autoridade do exarca e a supremacia do
imperador. GauƟer, bispo de Chalons, neste ponto resisƟa a Otão, duque de Borgonha.
Noutro tempo ơnhamos nós voto em capítulo, mesmo nas coisas do Século. O abade de
Cister, geral da ordem, era conselheiro nato no parlamento de Borgonha. Quanto aos
nossos mortos, desses fazíamos o que queríamos. O corpo do próprio S. Bento não está
em França, na abadia de Fleury, chamada S. Bento de Loire, apesar de ter morrido na
Itália, no Monte Cassino, num sábado 21 de Março do ano 543? Tudo isto é
incontestável. Eu aborreço as coristas, odeio os priores, execro os hereges, mas ainda
detestaria mais quem me sustentasse o contrário. Basta ler Arnoul Wion, Gabriel
Bucelin, Tritemo, Maurolicus e D. Lucas de Achery.
Neste momento a prioresa respirou e depois voltou-se para Fauchelevent:
— Senhor Fauvent, está combinado?
— Sim, reverenda madre.
— Podemos contar consigo?
— Hei-de obedecer.
— Está bem.
— Eu sou inteiramente dedicado ao convento.
— Ficamos entendidos. Você fecha o caixão que as sorores hão-de levar para a capela.
Canta-se o oİcio dos defuntos e depois entra-se para o claustro. Por volta das onze
horas para a meia-noite, você vem com a sua alavanca. Mas tudo há-de ser feito com o
maior segredo. Na capela não está mais ninguém senão as quatro madres cantoras, a
madre Ascensão e você.
— E a soror que estiver no poste.
— Essa está, mas não se volta.
— Mas ouve.
— Ela não escuta. Quanto mais, o que sabe o claustro. Ignora-o o mundo.
Houve ainda outra pausa, após a qual a prioresa prosseguiu:
— Mas Ɵre o chocalho. É escusado que a soror que esƟver de poste conheça que anda
na capela.
— Reverenda madre?
— Que é, senhor Fauvent?
— O médico dos defuntos já veio fazer a visita do costume?
— Fá-la hoje às quatro horas. Já para ele vir se fez o sinal. Mas então você, realmente,
não ouve sinal nenhum?
— Eu não presto atenção senão ao que é para chamar por mim.
— Está bem, senhor Fauvent.
— Reverenda madre, há-de ser precisa uma alavanca que tenha pelo menos seis pés.
— Aonde a há-de arranjar?
— Onde não faltam grades não faltam barras de ferro. Num canto do jardim tenho lá
um montão de ferros velhos.
— Não se esqueça, três quartos de hora antes da meia-noite, pouco mais ou menos.
— Reverenda madre?
— Que é?
— Se vossa reverendíssima Ɵver mais alguma obra como esta, eu chamo meu irmão,
que é forte como um turco!
— Há-de andar o mais depressa que puder.
— Lá isso é que eu não poderei muito bem, porque sou aleijado aqui de uma perna.
Por isso é que eu queria outro homem que me ajudasse. Sou coxo, reverenda madre.
— Ser coxo não é defeito, ou antes, talvez seja uma bênção. O imperador Henrique II,
que combateu o anƟ-Papa Gregório e restabeleceu Bento VIII, teve dois sobrenomes, o
de Santo e o de Coxo.
— Oh, dois sobrenomes é bem boa coisa! — murmurou Fauchelevent, que na
realidade, não era muito fino de ouvido.
— Senhor Fauvent, lembra-me que será melhor marcar uma hora inteira; talvez se não
arranje tudo nos três quartos de hora. Não é de mais. Esteja, portanto, ao pé do altarmor,
com a sua barra de ferro, às onze horas. O oİcio principia à meia-noite. Porém deve
estar tudo concluído um bom quarto de hora antes.
— Hei-de fazer tudo para provar o meu zelo à comunidade. Aqui está como é. As onze
horas em ponto, depois de ter pregado o caixão, devo estar na capela, onde estarão as
madres cantoras e a madre Ascensão. Dois homens era melhor. Mas, enfim, não
importa! Como eu levo a alavanca... Devemos abrir o carneiro, descer o caixão e torná-lo
a fechar. Depois passe por lá muito bem. O governo não saberá de coisa nenhuma.
Reverenda madre, fica tudo assim bem arranjado?
— Não.
— Então que temos ainda?
— Resta o caixão vazio.
Isto causou uma pausa. Fauchelevent e a prioresa meditavam.
— Senhor Fauvent, que se há-de fazer do caixão vazio?
— Leva-se para o cemitério.
— Vazio?
Outro silêncio. Fauchelevent, porém, fez com a mão esquerda essa espécie de gesto
com que se despede uma pergunta molesta.
— Reverenda madre, como sou eu o que hei-de pregar o caixão, na sala inferior da
igreja, como lá não pode entrar mais ninguém senão eu, cubro a tumba com o pano
mortuário.
— Sim, mas os que a conduzem, ao pô-la no carro e ao descê-la à cova, conhecerão
que não leva nada dentro.
— Ah! di... — exclamou Fauchelevent.
A prioresa fez o sinal da cruz, fitando os olhos no jardineiro. «Abo» ficou-lhe na
garganta.
Apressou-se, porém, a improvisar um expediente para fazer esquecer a praga.
— Reverenda madre, sabe o que eu faço? Encho o caixão de terra, de modo que há-de
parecer que leva gente.
— Tem razão. A terra é a mesma coisa que o homem. De maneira que você arranja o
caixão vazio?
— Deixe-me cá o negócio por minha conta.
O rosto da prioresa, até então turvo e escuro, serenou e a madre fez-lhe o sinal do
superior que despede o inferior. Fauchelevent dirigiu-se para a porta, porém, no
momento em que ia a sair, a prioresa elevou de mansinho a voz e disse-lhe:
— Senhor Fauvent, estou saƟsfeita consigo; amanhã depois do enterro, traga-me seu
irmão e diga-lhe que traga também a criança.
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
segunda-feira, 17 de outubro de 2016
A incrível e triste historia de Candida Eréndira e sua avó desalmada
A avó examinou-o de corpo inteiro, sem o diminuir, mas tentando calcular o
verdadeiro tamanho dos seus tomates.
- Por mim não há inconveniente - disse-lhe -, se me pagas o que perdi pelo seu
descuido.
São oitocentos e setenta e dois mil e trezentos e quinze pesos, menos quatrocentos e
vinte que já me pagou, ou seja, oitocentos e setenta e um mil oitocentos e noventa e cinco.
O camião arrancou.
- Creia-me que lhe daria esse montão de dinheiro se o tivesse - disse o carregador
com seriedade. - A menina vale-os.
À avó caiu-lhe bem a decisão do rapaz.
- Pois volta quando o tiveres, filho - replicou-lhe num tom simpático -, mas agora
parte, que, se voltamos a fazer as contas, ainda me estás a dever dez pesos.
O carregador saltou para a plataforma do camião, que se afastava. Daí disse adeus a
Eréndira com a mão, mas ela estava ainda tão assustada que não lhe retribuiu.
No mesmo terreno baldio onde as deixou o camião, Eréndira e a avó improvisaram
uma barraca para viver, com folhas de zinco e restos de tapetes asiáticos. Puseram duas
esteiras no solo e dormiram tão bem como na mansão, até que o sol abriu buracos no tecto
e lhes abrasou a cara.
Ao contrário de sempre, foi a avó quem nessa manhã se ocupou de arranjar Eréndira.
Pintou-lhe a cara com um estilo de beleza sepulcral que tinha estado na moda durante a
sua juventude e arrematou-a com umas pestanas postiças e um laço de organdi que parecia
uma borboleta na cabeça.
- Achas-te horrorosa - admitiu -, mas assim é melhor: os homens são muito duros em
assuntos de mulheres.
Ambas reconheceram, muito antes de vê-las, os passos de duas mulas na secura do
deserto. A uma ordem da avó, Eréndira deitou-se na esteira, como o teria feito uma
aprendiza de teatro no momento em que ia abrir-se o pano de boca. Apoiada no bordão
episcopal, a avó abandonou a barraca e sentou-se no trono à espera da passagem das
mulas.
Aproximava-se o homem do correio.
Não tinha mais de vinte anos, embora estivesse envelhecido pelo ofício, e trazia um
fato de caqui, polainas, capacete de cortiça, e uma pistola de militar no cinturão de
cartucheiras. Montava uma boa mula e levava outra de cabresto, menos robusta, sobre a
qual se amontoavam os sacos de lona do correio.
Ao passar em frente da avó, saudou-a com a mão e continuou o caminho. Mas ela fez
um sinal para que deitasse um olhar no interior da barraca. O homem deteve-se, e viu
Eréndira deitada na esteira com os seus adornos póstumos e um vestido de sanefas cor de
amora.
- Agrada-te? - perguntou a avó.
O homem do correio não tinha compreendido até esse momento o que lhe estavam a
propor.
- Em jejum não está mal - riu levemente.
- Cinquenta pesos - disse a avó.
- Ena! Deve tê-la de ouro! - disse ele. - Isso é o que me custa a comida de um mês.
- Não sejas agarrado - disse a avó. - O correio aéreo tem melhor ordenado que um
cura.
- Eu sou o correio nacional - disse o homem. - O correio aéreo é esse que anda numa
camioneta.
- De qualquer maneira, o amor é tão importante como a comida - disse a avó.
- Mas não alimenta.
A avó compreendeu que a um homem que vivia das esperanças alheias lhe sobejava
demasiado tempo para regatear.
- Quanto tens? - perguntou-lhe.
O correio desmontou, tirou do bolso umas notas amarrotadas e mostrou-as à avó. Ela
apanhou-as todas juntas, com uma mão de ave de rapina, como se fossem um novelo.
- Faço-te um abatimento - disse -, mas com uma condição: fazes propaganda por toda
a parte.
- Até ao outro lado do mundo - disse o homem do correio. - É para isso que sirvo.
Eréndira, que não tinha podido pestanejar, tirou então as pestanas postiças e chegouse
para um lado da esteira para deixar espaço ao noivo casual. Mal ele entrou na barraca,
a avó fechou a entrada com um puxão enérgico na cortina de correr.
Foi um tratado eficaz. Atraídos pelas vozes do correio, vieram homens de muito
longe, para conhecer a novidade de Eréndira. Atrás dos homens vieram mesas de jogos de
azar e barracas de comida e atrás de todos veio um fotógrafo em bicicleta, que instalou
em frente do acampamento um aparelho de cavalete, com manga de luto e uma tela de
fundo com um lago de cisnes inválidos.
A avó, abanando-se no trono, parecia alheia à sua própria feira. A única coisa que lhe
interessava era a ordem na fila dos clientes que esperavam turno e a exactidão do dinheiro
que pagavam adiantadamente para entrar na tenda de Eréndira. Ao princípio tinha sido tão
severa que até chegou a repelir um bom cliente porque lhe faltavam cinco pesos. Mas,
com o decorrer dos meses, foi assimilando as lições da realidade e acabou por admitir
que completassem o pagamento com medalhas de santos, relíquias de família, anéis
matrimoniais e tudo quanto fosse capaz de demonstrar, mordendo-o, que era ouro de boa
lei, embora não brilhasse.
Ao cabo de uma longa estadia naquela primeira povoação, a avó teve suficiente
dinheiro para comprar um burro, e internou-se no deserto em busca de outros lugares mais
propícios para pagar-se da dívida. Viajava numa padiola que tinham improvisado sobre o
burro e protegia-se do Sol imóvel com o guarda-chuva desvaretado que Eréndira mantinha
por cima da sua cabeça. Atrás delas caminhavam quatro índios de carga com os pedaços
do acampamento: as esteiras de dormir, o trono restaurado, o anjo de alabastro e o baú
com os restos dos Amadises. O fotógrafo perseguia a caravana na sua bicicleta, mas sem
se aproximar, como se fosse para outra festa. Tinham passado seis meses desde o
incêndio quando a avó pôde ter uma visão inteira do negócio.
- Se as coisas continuam assim - disse a Eréndira -, ter-me-ás pago a dívida dentro de
oito anos, sete meses e onze dias. - Voltou a examinar os seus cálculos, com os olhos
fechados, ruminando os grãos que tirava de uma fraldiqueira de bainha onde tinha também
o dinheiro, e precisou: - Claro que tudo isso é sem contar com os salários e a comida dos
índios, e outros gastos menores.
Eréndira, que caminhava ao passo do burro, angustiada pelo calor e o pó, não fez
nenhuma crítica às contas da avó, mas teve de conter-se para não chorar.
- Tenho vidro moído nos ossos - disse.
- Tenta dormir.
- Sim, avó.
Fechou os olhos, respirou a fundo uma baforada de ar escaldante e continuou a
caminhar adormecida.
Uma camioneta carregada de jaulas apareceu, espantando chibos entre a poeirada do
horizonte, e o alvoroço dos pássaros foi um jorro de água fresca na modorra dominical de
San Miguel del Desierto. Ao volante ia um corpulento fazendeiro com a pele rachada pela
intempérie e uns bigodes cor de esquilo que tinha herdado de algum bisavô. Seu filho
Ulisses, que viajava no outro banco, era um adolescente dourado, de olhos marítimos e
solitários, com a identidade de um anjo furtivo. Ao holandês chamou-lhe a atenção uma
barraca de campanha em frente da qual esperavam vez todos os soldados da guarnição
local. Estavam sentados no solo, bebendo de uma mesma garrafa, que passavam de boca
em boca, e tinham ramos de amendoeira na cabeça, como se estivessem emboscados para
um combate. O holandês perguntou na sua língua:
- Que diabos venderão ali?
- Uma mulher - respondeu-lhe seu filho, com toda a naturalidade. - Chama-se
Eréndira.
- Como o sabes?
- Toda a gente o sabe no deserto - respondeu Ulisses.
O holandês desceu no hotelzinho da povoação. Ulisses ficou na camioneta, abriu com
os dedos ágeis uma pasta de negócios que o seu pai tinha deixado no assento, tirou um
maço de notas, meteu várias nos bolsos e tornou a deixar tudo como estava. Nessa noite,
enquanto o seu pai dormia, saiu pela janela do hotel e foi meter-se na bicha em frente da
tenda de campanha de Eréndira.
A festa estava no seu esplendor. Os recrutas, embriagados, dançavam sós, para não
desperdiçar a música grátis, e o fotógrafo tirava retratos nocturnos com auxílio de
magnésio. Enquanto controlava o negócio, a avó contava notas no solo, repartia-as em
maços iguais e arrumava-as dentro de um cesto. Não havia nessa altura mais do que doze
soldados, mas a bicha da tarde tinha crescido com clientes civis. Ulisses era o último.
O turno correspondia a um soldado de aparência lúgubre. A avó não só lhe impediu a
passagem, como evitou o contacto com o seu dinheiro.
- Não, filho - disse-lhe -, tu não entras, nem por todo o ouro do mundo. És ave de mau
agouro.
O soldado, que não era daquelas terras, surpreendeu-se.
- Que é isso?
- Que contagias a má sombra - disse a avó. - Basta olhar-te para a cara.
Afastou-o com a mão, mas sem lhe tocar, e deu passagem ao soldado seguinte.
- Entra tu, valentão - disse-lhe, com boa disposição. - E não te demores, que a pátria
precisa de ti.
O soldado entrou, mas tornou a sair imediatamente, porque Eréndira queria falar com
a avó. Ela pendurou no braço o cesto de dinheiro e entrou na tenda de campanha, cujo
espaço era estreito, mas ordenado e limpo. No fundo, numa cama de tela, Eréndira não
podia reprimir o tremor do corpo, estava maltratada e suja de suor de soldados.
- Avó - soluçou -, estou a morrer.
A avó tocou-lhe na testa e, ao constatar que não tinha febre, tentou consolá-la.
- Já não faltam mais de dez militares - disse.
Eréndira desatou a chorar, com uns grunhidos de animal sobressaltado. A avó então
soube que tinha transposto os limites do horror, e, acariciando-lhe a cabeça, ajudou-a a
acalmar-se.
- O que sucede é que estás fraca - disse-lhe. - Anda, não chores mais, lava-te com
água de sálvia, para que se te restaure o sangue.
Saiu da tenda quando Eréndira começou a ficar serena e devolveu o dinheiro ao
soldado que esperava. «Acabou-se por hoje», disse-lhe. «Volta amanhã e dou-te o
primeiro lugar.» A seguir, gritou aos da fila:
- Acabou-se rapazes. Até amanhã, às nove.
Soldados e civis romperam fileiras com gritos de protesto. A avó enfrentou-os de bom
grado, mas brandindo a sério o bordão devastador.
- Malcriados! Ordinários! - gritava. - O que é que imaginam, que essa criatura é de
ferro? Bem gostaria eu de vê-los na situação dela. Pervertidos! Apátridas de merda!
Os homens replicavam-lhe com insultos mais grosseiros, mas ela acabou por dominar
a revolta e manteve-se de guarda com o bordão, até que levaram as mesas de fritadas e
desmontaram as tendas de jogos. Dispunha-se a voltar à tenda quando viu Ulisses de
corpo inteiro, só, no espaço vago e escuro onde antes estivera a fila de homens. Tinha
uma aura irreal e parecia visível na penumbra pelo fulgor próprio da sua beleza.
- E tu - disse-lhe a avó -, onde deixaste as asas?
- Quem as tinha era o meu avô - respondeu Ulisses, com a sua naturalidade -, mas
ninguém o acredita.
A avó voltou a examiná-lo com uma atenção enfeitiçada. «Pois eu, sim, acredito»,
disse. «Trá-las postas amanhã.» Entrou na tenda e deixou Ulisses a arder no seu sítio.
Eréndira sentiu-se melhor depois do banho. Tinha vestido uma combinação curta e
bordada e estava a secar o cabelo para deitar-se, mas ainda fazia esforços para reprimir
as lágrimas. A avó dormia.
Por trás da cama de Eréndira, muito devagar, Ulisses assomou a cabeça. Ela viu os
olhos ansiosos e diáfanos, mas, antes de dizer alguma coisa, esfregou a cara com a toalha,
para ter a prova de que não era uma ilusão. Quando Ulisses pestanejou pela primeira vez,
Eréndira perguntou-lhe em voz muito baixa:
- Quem és tu?
Ulisses mostrou-se até aos ombros. «Chamo-me Ulisses», disse. Mostrou-lhe as notas
roubadas e acrescentou:
- Trago o dinheiro.
Eréndira apoiou as mãos em cima da cama, aproximou a sua cara da de Ulisses e
continuou a falar com ele como numa brincadeira de escola primária.
- Tinhas de te pôr na bicha - disse.
- Esperei toda a noite - disse Ulisses.
- Pois agora tens de esperar até amanhã - disse Eréndira. - Sinto-me como se me
tivessem dado com trancas nos rins.
Nesse instante a avó começou a falar adormecida.
- Vai fazer vinte anos que choveu a última vez - disse.
- Foi uma tormenta tão terrível que a chuva veio de mistura com água do mar e a casa
amanheceu cheia de peixes e de conchas, e o teu avô Amadís, que em paz descanse, viu
uma manta luminosa a navegar pelo ar.
Ulisses voltou a esconder-se por detrás da cama. Eréndira teve um sorriso divertido.
- Fica sossegado - disse-lhe. - Sempre fica como louca quando está adormecida, mas
não acorda nem com um tremor de terra.
Ulisses mostrou-se de novo. Eréndira contemplou-o com um sorriso travesso, e até um
pouco carinhoso, e tirou da esteira o lençol usado.
- Vem - disse-lhe -, ajuda-me a mudar o lençol. Então Ulisses saiu de trás da cama e
segurou o lençol por uma ponta. Como era um lençol muito mais grande que a esteira,
eram necessários vários tempos para o dobrar. No fim de cada dobra, Ulisses estava mais
perto de Eréndira.
- Estava doido por ver-te - disse subitamente. - Toda a gente diz que és muito bela, e é
verdade.
- Mas vou morrer - disse Eréndira.
- A minha mãe diz que os que morrem no deserto não vão para o céu, mas para o mar -
disse Ulisses.
Eréndira pôs de lado o lençol sujo e cobriu a esteira com outro, limpo e engomado.
- Não conheço o mar - disse.
- É como o deserto, mas com água - disse Ulisses.
- Então não se pode andar.
- O meu papá conheceu um homem que sim, que podia - disse Ulisses -, mas há muito
tempo.
Eréndira estava encantada, mas queria dormir.
- Se vens amanhã bem cedo, pões-te no primeiro lugar- disse.
- Parto com o meu papá pela madrugada - disse Ulisses.
- E não voltam a passar por aqui?
- Sabe-se lá quando - disse Ulisses. - Agora passámos por acaso, porque nos
perdemos no caminho da fronteira. Eréndira olhou, pensativa, para a avó adormecida.
- Bem - decidiu -, dá-me o dinheiro.
Ulisses deu-lho. Eréndira deitou-se na cama, mas ele permaneceu trémulo no seu sítio:
no instante decisivo, a sua determinação tinha fraquejado. Eréndira tomou-o pela mão,
para que se apressasse, e só então reparou na sua tribulação. Ela conhecia esse medo.
- É a primeira vez? - perguntou-lhe.
Ulisses não respondeu, mas teve um sorriso desolado. Eréndira tornou-se diferente.
- Respira devagar - disse-lhe. - É sempre assim ao princípio, e depois nem dás por
isso.
Deitou-o ao seu lado, e, enquanto lhe tirava a roupa, foi-o apaziguando com recursos
maternos.
- Como é que te chamas?
- Ulisses.
- É nome de gringo - disse Eréndira.
- Não, de navegante.
Eréndira descobriu-lhe o peito, deu-lhe beijinhos órfãos, farejou-o.
- Pareces todo de ouro - disse -, mas cheiras a flores.
- Deve ser a laranjas - disse Ulisses.
Já mais tranquilo, teve um sorriso de cumplicidade.
-Andamos com muitos pássaros, para despistar - acrescentou -, mas o que levamos
para a fronteira é um contrabando de laranjas.
- As laranjas não são contrabando - disse Eréndira.
- Estas sim - disse Ulisses. - Cada uma custa cinquenta mil pesos.
Eréndira riu-se pela primeira vez, desde havia muito tempo.
- O que mais gosto de ti - disse -, é a seriedade com que inventas os disparates.
Tinha-se tornado espontânea e loquaz como se a inocência de Ulisses lhe tivesse
mudado não só o humor, como também a índole. A avó, a tão curta distância da fatalidade,
continuou a falar adormecida.
- Por esses tempos, em princípios de Março, trouxeram-te para casa - disse. -
Parecias uma lagartixa envolvida em algodões. Amadís, teu pai, que era jovem e bonito,
estava tão contente naquela tarde que mandou buscar cerca de vinte carroças carregadas
de flores, e chegou gritando e atirando flores pela rua, até que todo o povoado ficou
doirado de flores como o mar.
Delirou várias horas, em altos gritos, e com uma paixão obstinada. Mas Ulisses não a
ouviu, porque Eréndira o tinha amado tanto, e com tanta sinceridade, que tornou a amá-lo
pela metade do seu preço, enquanto a avó delirava, e continuou a amá-lo sem dinheiro até
ao amanhecer.
Um grupo de missionários com os crucifixos levantados tinham-se fincado ombro a
ombro no meio do deserto. Um vento tão bravo como o da desgraça sacudia os seus
hábitos de canhamaço e as suas barbas agrestes, e mal lhes permitia manterem-se de pé.
Atrás deles estava o edifício da missão, um promontório colonial com um campanário
minúsculo sobre os muros ásperos e caiados.
O missionário mais jovem, que comandava o grupo, apontou com o indicador uma
greta natural no solo de argila vidrada.
- Não passem essa risca - gritou.
Os quatro carregadores índios que transportavam a avó num palanquim de tábuas
detiveram-se ao ouvir o grito.
Apesar de ir mal sentada no soalho do palanquim e de ter o ânimo entorpecido pelo
pó e o suor do deserto, a avó mantinha-se na sua altivez. Eréndira ia a pé. Atrás do
palanquim havia uma fila de oito índios de carga, e por fim o fotógrafo na bicicleta.
- O deserto não é de ninguém - disse a avó.
- É de Deus - disse o missionário -, e violais as suas santas leis com o vosso tráfico
imundo.
A avó reconheceu então a forma e a dicção peninsulares do missionário e iludiu o
encontro frontal, para não se sair mal contra a sua intransigência. Voltou a ser ela mesma.
- Não entendo os teus mistérios, filho. O missionário indicou Eréndira.
- Essa criatura é menor de idade.
- Mas é minha neta.
- Ainda pior - replicou o missionário. - Põe-na debaixo da nossa custódia, às boas, ou
teremos de recorrer a outros métodos.
A avó não esperava que chegassem a tanto.
- Está bem - cedeu, assustada. - Mas mais tarde ou mais cedo passarei, hás-de ver.
Três dias depois do encontro com os missionários, a avó e Eréndira dormiam numa
povoação próxima do convento, quando uns corpos sigilosos, mudos, rastejando como
patrulhas de assalto, deslizaram para dentro da tenda de campanha. Eram seis noviças
índias, fortes e jovens, com os hábitos de tela crua que pareciam fosforescentes nos
lampejos de Lua. Sem fazer um único ruído, cobriram Eréndira com um toldo de
mosquiteiro, levantaram-na, sem a acordar, e levaram-na embrulhada como um peixe
grande e frágil capturado numa rede lunar.
Não houve um recurso que a avó não tivesse intentado para resgatar a neta da tutela
dos missionários. Só quando lhe falharam todos, desde os mais direitos aos mais torcidos,
recorreu à autoridade civil, que era exercida por um militar. Encontrou-o no pátio da sua
casa, com o torso nu, disparando com um rifle de guerra contra uma nuvem escura e
solitária no céu ardente. Tentava perfurá-la, para que chovesse, e os seus disparos eram
encarniçados e inúteis, mas fez as pausas necessárias para escutar a avó.
- Eu não posso fazer nada - explicou-lhe, quando acabou de ouvi-la -, os padrezinhos,
de acordo com a Concordata, têm direito a ficar com a menina até que seja maior de
idade. Ou até que se case.
- E então para que o têm a si como alcaide? - perguntou a avó.
- Para que faça chover - disse o alcaide.
A seguir, vendo que a nuvem se tinha posto fora do seu alcance, interrompeu os seus
deveres oficiais e ocupou-se completamente da avó.
- O que a senhora precisa é de uma pessoa de muita influência que responda por si -
disse-lhe. - Alguém que garanta a sua moralidade e os seus bons costumes, com uma carta
assinada. Não conhece o senador Onésimo Sánchez?
Sentada sob o sol puro num tamborete demasiado estreito para as suas nádegas
siderais, a avó respondeu com uma raiva solene:
- Sou uma pobre mulher isolada na imensidade do deserto.
O alcaide, com o olho direito torcido pelo calor, contemplou-a com dó.
- Então não perca mais tempo, senhora - disse. - Levou-a o Diabo.
Não a levou, é de supor. Instalou a tenda em frente do convento da missão e sentou-se
a pensar, como um guerreiro solitário que mantivesse em estado de sítio uma cidade
fortificada. O fotógrafo ambulante, que a conhecia muito bem, carregou os seus utensílios
na grade da bicicleta e dispôs-se a partir só, quando a viu em pleno sol, os olhos fixos no
convento.
- Vamos a ver quem se cansa primeiro - disse a avó -, eles ou eu.
- Eles estão ali há trezentos anos, e ainda aguentam - disse o fotógrafo. - Eu vou-me
embora.
Só então a avó viu a bicicleta carregada.
- Para onde vais?
- Para onde me leve o vento - disse o fotógrafo, e foi-se embora. - O mundo é grande.
A avó suspirou.
- Não tanto como tu pensas, desmerecido.
Mas não moveu a cabeça, apesar do rancor, para não apartar a vista do convento. Não
a apartou durante muitos dias de calor mineral, durante muitas noites de ventos perdidos,
durante o tempo da meditação, em que ninguém saiu do convento. Os índios construíram
um alpendre de palmas junto da tenda, e ali instalaram as suas redes, mas a avó velava até
muito tarde, cabeceando no seu trono e ruminando os cereais crus da sua fraldiqueira com
a indolência invencível de um boi deitado.
Uma noite passou muito perto dela uma fila de camiões tapados, lentos, cujas únicas
luzes eram umas grinaldas de focos de cores que lhes davam um tamanho espectral de
altares sonâmbulos. A avó reconheceu-os imediatamente, porque eram iguais aos camiões
dos Amadises. O último do séquito atrasou-se, deteve-se e um homem desceu da cabina
para arranjar alguma coisa na plataforma da carga. Parecia uma réplica dos Amadises,
com um barrete de aba revirada, botas altas, duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil
militar e duas pistolas. Vencida por uma tentação irresistível, a avó chamou o homem.
- Não sabes quem sou? - perguntou-lhe.
O homem iluminou-a sem piedade, com uma lanterna de pilhas. Contemplou durante
um momento o rosto estragado pela vigília, os olhos apagados de cansaço, o cabelo
desbotado da mulher que, mesmo com a idade que tinha, teria podido dizer que tinha sido
a mais bela do mundo. Depois de a examinar suficientemente, para se convencer de que
não a tinha visto nunca, apagou a lanterna.
- A única coisa que sei com toda a certeza - disse -, é que você não é a Virgem dos
Remédios.
- Exactamente o contrário - disse a avó, com uma voz doce. - Sou a Dama.
O homem pôs a mão na pistola, por puro instinto.
- Qual dama?
- A de Amadís, o Grande.
- Então não é deste mundo - disse ele, tenso. - O que é que quer?
- Que me ajudem a resgatar a minha neta, neta de Amadís, o Grande, filha do nosso
Amadís, que está presa nesse convento.
O homem dominou os seus receios.
- Enganou-se na porta - disse. - Se pensa que somos capazes de contrariar os
desígnios de Deus, você não é a que diz que é, nem sequer conheceu os Amadises, nem
tem a mais pura ideia do que é o contrabando.
Nessa madrugada a avó dormiu menos que nas anteriores. Passou-a a ruminar,
envolvida numa manta de lã, enquanto o tempo da noite lhe confundia a memória e os
delírios reprimidos lutavam por sair, embora estivesse acordada, e tinha de apertar o
coração com a mão para que não a sufocasse a recordação de uma casa de praia com
grandes flores coloridas, onde tinha sido feliz. Assim se manteve até que tocou o sino do
convento e se acenderam as primeiras luzes nas janelas e o deserto se encheu do cheiro a
pão quente das matinas. Só então se abandonou ao cansaço, enganada pela ilusão de que
Eréndira se tinha levantado e estava a procurar a maneira de escapar-se para voltar para
ela.
Eréndira, em contrapartida, não perdeu nem uma noite de sono desde que a levaram
para o convento. Tinham-lhe cortado o cabelo com umas tesouras de podar, até lhe
deixarem a cabeça como uma escova, vestiram-lhe o rude balandrau de tela das reclusas e
entregaram-lhe um balde de água de cal e uma escova, para que caiasse os degraus das
escadas cada vez que alguém os pisasse. Era um trabalho de mula, porque havia um subir
e descer incessante de missionários cobertos de barro e noviças de carga, mas Eréndira
sentiu-o como um domingo de todos os dias depois da galera mortal da cama. Além disso,
não era ela a única esgotada quando anoitecia, pois aquele convento não estava
consagrado à luta contra o Demónio, mas à luta contra o deserto. Eréndira tinha visto as
noviças indígenas desbravando as vacas com pancadas no pescoço, para ordenhá-las nos
estábulos, saltando dias inteiros sobre as tábuas para espremer os queijos, assistindo as
cabras num parto difícil. Tinha-as visto transpirar como estivadores curtidos tirando a
água do poço, regando à mão uma horta temerária que outras noviças tinham lavrado com
enxadões para plantar legumes no pedernal do deserto. Tinha visto o inferno terrestre dos
fornos do pão e os alojamentos de pranchas. Tinha visto uma freira a perseguir um porco
pelo pátio, viu-a escorregar com o porco chimarrão agarrado pelas orelhas e rebolar-se
num barrocal sem o largar, até que duas noviças com aventais de couro a ajudaram a
dominá-lo e uma delas o degolou com uma faca de magarefe e todas ficaram empapadas
de sangue e de lodo. Tinha visto no pavilhão afastado do hospital as freiras tísicas, com
os seus camisões de mortas, que esperavam a última ordem de Deus bordando lençóis
matrimoniais nos terraços, enquanto os homens da missão predicavam no deserto.
Eréndira vivia na sua penumbra, descobrindo outras formas de beleza e de horror que
nunca tinha imaginado no mundo estreito da cama, mas nem as noviças mais bravias nem
as mais persuasivas tinham conseguido que dissesse uma palavra desde que a levaram
para o convento. Uma manhã, quando estava misturando a cal com a água num balde,
ouviu uma música de cordas que parecia uma luz mais diáfana na luz do deserto. Cativada
pelo milagre, assomou a um salão imenso e vazio de paredes nuas e janelas grandes, por
onde entrava a jorros e ficava detida a claridade deslumbrante de Junho, e no centro do
salão viu uma freira bela que ainda não tinha visto, tocando uma oratória de Páscoa no
clavicórdio. Eréndira escutou a música sem pestanejar, com a alma num fio, até que tocou
o sino para a refeição. Depois do almoço, enquanto branqueava a escada com a broxa de
esparto, esperou que todas as noviças acabassem de subir e descer, ficou só, aonde
ninguém a pudesse ouvir, e então falou pela primeira vez desde que tinha entrado no
convento.
- Sou feliz - disse.
De maneira que, para a avó, se tinham acabado as esperanças de que Eréndira se
escapasse para voltar para ela, mas manteve o seu assédio de granito, sem tomar nenhuma
decisão, até ao Domingo de Pentecostes. Por essa época os missionários percorriam o
deserto à procura de concubinas grávidas, para as casar. Iam até às povoações mais
esquecidas numa camionetazinha decrépita, com quatro homens da tropa bem armados e
um arcaz com géneros de pacotilha. O mais difícil daquela caça de índios era convencer
as mulheres, que se defendiam da graça divina com o argumento verídico de que os
homens se sentiam com direito a exigir às esposas legítimas um trabalho mais pesado que
às concubinas, enquanto eles dormiam esparramados nas redes. Era preciso seduzi-las
com recursos de engano, dissolvendo-lhes a vontade de Deus no xarope do seu próprio
idioma, para que a achassem menos áspera, mas até as mais manhosas acabavam por se
convencer com umas arrecadas de ouropel. Aos homens, em troca, uma vez obtido o
assentimento da mulher, tiravam-nos com coronhadas das redes e levavam-nos amarrados
na plataforma de carga, para casá-los à força.
Durante vários dias a avó viu passar em direcção do convento o camiãozinho
carregado de índias grávidas, mas não reconheceu a sua oportunidade. Teve-a no próprio
Domingo de Pentecostes, quando ouviu os foguetes e o repenicar dos sinos, e viu a
multidão miserável e alegre que passava para a festa, e viu que entre as multidões havia
mulheres grávidas com véus e coroas de noiva, levando pelo braço os maridos de acaso
para torná-los legítimos na boda colectiva.
Entre os últimos do desfile passou um rapaz de coração inocente, de cabelo índio
cortado como uma íotuma (Espécie de abóbora americana que, depois de seca, serve
para conter líquidos. (N. da T.)) e vestido com andrajos, que levava na mão um círio
pascal com um laço de seda. A avó chamou-o.
- Explica-me uma coisa, filho - perguntou-lhe, com a sua voz mais terna. - Que vais
fazer com essa cumbiambal (Dança da América do Sul em que os bailarinos levam um
círio na mão. (N. da T.))
O rapaz sentia-se intimidado com o círio e tinha dificuldade em fechar a boca, por
causa dos seus dentes de burro.
- É que os padrezinhos vão dar-me a primeira comunhão - disse.
- Quanto te pagaram?
- Cinco pesos.
A avó tirou da fraldiqueira um rolo de notas, que o rapaz olhou assombrado.
- Eu vou dar-te vinte - disse a avó. - Mas não para que faças a primeira comunhão, e
sim para que te cases.
- E isso com quem?
- Com a minha neta.
Foi assim que Eréndira se casou no pátio do convento, com o balandrau de reclusa e
uma mantilha de renda que lhe ofereceram as noviças, e sem saber sequer como se
chamava o esposo que a sua avó lhe tinha comprado. Suportou com uma esperança incerta
o tormento dos joelhos no solo de salitre, a pestilência de couro de cabrito das duzentas
noivas grávidas, o castigo da Epístola de São Paulo martelada em latim sob a canícula
imóvel, porque os missionários não encontraram recursos para opor-se à artimanha da
boda imprevista, mas tinham-lhe prometido uma última tentativa para a manter no
convento. Não obstante, no fim da cerimónia, e em presença do prefeito apostólico, do
alcaide militar que disparava contra as nuvens, do seu esposo recente e da sua avó
impassível, Eréndira sentiu-se de novo sob o encantamento que a tinha dominado desde o
seu nascimento. Quando lhe perguntaram qual era a sua vontade livre, verdadeira e
definitiva, não teve nem um suspiro de hesitação.
- Quero ir-me embora - disse. E esclareceu, apontando para o esposo: - Mas não vou
com ele, e sim com a minha avó.
Ulisses tinha perdido a tarde a tentar roubar uma laranja na plantação de seu pai, pois
este não lhe tirou a vista de cima enquanto podavam as árvores doentes e a sua mãe
vigiava-o de casa. De maneira que renunciou ao seu intento, pelo menos por aquele dia, e
ficou de má vontade a ajudar o seu pai, até que acabaram de podar as últimas laranjeiras.
A extensa plantação era discreta e escondida e a casa, de madeira com tecto de latão,
tinha redes de cobre nas janelas e um terraço grande suportado por estacas, com plantas
primitivas de flores intensas. A mãe de Ulisses estava no terraço, deitada numa cadeira de
balanço vienense, com folhas esfumaçadas nas têmporas, para aliviar a dor de cabeça, e o
seu olhar de índia pura seguia os movimentos do filho como um feixe de luz invisível até
aos lugares mais esquivos do laranjal. Era muito bela, muito mais jovem que o marido, e
não só continuava a vestir-se com o camisão da tribo, como também conhecia os segredos
mais antigos do seu sangue.
Quando Ulisses voltou a casa com os ferros de podar, sua mãe pediu-lhe o
medicamento das quatro, que estava numa mesinha próxima. Mal ele lhes tocou, o copo e
o frasco mudaram de cor. A seguir tocou por simples travessura numa jarra de cristal que
estava na mesa com outros copos, e também a jarra se tornou azul. A sua mãe observou-o
enquanto tomava o remédio, e quando teve a certeza de que não era um delírio da sua dor
perguntou-lhe em língua guajira:
- Há quanto tempo te acontece?
- Desde que voltámos do deserto - disse Ulisses, também em guajiro. - É só com as
coisas de vidro.
Para o demonstrar, tocou um a seguir aos outros nos copos que estavam na mesa, e
todos mudaram de cores diferentes.
- Essas coisas só acontecem por amor - disse a mãe. - Quem é?
Ulisses não respondeu. O seu pai, que não sabia a língua guajira, passava nesse
momento pelo terraço com um cacho de laranjas.
- De que falam? - perguntou a Ulisses em holandês.
- De nada de especial - respondeu Ulisses.
A mãe de Ulisses não sabia o holandês. Quando o seu marido entrou em casa,
perguntou ao filho em guajiro:
- Que te disse?
- Nada de especial - disse Ulisses.
Perdeu o seu pai de vista quando ele entrou em casa, mas tornou a vê-lo, por uma
janela, dentro do escritório. A mãe esperou até ficar a sós com Ulisses, e então insistiu:
- Diz-me quem é.
- Não é ninguém - respondeu Ulisses.
Respondeu distraído, porque estava pendente dos movimentos do seu pai dentro do
escritório. Tinha-o visto pôr as laranjas sobre a caixa forte para compor a chave do
segredo. Mas, enquanto ele vigiava seu pai, a sua mãe vigiava-o a ele.
- Há muito tempo que não comes pão - observou ela.
- Não me agrada.
O rosto da mãe adquiriu de repente uma vivacidade insólita. «Mentira», disse. «É
porque estás a padecer de amor, e os que estão assim não podem comer pão.» A sua voz,
como os seus olhos, tinha passado da súplica à ameaça.
- Mais vale que me digas quem é - disse -, ou dou-te à força uns banhos de
purificação.
No escritório, o holandês abriu a caixa forte, meteu lá as laranjas e tornou a fechar a
porta blindada. Ulisses afastou-se então da janela e respondeu à sua mãe com
impaciência:
- Já te disse que não é ninguém. Se não me acreditas, pergunta-o ao meu pai.
O holandês apareceu na porta do escritório, acendendo o cachimbo de navegante e
com a sua Bíblia carcomida debaixo do braço. A mulher perguntou-lhe em castelhano:
- Quem conheceram no deserto?
- Ninguém - respondeu-lhe o seu marido, um pouco nas nuvens. - Se não me acreditas,
pergunta-o a Ulisses.
Sentou-se no fundo do corredor a chupar o cachimbo, até que se lhe esgotou o tabaco.
Depois abriu a Bíblia ao acaso e recitou fragmentos salteados durante quase duas horas,
num holandês fluido e retumbante.
À meia-noite, Ulisses continuava a pensar com tanta intensidade que não podia
dormir. Revirou-se na rede mais uma hora, tentando dominar a dor das recordações, até
que a própria dor lhe deu a força que lhe fazia falta para decidir. Então vestiu as calças de
vaqueiro, a camisa de quadrados escoceses e as botas de montar e saltou pela janela e
fugiu de casa na camioneta carregada de pássaros. Ao passar pela plantação arrancou as
três laranjas maduras que não tinha podido roubar durante a tarde.
Viajou pelo deserto o resto da noite, e, ao amanhecer, perguntou pelas povoações e
povoados qual era o rumo de Eréndira, mas ninguém lhe dava notícias. Por fim
informaram-no de que ia atrás da comitiva eleitoral do senador Onésimo Sánchez, e que
este devia encontrar-se naquele dia em Nueva Castilla. Não o encontrou ali, mas na
povoação seguinte, e já Eréndira não andava com ele, pois a avó tinha conseguido que o
senador engolisse a sua moralidade com uma carta escrita pela sua mão, e ia-se abrindo
com ela as portas melhor trancadas do deserto. No terceiro dia encontrou-se com o
homem do correio nacional, e este indicou-lhe a direcção que procurava.
- Vão para o mar - disse-lhe. - E apressa-te, que a intenção da fodida velha é passar
para a ilha de Aruba.
Nesse rumo, Ulisses divisou ao cabo de meia jornada a capa ampla e maltratada que a
avó tinha comprado a um circo em falência. O fotógrafo errante tinha tornado ajuntar-se a
ela, convencido de que, com efeito, o mundo não era tão grande como pensava, e tinha
instalado cerca da barraca os seus panos de fundo idílicos. Uma banda de músicos de
charanga cativava os clientes de Eréndira com uma valsa taciturna.
Ulisses esperou o seu turno para entrar, e a primeira coisa que lhe chamou a atenção
foi a ordem e a limpeza no interior da barraca. A cama da avó tinha recuperado o seu
esplendor vice-real, a estátua do anjo estava no seu lugar, junto ao baú funerário dos
Amadises, e havia, além disso, uma banheira de estanho com patas de leão. Deitada no
seu novo leito de dossel, Eréndira estava nua e plácida e irradiava um fulgor infantil sob a
luz filtrada da barraca. Dormia com os olhos abertos. Ulisses deteve-se junto dela, com as
laranjas na mão, e reparou que o estava a olhar sem vê-lo. Então passou a mão diante dos
seus olhos e chamou-a pelo nome que tinha inventado para pensar nela:
- Arídnere.
Eréndira acordou. Sentiu-se nua diante de Ulisses, soltou um guincho surdo e tapou-se
com o lençol até à cabeça.
- Não olhes para mim - disse. - Estou horrível.
- Estás toda cor de laranja - disse Ulisses. Pôs as frutas à altura dos seus olhos, para
que ela comparasse. - Olha.
Eréndira destapou os olhos e constatou que, com efeito, as laranjas tinham a sua cor.
- Agora não quero que fiques - disse.
- Só entrei para mostrar-te isto - disse Ulisses. - Repara. Abriu uma laranja com as
unhas, partiu-a com as duas mãos, e mostrou a Eréndira o interior: cravado no coração da
fruta, estava um diamante legítimo.
- Estas são as laranjas que levamos à fronteira - disse.
- Mas são laranjas vivas! - exclamou Eréndira.
- Claro - sorriu Ulisses. - Semeia-as o meu pai. Eréndira não o podia acreditar.
Destapou a cara, pegou no diamante com os dedos e contemplou-o, assombrada.
- Com três assim damos a volta ao mundo - disse Ulisses. Eréndira devolveu-lhe o
diamante, com um ar de desalento. Ulisses insistiu.
- Além disso, tenho uma camioneta - disse. - E ainda... Olha!
Tirou de baixo da camisa uma pistola arcaica.
- Não posso ir-me embora antes de dez anos - disse
Eréndira.
- Irás - disse Ulisses. - Esta noite, quando adormecer a baleia branca, eu estarei lá
fora, piando como a coruja.
Fez uma imitação tão perfeita do piar da coruja que os olhos de Eréndira sorriram
pela primeira vez.
- É minha avó - disse.
- A coruja?
- A baleia.
Ambos se riram do engano, mas Eréndira retomou o fio.
- Ninguém pode partir para nenhuma parte sem a autorização da sua avó.
- Não é preciso dizer-lhe nada.
- De todas as maneiras, virá a sabê-lo - disse Eréndira. - Ela sonha as coisas.
- Quando começar a sonhar que te vais embora, já estaremos do outro lado da
fronteira. Passaremos como os contrabandistas... - disse Ulisses.
Empunhando a pistola com um à-vontade de bandido de cinema, imitou o som dos
disparos, para animar Eréndira com a sua audácia. Ela não disse nem que sim nem que
não, mas os seus olhos suspiraram, e despediu Ulisses com um beijo. Ulisses, comovido,
murmurou:
- Amanhã veremos passar os navios.
Naquela noite, pouco depois das sete, Eréndira estava a pentear a avó quando voltou a
soprar o vento da sua desgraça. Ao abrigo da barraca estavam os índios carregadores e o
director da charanga esperando o pagamento do seu salário. A avó acabou de contar as
notas de um arcaz que tinha cerca de si, e, depois de consultar um caderno de contas,
pagou ao chefe dos índios.
- Aqui tens - disse-lhe -, vinte pesos por semana, menos oito pela comida, menos três
pela água, menos cinquenta centavos pelo tratamento das camisas novas, são oito e
cinquenta. Conta-os bem.
O índio chefe contou o dinheiro, e todos se retiraram com uma reverência.
- Obrigado, branca.
O seguinte era o director dos músicos. A avó consultou o caderno de contas e dirigiuse
ao fotógrafo, que estava a tentar remendar o fole da máquina com emplastros de gutapercha.
- Em que ficamos - disse-lhe -, pagas ou não pagas a quarta parte da música?
O fotógrafo nem sequer levantou a cabeça para responder.
- A música não se vê nos retratos.
- Mas desperta nas pessoas a vontade de tirar retratos - replicou a avó.
- Pelo contrário - disse o fotógrafo -, faz-lhes recordar os mortos, e depois ficam nos
retratos com os olhos fechados.
O director da charanga interveio.
- O que faz fechar os olhos não é a música - disse -, são os relâmpagos de tirar
retratos à noite.
- É a música - insistiu o fotógrafo.
A avó pôs fim à discussão. «Não sejas estúpido», disse ao fotógrafo. «Repara como
as coisas correm bem ao senhor Onésimo Sánchez, e é graças aos músicos que leva.» A
seguir, de uma maneira dura, concluiu:
- De maneira que pagas a parte que te corresponde ou continuas só com o teu destino.
Não é justo que essa pobre criatura acarrete com todo o peso dos gastos.
- Sigo só o meu destino - disse o fotógrafo. - Ao fim e ao cabo, eu o que sou é um
artista.
A avó encolheu os ombros e ocupou-se do músico. Entregou-lhe um maço de notas, de
acordo com a cifra escrita no caderno.
- Duzentas e cinquenta e quatro peças - disse-lhe -, a cinquenta centavos cada uma,
mais trinta e duas nos domingos e feriados, a sessenta centavos cada uma, são cento e
cinquenta e seis e vinte.
O músico não recebeu o dinheiro.
- São cento e oitenta e dois e quarenta - disse. - As valsas são mais caras.
- E isso porquê?
- Porque são mais tristes - disse o músico. A avó obrigou-o a pegar no dinheiro.
- Pois então esta semana tocas-nos duas peças alegres por cada valsa que te devo, e
ficamos em paz.
O músico não compreendeu a lógica da avó, mas aceitou as contas enquanto
desenredava o enredo. Nesse momento, o vento espavorido quase desenraizou a barraca,
e, no silêncio que deixou na sua passagem, ouviu-se lá fora, nítido e lúgubre, o piar do
mocho.
Eréndira não soube como fazer para dissimular a sua perturbação. Fechou a arca do
dinheiro e escondeu-a debaixo da cama, mas a avó reparou-lhe no tremor da mão quando
lhe entregou a chave. «Não te assustes», disse-lhe. «Há sempre corujas nas noites de
vento.» Contudo, não deu mostras da mesma convicção quando viu sair o fotógrafo com a
câmara às costas.
- Se queres, fica até amanhã - disse-lhe -, a morte anda à solta esta noite.
Também o fotógrafo reparou no piar da coruja, mas não mudou de ideias.
- Fica, filho - insistiu a avó -, quando por mais não seja, pelo carinho que te tenho.
- Mas não pago a música - disse o fotógrafo.
- Ah, não - disse a avó. - Isso não.
- Está a ver? - disse o fotógrafo. - Você não gosta de ninguém.
A avó empalideceu de raiva.
- Então põe-te a andar - disse. - Filho da puta! Sentia-se tão ultrajada que continuou a
disparatar contra ele enquanto Eréndira a ajudava a deitar-se. «Filho de má mãe»,
resmungava. «O que saberá esse bastardo do coração alheio.» Eréndira não lhe prestou
atenção, pois a coruja chamava-a com uma insistência tenaz nas pausas do vento e estava
atormentada pela incerteza. A avó acabou de deitar-se com o mesmo ritual que era de
rigor na mansão antiga, e, enquanto a neta a abanava, conseguiu sobrepor-se ao rancor e
tornou a respirar os seus ares estéreis.
- Tens de madrugar - disse então -, para me ferveres a infusão do banho antes que
cheguem as pessoas.
- Sim, avó.
- Com o tempo que te sobre, lava a muda suja dos índios, e assim teremos alguma
coisa mais para descontar-lhes na semana que entra.
- Sim, avó - disse Eréndira.
- E dorme devagar, para não te cansares, que amanhã é quinta-feira, o dia mais longo
da semana.
- Sim, avó.
- E pões a comida à avestruz.
- Sim, avó - disse Eréndira.
Deixou o leque na cabeceira da cama e acendeu duas velas de altar diante do altar dos
seus mortos. A avó, já adormecida, deu-lhe a ordem atrasada.
- Não te esqueças de acender as velas dos Amadises.
- Sim, avó.
Eréndira sabia nessa altura que não acordaria, porque tinha começado a delirar. Ouviu
os ladridos do vento em volta da barraca, mas também dessa vez não tinha reconhecido o
sopro da sua desgraça. Saiu para a noite, até que voltou a piar a coruja, e o seu instinto de
liberdade prevaleceu finalmente contra o feitiço da avó.
Não tinha dado cinco passos fora da barraca quando encontrou o fotógrafo, que estava
a amarrar os seus aparelhos na grade da bicicleta. O seu sorriso cúmplice tranquilizou-a.
- Eu não sei nada - disse o fotógrafo -, não vi nada, nem pago a música.
Despediu-se com uma bênção universal. Eréndira correu então em direcção do
deserto, decidida para sempre, e perdeu-se nas trevas do vento, onde piava a coruja.
Dessa vez a avó recorreu imediatamente à autoridade civil. O comandante do piquete
de prevenção local saltou da rede às seis da manhã, quando ela lhe pôs diante dos olhos a
carta do senador. O pai de Ulisses esperava na porta.
- Porra, como quer que a leia - gritou o comandante -, se não sei ler?!
- É uma carta de recomendação do senador Onésimo Sánchez - disse a avó.
Sem mais perguntas, o comandante despendurou um rifle que tinha perto da rede e
começou a gritar ordens aos seus agentes. Cinco minutos depois estavam todos dentro de
uma camioneta militar, voando em direcção à fronteira, com um vento contrário que
apagava os rastos dos fugitivos. No assento da frente, junto do condutor, viajava o
comandante. Atrás estava o holandês, com a avó, e em cada estribo ia um agente armado.
Muito próximo da povoação detiveram uma caravana de camiões cobertos com lona
impermeável. Vários homens que viajavam escondidos na plataforma da carga levantaram
a lona e apontaram para a camioneta com metralhadoras e rifles de guerra. O comandante
perguntou ao condutor do primeiro camião a que distância tinha encontrado uma
camioneta de fazenda carregada de pássaros.
O condutor arrancou, antes de responder.
- Nós não somos chibos - disse, indignado -, somos contrabandistas.
O comandante viu passar muito perto dos seus olhos os canos enegrecidos das
metralhadoras, levantou os braços e sorriu.
- Pelo menos - gritou-lhes -, tenham a decência de não circular em pleno sol.
O último camião levava um letreiro no pára-choques posterior: «Penso em ti
Eréndira».
O vento ia-se tornando mais árido à medida que avançavam para o norte, e o sol era
mais forte com o vento, e era difícil respirar, por causa do calor e do pó, dentro da
camioneta fechada.
A avó foi a primeira que avistou o fotógrafo: pedalava no mesmo sentido em que eles
voavam, sem outro amparo contra a insolação que um lenço amarrado na cabeça.
- Lá está - apontou-o -, esse foi o cúmplice. Filho da puta.
O comandante ordenou a um dos agentes do estribo que se encarregasse do fotógrafo.
- Agarra-o e esperas-nos aqui - disse-lhe. -Já voltamos.
O agente saltou do estribo e deu duas vozes de parar ao fotógrafo. O fotógrafo não o
ouviu, pelo vento contrário. Quando a camioneta o ultrapassou, a avó fez-lhe um gesto
enigmático, mas ele confundiu-o com uma saudação, sorriu e disse-lhe adeus com a mão.
Não ouviu o disparo. Deu uma cambalhota no ar e caiu morto em cima da bicicleta, com a
cabeça destroçada por uma bala de rifle que nunca soube de onde lhe veio.
Antes do meio-dia começaram a ver as penas. Passavam no vento, e eram penas de
pássaros novos, e o holandês conheceu-as, porque eram as dos seus pássaros depenados
pelo vento. O condutor corrigiu o rumo, carregou a fundo no pedal, e antes de meia hora
avistaram a camioneta no horizonte.
Quando Ulisses viu aparecer o carro militar no espelho do retrovisor, fez um esforço
para aumentar a distância, mas o motor não dava para mais. Tinham viajado sem dormir e
estavam estragados de cansaço e de sede. Eréndira, que dormitava no ombro de Ulisses,
acordou assustada. Viu a camioneta que estava quase a alcançá-los e com uma
determinação cândida pegou na pistola do porta-luvas.
- Não serve - disse Ulisses. - Era de Francis Drake.
Puxou-lhe o gatilho várias vezes e atirou-a pela janela. A patrulha militar ultrapassou
a destrambelhada camioneta carregada de pássaros depenados pelo vento, fez uma curva
forçada e barrou-lhe o caminho.
Conheci-as por essa época, que foi a de mais grande esplendor, apesar de que não
viria a esquadrinhar os pormenores da sua vida senão muitos anos depois, quando Rafael
Escalona revelou numa canção o desenlace terrível do drama e me pareceu que era bom
para contar. Eu andava a vender enciclopédias e livros de medicina pela província de
Riohacha. Álvaro Cepeda Samudio, que andava também por esses rumos a vender
máquinas de cerveja gelada, levou-me na sua camioneta pelas povoações do deserto, com
a intenção de falar-me de não sei quê, e falámos tanto de nada e tomámos tanta cerveja
que sem saber quando nem por onde atravessámos o deserto inteiro e chegámos até à
fronteira. Ali estava a barraca do amor errante, sob as telas com letreiros penduradas:
«Eréndira é melhor», «Vá e volte, Eréndira espera-o», «Isto não é vida sem Eréndira». A
bicha interminável e ondulante, composta por homens de raças e condições diferentes,
parecia uma serpente de vértebras humanas que dormitava através de solares e praças,
por entre bazares coloridos e mercados barulhentos, e saía das ruas daquela cidade
fragorosa de traficantes de passagem. Cada rua era uma casa de jogo pública, cada casa
uma taberna, cada porta um refúgio de desertores. As numerosas músicas indecifráveis e
os pregões lançados formavam um só estrondo de pânico no calor alucinante.
Entre a multidão de desertores e fura-vidas estava Blacamán o Bom, encarrapitado
numa mesa, pedindo uma cobra verdadeira para demonstrar em carne própria um antídoto
da sua invenção. Estava a mulher que se tinha convertido em aranha por desobedecer aos
seus pais, que por cinquenta centavos se deixava tocar para que vissem que não havia
engano e respondia às perguntas que quisessem fazer-lhe sobre a sua desventura. Estava
um enviado da vida eterna que anunciava a chegada iminente do pavoroso morcego
sideral, cujo ardente ofego de enxofre havia de transtornar a ordem da natureza e faria vir
à superfície os mistérios do mar.
O único asilo de sossego era o bairro de tolerância, aonde unicamente chegavam os
restos do fragor urbano. Mulheres vindas dos quatro quadrantes da rosa náutica
bocejavam de tédio nos abandonados salões de dança. Tinham feito a sesta sentadas, sem
que ninguém as despertasse para amá-las, e continuavam esperando o morcego sideral sob
os ventiladores de cruzes atarraxadas no céu limpo. De repente uma delas levantou-se e
foi a um balcão de amores-perfeitos que dava para a rua. Por ali passava a bicha dos
pretendentes de Eréndira.
- Vamos a saber - gritou-lhes a mulher. - Que é que tem essa que nós não temos?
- Uma carta de um senador - gritou alguém. Atraídas pelos gritos e gargalhadas, outras
mulheres vieram debruçar-se ao balcão.
- Há dias que essa bicha está assim - disse uma delas. - Calcula, a cinquenta pesos
cada um!
A que tinha ido primeiro decidiu:
- Pois eu vou ver o que é que tem de ouro essa sete-mesinha.
- Eu também - disse outra. - Será melhor do que estar aqui a aquecer gratuitamente o
assento.
Pelo caminho, juntaram-se outras, e quando chegaram à tenda de Eréndira tinham
formado uma comparsaria buliçosa. Entraram sem anunciar-se, espantaram com almofadas
o homem que encontraram gastando o melhor que podia o dinheiro que tinha pago e
carregaram com a cama de Eréndira e levaram-na em andor para a rua.
- Isto é um insulto - gritava a avó. - Cáfila de desleais! Covardes! - E a seguir, contra
os homens da bicha: - E vocês, medricas, onde têm os testículos, que permitem este abuso
contra uma pobre criatura indefesa. Maricas!
Continuou a gritar até onde lhe chegava a voz, distribuindo pancadas com o bordão
sobre os que se punham ao seu alcance, mas a sua cólera era inaudível entre os gritos e os
assobios de troça da multidão.
Eréndira não pôde escapar ao escárnio porque lho impediu a corrente de cão com que
a avó a acorrentava a uma barra da cama desde que tentou fugir. Mas não lhe fizeram
nenhum mal. Mostraram-na no seu altar de dossel pelas ruas de mais estrépito, como o
passeio alegórico da penitente acorrentada, e por fim puseram-na em câmara-ardente no
centro da praça maior. Eréndira estava enroscada, com a cara escondida, mas sem chorar,
e assim ficou no sol terrível da praça, mordendo de vergonha e de raiva a corrente de cão
do seu mau destino, até que alguém lhe fez a caridade de tapá-la com uma camisa.
Essa foi a única vez que as vi, mas soube que tinham permanecido naquela cidade
fronteiriça sob o amparo da força pública, até que rebentaram as arcas da avó, e que então
abandonaram o deserto em direcção do mar. Nunca se viu tanta opulência junta por
aqueles reinos de pobres. Era um desfile de carroças puxadas por bois, sobre as quais se
amontoavam algumas réplicas de pacotilha do mobiliário luxuoso desaparecido com o
desastre da mansão, e não só os bustos imperiais e os relógios raros, mas também um
piano em segunda mão e uma grafonola com os discos da nostalgia. Uma recua de índios
ocupava-se da carga e uma banda de músicos anunciava nas povoações a sua chegada
triunfal.
A avó viajava num palanquim com grinaldas de papel, ruminando os cereais da
fraldiqueira, à sombra de um pálio de igreja. O seu tamanho monumental tinha aumentado,
porque trazia vestido debaixo da blusa um colete de lona de veleiro, no qual guardava os
lingotes de ouro como se metem as balas num cinturão de cartucheiras. Eréndira estava
junto dela, vestida com tecidos vistosos e com franjas de estopa penduradas, mas sempre
com a corrente de cão no tornozelo.
- Não te podes queixar - tinha-lhe dito a avó, ao sair da cidade fronteiriça. - Tens
roupa de rainha, uma cama de luxo, uma banda de música particular e catorze índios ao
teu serviço. Não te parece magnífico?
- Sim, avó.
- Quando eu te faltar - prosseguiu a avó -, não ficarás à mercê dos homens, porque
terás a tua própria casa numa cidade de importância. Serás livre e feliz.
Era uma visão nova e imprevista do futuro. Em contrapartida, não tinha voltado a falar
da dívida de origem, cujos pormenores se retorciam e cujos prazos aumentavam, à medida
que se tornavam mais complicadas as despesas do negócio. Não obstante, Eréndira não
emitiu um suspiro que permitisse vislumbrar o seu pensamento. Submeteu-se em silêncio
ao tormento da cama nos charcos de salitre, na madorna das povoações lacustres, na
cratera lunar das minas de talco, enquanto a avó lhe cantava a visão do futuro, como se a
estivesse a decifrar nos baralhos. Uma tarde, no fim de um desfiladeiro opressivo,
sentiram um vento de loureiros antigos, e escutaram farrapos de diálogos de Jamaica, e
sentiram umas ânsias de vida, e um nó no coração, e era que tinham chegado ao mar.
- Aí o tens - disse a avó, respirando a luz de vidro do Caribe ao cabo de meia vida de
desterro. - Não te agrada?
- Sim, avó.
Ali instalaram a barraca. A avó passou a noite falando sem sonhar, e às vezes
confundia as suas nostalgias com a clarividência do futuro. Dormiu até mais tarde que de
costume e acordou sossegada pelo rumor do mar. Contudo, quando Eréndira lhe estava a
dar banho, tornou a fazer-lhe prognósticos sobre o futuro, e era uma clarividência tão
febril que parecia um delírio de vigília.
- Serás uma proprietária senhorial - disse-lhe. - Uma dama de linhagem venerada
pelas tuas protegidas e contentada e honrada pelas mais altas autoridades. Os capitães dos
barcos mandar-te-ão postais de todos os portos do mundo.
Eréndira não a escutava. A água tépida perfumada de orégão jorrava na banheira por
um canal alimentado pelo exterior. Eréndira recolhia-a com uma totuma impenetrável, sem
querer respirar, e deitava-a sobre a avó com uma das mãos, enquanto a ensaboava com a
outra.
- O prestígio da tua casa voará de boca em boca desde o cordão das Antilhas até aos
reinos de Holanda - dizia a avó. - E há-de ser mais importante que a casa presidencial,
porque nela se discutirão os assuntos do governo e se preparará o destino da nação.
De repente, a água extinguiu-se no canal. Eréndira saiu da barraca para averiguar o
que se passava e viu que o índio encarregado de deitar a água no canal estava a cortar
lenha na cozinha.
- Acabou-se - disse o índio. - Tem de se arrefecer mais água.
Eréndira foi até ao fogareiro, onde estava outra panela grande com folhas aromáticas
fervidas. Envolveu as mãos num trapo e certificou-se de que podia levantar a panela sem
a ajuda do índio.
- Vai-te embora - disse. - Eu deito a água. Esperou até que o índio saísse da cozinha.
Então tirou do lume a panela fervente, levantou-a com muito custo até à altura do canal, e
já ia a deitar a água mortífera na conduta da banheira quando a avó gritou no interior da
barraca:
- Eréndira!
Foi como se a tivesse visto. A neta, assustada pelo grito, arrependeu-se no instante
final.
- Já vou, avó - disse. - Estou a arrefecer a água.
Naquela noite esteve cismando até muito tarde, enquanto a avó cantava, adormecida,
com o colete de ouro. Eréndira contemplou-a da sua cama com uns olhos intensos, que
pareciam de gato na penumbra. A seguir deitou-se como um afogado, com os braços no
peito e os olhos abertos, e chamou com toda a força da sua voz interior:
- Ulisses.
Ulisses acordou subitamente na casa do laranjal. Tinha ouvido a voz de Eréndira com
tanta nitidez que a procurou nas sombras do quarto. Ao cabo de um instante de reflexão,
fez um embrulho com as suas roupas e os seus sapatos e abandonou o quarto de dormir.
Tinha atravessado o terraço quando o surpreendeu a voz de seu pai:
- Para onde vais?
Ulisses viu-o, iluminado de azul pela Lua.
- Para o mundo - respondeu.
- Desta vez não to vou impedir - disse o holandês. - Mas aviso-te de uma coisa: seja
aonde for que vás, perseguir-te-á a maldição de teu pai.
- Assim seja - disse Ulisses.
Surpreendido, e até um pouco orgulhoso pela resolução do filho, o holandês seguiu-o
pelo laranjal enluarado, com um olhar que pouco a pouco começava a sorrir. A sua
mulher estava atrás dele, com a sua maneira de estar de índia formosa. O holandês falou
quando Ulisses fechou o portão.
- Há-de voltar - disse -, espancado pela vida, mais depressa do que tu pensas.
- És muito duro - suspirou ela. - Não voltará nunca.
Nessa ocasião Ulisses não precisou de perguntar a ninguém o rumo de Eréndira.
Atravessou o deserto escondido em camiões de passagem, roubando para comer e dormir,
e roubando muitas vezes pelo puro prazer do risco, até que encontrou a barraca noutra
povoação do mar, da qual se viam os edifícios de vidro de uma cidade iluminada e onde
ressoavam os adeuses nocturnos dos navios que levantavam ferro para a ilha de Aruba.
Eréndira estava adormecida, acorrentada à barra e na mesma posição de afogado à
deriva, em que o tinha chamado. Ulisses ficou a contemplá-la um grande espaço de tempo
sem a acordar, mas contemplou-a com tanta intensidade que Eréndira acordou. Então
beijaram-se na obscuridade, acariciaram-se sem pressa, despiram-se até à fadiga, com
uma ternura silenciosa e uma felicidade recôndita que se pareceram mais do que nunca
com o amor.
No outro extremo da barraca, a avó adormecida deu uma volta monumental e começou
a delirar:
- Isso foi pelos tempos em que chegou o barco grego - disse. - Era uma tripulação de
loucos, que faziam felizes as mulheres e não lhes pagavam com dinheiro, mas com
esponjas, umas esponjas vivas, que depois andavam a caminhar por dentro das casas,
gemendo como doentes de hospital e fazendo chorar as crianças para beber as lágrimas.
Endireitou-se com um movimento subterrâneo e sentou-se na cama.
- Foi então que chegou ele, meu Deus - gritou -, mais forte, mais grande e muito mais
homem que Amadís.
Ulisses, que até àquele momento não tinha prestado atenção ao delírio, tentou
esconder-se quando viu a avó sentada na cama. Eréndira tranquilizou-o.
- Fica descansado - disse-lhe. - Sempre que chega a essa parte senta-se na cama, mas
não acorda.
Ulisses encostou-se ao seu ombro.
- Eu nessa noite estava a cantar com os marinheiros e pensei que era um tremor de
terra - continuou a avó. - Todos devem ter pensado o mesmo, porque fugiram a dar gritos,
mortos de riso, e só fiquei eu sob o coberto de trepadeiras. Recordo como se tivesse sido
ontem que eu estava a cantar a canção que todos cantavam naqueles tempos. Até os
papagaios, nos pátios, cantavam.
Sem tom nem som, como só é possível cantar nos sonhos, cantou as linhas da sua
amargura:
Senhor, Senhor, devolve-me a minha antiga inocência, para gozar o seu amor outra vez
desde o princípio.
Só então Ulisses se interessou pela nostalgia da avó.
- Lá estava ele - dizia -, com um papagaio no ombro e um trabuco de matar canibais,
como chegou Guatarral às Guianas, e eu senti o seu alento de morte quando se especou em
frente de mim e me disse: «Dei mil vezes a volta ao mundo e vi todas as mulheres de
todas as nações, de maneira que tenho autoridade para dizer-te que és a mais altiva e a
mais diligente, a mais formosa da Terra».
Deitou-se de novo e soluçou na almofada. Ulisses e Eréndira permaneceram um
grande momento em silêncio, embalados na penumbra pela respiração descomunal da
anciã adormecida. De repente, Eréndira perguntou, sem uma fraqueza mínima na voz:
- Serias capaz de a matar?
Apanhado de surpresa, Ulisses não soube que responder.
- Quem sabe - disse. - Tu és capaz?
- Eu não posso - disse Eréndira -, porque é minha avó. Então Ulisses observou outra
vez o enorme corpo adormecido, como se estivesse a medir a sua quantidade de vida, e
decidiu:
- Por ti sou capaz de tudo.
Ulisses comprou uma libra de veneno para ratazanas, misturou-a com nata de leite e
marmelada de framboesa e verteu aquele creme mortal dentro de uma empada, à qual tinha
tirado o seu recheio de origem. Depois pôs-lhe por cima um creme mais denso,
arranjando-o com uma colher até que não ficou nenhum vestígio da manobra sinistra, e
completou o engano com setenta e duas velazinhas róseas.
A avó endireitou-se no trono brandindo o bordão ameaçador quando o viu entrar na
barraca com a empada de festa.
- Descarado - gritou. - Como te atreves a pôr os pés nesta casa!
Ulisses escondeu-se por detrás da sua cara de anjo.
- Venho para lhe pedir perdão - disse -, hoje, dia do seu aniversário.
Desarmada pela sua mentira certeira, a avó mandou pôr a mesa como para um jantar
de boda. Sentou Ulisses à sua direita, enquanto Eréndira os servia, e, depois de apagar as
velas com um sopro arrasador, cortou a empada em partes iguais. Serviu Ulisses.
- Um homem que sabe fazer-se perdoar tem ganha a metade do céu - disse. - Deixo-te
o primeiro pedaço, que é o da felicidade.
- Não gosto de doce - disse ele. - Bom proveito.
A avó ofereceu a Eréndira outro pedaço de empada. Ela levou-o para a cozinha e
deitou-o no caixote do lixo.
A avó comeu sozinha todo o resto. Metia os pedaços inteiros na boca e engolia-os sem
mastigar, gemendo de gozo e olhando para Ulisses do limbo do seu prazer. Quando não
teve mais no seu prato, comeu também o que Ulisses tinha desprezado. Enquanto
mastigava o último bocado, apanhava com os dedos e metia na boca as migalhas da
toalha.
Tinha comido arsénico bastante para exterminar uma geração de ratazanas. No entanto,
tocou piano e cantou até à meia-noite, deitou-se feliz e conseguiu um sono natural. O único
indício novo foi um rastro pedregoso na sua respiração.
Eréndira e Ulisses vigiaram-na da outra cama e só esperavam pelo seu estertor final.
Mas a voz era tão viva como sempre, quando começou a delirar.
- Pôs-me louca, meu Deus, pôs-me louca! - gritou. - Eu punha duas trancas no quarto
de dormir, para que não entrasse, punha o toucador e a mesa contra a porta e duas
cadeiras sobre a mesa, e bastava que ele desse uma pancadinha com o anel para que as
barricadas ruíssem, as cadeiras desciam por si mesmas da mesa, a mesa e o toucador
afastavam-se por si mesmos, as trancas saíam por si mesmas das argolas.
Eréndira e Ulisses contemplavam-na com um assombro crescente, à medida que o
delírio se tornava mais profundo e dramático e a voz mais íntima.
- Eu sentia que ia morrer, empapada em suor de medo, suplicando por dentro que a
porta se abrisse sem abrir-se, que ele entrasse sem entrar, que não partisse nunca, mas que
também não voltasse jamais, para não ter de matá-lo.
Continuou a recapitular o seu drama durante várias horas, até nos seus detalhes mais
ínfimos, como se o tivesse voltado a viver no sonho. Pouco antes do amanhecer virou-se
na cama com um movimento de acomodação sísmica e a voz quebrou-se-lhe com a
iminência dos soluços.
- Eu preveni-o, e riu-se - gritava -, voltei a preveni-lo e voltou a rir-se, até que abriu
os olhos aterrados, dizendo: «Ai rainha! Ai rainha», e a voz não lhe saiu pela boca, mas
pela facada da garganta.
Ulisses, espantado com a tremenda evocação da avó, agarrou a mão de Eréndira.
- Velha assassina! - exclamou.
Eréndira não lhe prestou atenção, porque nesse instante começou a despontar a
alvorada. Os relógios bateram as cinco.
- Vai-te embora! - disse Eréndira. -Já vai acordar.
- Está mais viva do que um elefante - exclamou Ulisses. - Não pode ser!
Eréndira atravessou-o com um olhar mortal.
- O que acontece - disse - é que tu não serves nem para matar ninguém.
Ulisses impressionou-se tanto com a crueza da censura que se evadiu da barraca.
Eréndira continuou a observar a avó adormecida, com o seu ódio secreto, com a raiva da
frustração, à medida que se levantava o amanhecer e se ia despertando o ar dos pássaros.
Então a avó abriu os olhos e olhou-a com um sorriso plácido.
- Deus te salve, filha.
A única mudança notável foi um princípio de desordem nas normas quotidianas.
Era quarta-feira, mas a avó quis pôr um vestido de domingo, decidiu que Eréndira não
recebesse nenhum cliente antes das onze e pediu-lhe que lhe pintasse as unhas de cor de
romã e lhe fizesse um penteado pontifical.
- Nunca tinha tido tanta vontade de tirar um retrato - exclamou.
Eréndira começou a penteá-la, mas, ao passar o pente de desenredar, ficou entre os
dentes um molho de cabelos. Mostrou-o, assustada, à avó. Ela examinou-o, tentou
arrancar-se outra mecha grande com os dedos, e outro arbusto de cabelos lhe ficou na
mão. Deitou-o ao chão e experimentou outra vez, e arrancou uma madeixa maior. Então
começou a arrancar-se o cabelo com as duas mãos, morta de riso, atirando os punhados ao
ar, com um júbilo incompreensível, até que a cabeça lhe ficou como um coco pelado.
Eréndira não voltou a ter notícias de Ulisses até duas semanas mais tarde, quando
ouviu fora da barraca o chamamento da coruja. A avó tinha começado a tocar piano e
estava tão absorta na sua nostalgia que não se dava conta da realidade. Tinha na cabeça
uma peruca de penas radiantes.
Eréndira acudiu ao chamamento e só então descobriu a mecha de detonante que saía
da caixa do piano e se prolongava por entre a maleza e se perdia na escuridão. Correu na
direcção em que estava Ulisses, escondeu-se junto dele entre os arbustos, e ambos viram,
com o coração oprimido, a chamazinha azul que se foi pela mecha do detonante,
atravessou o espaço escuro e penetrou na barraca.
- Tapa os ouvidos - disse Ulisses.
Ambos o fizeram, sem que fosse preciso, porque não houve explosão. A tenda
iluminou-se por dentro com uma deflagração radiante, estalou em silêncio e desapareceu
numa tromba de fumo de pólvora molhada. Quando Eréndira se atreveu a entrar, pensando
que a avó estava morta, encontrou-a com a peruca chamuscada e a camisa em farrapos,
mas mais viva do que nunca, tentando sufocar o fogo com uma manta.
Ulisses escapuliu-se, ao abrigo da gritaria dos índios, que não sabiam que fazer,
confundidos pelas ordens contraditórias da avó. Quando conseguiram, por fim, dominar as
chamas e dissipar o fumo, encontraram-se perante uma visão de naufrágio.
- Parece coisa do maligno - disse a avó. - Os pianos não estalam por acaso.
Fez toda a espécie de conjecturas para estabelecer as causas do novo desastre, mas as
evasivas de Eréndira e a sua atitude impávida acabaram de confundi-la. Não encontrou a
mínima fissura no comportamento da neta, nem se lembrou da existência de Ulisses.
Esteve acordada até de madrugada, tecendo suposições e fazendo cálculos dos prejuízos.
Dormiu pouco e mal. Na manhã seguinte, quando Eréndira lhe tirou o colete das barras de
ouro, encontrou-lhe bolhas de fogo nos ombros e o peito em carne viva. «Razões tinha eu
para dormir a dar voltas», disse, enquanto Eréndira lhe deitava claras de ovo nas
queimaduras. «E, além disso, tive um sonho estranho.» Fez um esforço de concentração,
para evocar a imagem, até que a teve, tão nítida na memória como no sonho.
- Era um pavão numa rede de balouço branca - disse. Eréndira surpreendeu-se, mas
refez imediatamente a sua
expressão quotidiana.
- É um bom anúncio - mentiu. - Os pavões dos sonhos são animais de longa vida.
- Deus te ouça - disse a avó -, porque estamos outra vez como no princípio. É preciso
começar de novo.
Eréndira não se perturbou. Saiu da barraca com a bandeja das compressas e deixou a
avó com o torso embebido de claras de ovo e o crânio besuntado de mostarda.
Estava a deitar mais claras de ovo na bandeja, sob o alpendre de palmas que servia de
cozinha, quando viu aparecer os olhos de Ulisses por detrás do fogão, como o viu a
primeira vez por detrás da sua cama. Não se surpreendeu, mas disse-lhe, com uma voz de
cansaço:
- A única coisa que conseguiste foi aumentar-me a dívida.
Os olhos de Ulisses turvaram-se de ansiedade. Permaneceu imóvel, olhando para
Eréndira em silêncio, vendo-a partir os ovos com uma expressão fixa, de absoluto
desprezo, como se ele não existisse. Ao cabo dum momento, os olhos moveram-se,
revistaram as coisas da cozinha, as panelas penduradas, réstias de escórdios, os pratos, a
faca de esquartejar. Ulisses endireitou-se, sempre sem dizer nada, entrou sob o alpendre e
despendurou a faca.
Eréndira não se virou para o olhar, mas, no momento em que Ulisses abandonava o
alpendre, disse-lhe, em voz muito baixa:
- Tem cuidado, que já teve um aviso da morte. Sonhou com um pavão e uma rede de
balouço branca.
A avó viu entrar Ulisses com a faca, e, fazendo um supremo esforço, endireitou-se
sem a ajuda do bordão e levantou os braços.
- Rapaz! - gritou. - Tornaste-te louco.
Ulisses saltou-lhe em cima e deu-lhe uma facada certeira no peito desnudado. A avó
lançou um gemido, atirou-se-lhe em cima e tentou estrangulá-lo com os seus potentes
braços de urso.
- Filho da puta - grunhiu. - Demasiado tarde reparo que tens cara de anjo traidor.
Não pôde dizer mais nada, porque Ulisses conseguiu libertar a mão com a faca e
assentou-lhe com uma segunda facada nas costas. A avó soltou um gemido recôndito e
abraçou com mais força o agressor. Ulisses assentou um terceiro golpe, sem piedade, e
um jorro de sangue expulso a alta pressão salpicou-lhe a cara: era um sangue oleoso,
brilhante e verde, igual ao mel de menta.
Eréndira apareceu na entrada, com a bandeja na mão, e observou a luta com uma
impavidez criminosa.
Grande, monolítica, grunhindo de suor e de raiva, a avó aferrou-se ao corpo de
Ulisses. Os seus braços, as suas pernas, até o seu crânio pelado, estavam verdes de
sangue. A enorme respiração de fole, transtornada pelos primeiros estertores, ocupava
todo o ambiente. Ulisses conseguiu outra vez libertar o braço armado, abriu um talho na
barriga, e uma explosão de sangue empapou-o de verde até aos pés. A avó tentou apanhar
o ar que já lhe fazia falta para viver e deixou-se cair de bruços. Ulisses soltou-se dos
braços exaustos e, sem permitir-se um instante de trégua, assentou no vasto corpo caído a
facada final.
Eréndira pôs então a bandeja numa mesa, inclinou-se sobre a avó, observou-a bem,
sem lhe tocar, e, quando se convenceu de que estava morta, o seu rosto adquiriu
subitamente toda a madureza de pessoa adulta que não lhe tinham dado os seus vinte anos
de infortúnio. Com movimentos rápidos e precisos, pegou no colete de ouro e saiu da
barraca.
Ulisses permaneceu sentado junto do cadáver, esgotado pela luta, e quanto mais
tentava limpar a cara mais a lambuzava com aquela matéria verde e viva que parecia fluir
dos seus dedos. Só quando viu sair Eréndira com o colete de ouro tomou consciência do
seu estado.
Chamou-a, com gritos, mas não recebeu nenhuma resposta. Arrastou-se até à entrada
da barraca e viu que Eréndira começava a correr pela beira-mar em direcção oposta à da
cidade. Então fez um último esforço para persegui-la, chamando-a com uns gritos
desgarrados que já não eram de amante, mas de filho, mas venceu-o o terrível
esgotamento de ter matado uma mulher sem a ajuda de ninguém.
Os índios da avó encontraram-no deitado de bruços na praia, chorando de solidão e
de medo.
Eréndira não o tinha ouvido. Ia a correr contra o vento, mais veloz que um veado, e
nenhuma voz deste mundo a podia deter. Passou a correr, sem virar a cabeça, pelo vapor
ardente dos charcos de salitre, pelas crateras de talco, pelo torpor das palafitas, até que
se acabaram as ciências naturais do mar e começou o deserto, mas ainda continuou a
correr, com o colete de ouro, mais além dos ventos áridos e dos entardeceres de nunca
acabar, e jamais se voltou a ter a menor notícia dela nem se encontrou o vestígio mais
ínfimo da sua desgraça.
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