terça-feira, 20 de setembro de 2016
o sol é para todos 2
MAS EIS QUE ALGUÉM gritava de novo.
— Mayella Violet Ewell...
Uma mocinha dirigiu-se para o banco das testemunhas.
Quando levantou a mão e jurou que o testemunho que iria prestar seria verdade, toda
verdade, nada mais que verdade e que Deus a ajudasse, pareceu ter um aspecto frágil,
mas quando se sentou no banco das testemunhas, virada para nós, transformou-se
naquilo que realmente era, isto é, uma moça entroncada habituada a trabalhos pesados.
Em Maycomb era fácil perceber quando alguém tomava banho regularmente ou uma
vez por ano: o Sr. Ewell tinha um ar literalmente escaldado; como se uma boa
ensaboadela o tivesse privado das várias camadas de lixo que lhe protegiam a pele,
deixando-a agora extremamente sensível aos elementos. Pelo contrário, a Mayella parecia
esforçar-se por estar limpa e me lembrei, então, da fila de gerânios vermelhos que havia
no quintal dos Ewells.
O Sr. Gilmer pediu a Mayella para contar, com as suas próprias palavras, o que tinha
acontecido na noite de vinte e um de Novembro, com as suas próprias palavras, por
favor.
Mayella sentou-se em silêncio.
— Onde estava naquele fim de tarde? — começou o Sr. Gilmer pacientemente.
— No alpendre.
— Qual deles?
— Só há um, o da frente.
— E o que estava fazendo no alpendre?
— Nada.
— Conte apenas aquilo que aconteceu. É capaz, não é? — perguntou o Juiz Taylor.
Mayella olhou para ele e desatou a chorar. Cobriu a boca com as mãos e começou aos
soluços. O Juiz Taylor deixou-a chorar durante um tempo e depois disse:
— Pronto, já chega. Desde que diga verdade não há motivos para ter medo destas
pessoas. Eu sei que tudo isto é estranho para você, mas não precisa de ter vergonha nem
medo. De que é que tem medo?
Mayella disse algo por entre as mãos.
— O que disse? — perguntou o juiz.
— Dele — choramingou, apontando para o Atticus.
— Do Sr. Finch?
Ela assentiu vigorosamente, dizendo:
— Eu num quero qu’ele me trate c’umo tratou o pai, tentando fazer ele passar pro
canhoto...
O Juiz Taylor coçou o seu espesso cabelo branco. Era óbvio que nunca tinha se
deparado com um problema daquele tipo.
— Quantos anos tem? — perguntou.
— Dezenove e meio — respondeu Mayella.
O Juiz Taylor pigarreou e tentou, sem grande êxito, falar de forma a acalmá-la.
— O Sr. Finch não quer assustar você — resmungou —, e mesmo que ele queira, eu
estou aqui para o impedir. É essa uma das razões por que estou aqui sentado. E a
menina já é uma moça crescida, por isso sente-se direita e diga-me... diga-nos o que lhe
aconteceu. É capaz disso, não é?
Sussurrei para o Jem:
— Será que ela bate bem da bola?
O Jem olhava fixamente para o banco das testemunhas.
— Olha, não sei — disse ele. — Ela tem inteligência suficiente para fazer com que o
juiz tenha pena dela, mas pode ser apenas... Oh, sei lá.
Mais calma, Mayella lançou um olhar apavorado para o Atticus e respondeu ao Sr.
Gilmer.
— Bem, eu ’tava lá no alpendre... e depois ele chegou e, sabe, havia um roupeiro
velho no pátio que o pai trouxe p’ra fazer lenha... o pai disse p’ra eu o cortar enquanto
ele ia pro bosque, mas como me sentia um bocado fraca e ele apareceu...
— Quem é esse «ele»?
Mayella apontou para o Tom Robinson.
— Tenho de lhe pedir para ser mais específica — disse o Sr. Gilmer.
— O escrivão não consegue transcrever muito bem os gestos.
— Aquele lá — disse ela. — O Robinson.
— E depois o que aconteceu?
— Bem, eu depois lhe disse, vem aqui preto e corta este roupeiro p’ra mim, qu’eu
depois tenh’uma moeda p’ra ti. Aquilo era canja p’ra ele, ó se era. ’Tão vai daí ele entrou
no pátio e eu entrei em casa p’ra buscar a moeda e me virei e antes de pegar ela ele já
’tava em cima de mim. Acho qu’ veio ’trás de mim, foi o qu’ foi. Despois, agarrou-me
p’lo pescoço, disse muntas asneiras... e eu lutei e gritei, mas ele me prendeu p’lo
pescoço. E despois bateu-me uma vez e mais outra...
O Sr. Gilmer esperou que Mayella se recompusesse: ela aproveitou para torcer um
lenço que trazia até se tornar numa corda encharcada em suor; quando voltou a abrir
para limpar a cara, o lenço já era um monte de rugas nascidas das suas mãos quentes.
Depois, aguardou que o Sr. Gilmer fizesse outra pergunta, mas como ele não
perguntava nada, disse:
— ...me ’tirou pr’o chão e me ’pretou e abusou d’mim.
— Gritou? — perguntou o Sr. Gilmer. — Gritou e tentou se defender?
— Acho qu’ sim, gritei o mais qu’ podia, bem, dei pontapés e gritei o mais qu’ podia.
— E o que aconteceu depois?
— Num m’lembro munto bem, mas a seguir só m’lembro do pai ’tar no quarto em
cima de mim a berrar quem me tinha feit’ aquilo, quem me tinha feit’aquilo? Despois
acho que desmaiei e só m’lembro do Sr. Tate me levantar do chão e me levar ’té ao balde
d’agua.
Parecia que o recital de Mayella lhe tinha dado confiança, só que ela não era feita da
mesma cepa do pai: tinha um olhar furtivo, tal como um gato observa a sua presa, olhos
fixos no alvo, abanando a cauda.
— Disse que o tinha afastado com toda a força que tinha? Lutou com garras e dentes,
foi? — perguntou o Sr. Gilmer.
— Claro que sim — Mayella respondeu como o seu pai.
— Tem a certeza que ele abusou totalmente de você?
O rosto de Mayella se contorceu outra vez e tive medo que ela voltasse a chorar. Em
vez disso, disse:
— Ele fez aquilo qu’ queria e tudo mais.
O Sr. Gilmer fez notar o dia quente que estava, ao limpar a cara com a mão.
— Por enquanto é tudo — disse, com amabilidade — mas não saia daí. Penso que o
Sr. Finch, mau como é, lhe quer fazer umas perguntinhas.
— O Estado não deve influenciar a testemunha contra o advogado de defesa —
murmurou o Juiz Taylor —, pelo menos, não neste momento.
O Atticus se levantou sorrindo, mas em vez de se dirigir ao banco das testemunhas,
abriu o casaco, enfiou o polegar dentro do colete e começou a se dirigir calmamente até à
janela. Olhou lá para fora, não parecendo estar especialmente interessado no que via,
virou-se e encaminhou-se para o banco das testemunhas. Devido aos longos anos de
experiência, percebi logo que estava tentando tomar uma decisão.
— Srta. Mayella — disse, sorrindo — longe de mim tentar assustá-la, pelo menos
por agora. Vamos nos conhecer um pouco melhor, está bem? Que idade tem?
— Já disse qu’ tinha dezenove, disse ali p’ro juiz lá — Mayella parecia ressentida.
— Sim disse, tem toda a razão, menina. Só que vai ter de ter paciência comigo, Srta.
Mayella. Já estou ficando velho e não me lembro das coisas tão bem como era costume.
Possivelmente até vou perguntar coisas às quais já respondeu, mas vai me responder,
não vai? Muito bem.
Não vi nada na expressão de Mayella que comprovasse a afirmação do Atticus quanto
ao fato de ela estar disposta a colaborar.
Ela o olhava furiosa.
— Num vou responder nada se continuar a gozar c’migo — disse ela.
— Desculpe? — perguntou Atticus assustado.
— Se continuar a f’zer troça d’mim, ponto final.
O Juiz Taylor disse:
— Sr. Finch não está fazendo troça de ti. Mas o que é que lhe deu?
Mayella encarou o Atticus com os olhos semicerrados, mas disse ao juiz, cabisbaixa:
— S’ ele continuar a me chamar m’nina Srta. Mayella. Num tenho d’aturar estas
coisas, num sou ’brigada a isso.
O Atticus continuou o seu passeio até à janela e deixou que fosse o Juiz Taylor a
resolver esta questão. O Juiz Taylor não era o tipo de pessoa que evocasse piedade, mas
senti alguma coisa enquanto ele tentava explicar.
— É apenas a maneira de ser do Sr. Finch — explicou à Mayella.
— Há anos que tratamos de casos neste tribunal e o Sr. Finch foi sempre cortês com
todas as pessoas. Ele não estava tentando fazer pouco de ti, só estava tentando ser
educado. É apenas a sua maneira de ser.
Posto isto, o juiz recostou-se na cadeira.
— Atticus, vamos prosseguir e que conste no processo que a testemunha não foi
insultada, muito pelo contrário.
Imaginei se alguma vez na vida ela teria sido tratada por «menina» ou «Srta. Mayella».
Provavelmente não, pois verdade é que ela se tinha sentido insultada por uma cortesia de
rotina. Como é que seria a sua vida? Muito em breve iria descobrir.
— Disse que tinha dezenove anos — retomou o Atticus. — Quantos irmãos e irmãs
tem?
Ele voltou da janela para junto do banco.
— Set’ — respondeu e perguntei-me se todos eles seriam como aquela criatura que
eu tinha conhecido no meu primeiro dia de aulas.
— É a primogênita? A irmã mais velha?
— Sim.
— Há quanto tempo morreu a sua mãe?
— Num sei... há munto.
— Alguma vez foi à escola?
— Sei ler e escrever tão bem cumu o pai além.
Mayella parecia o Sr. Jingle
11 de um livro que eu estava lendo.
— Quanto tempo frequentou a escola?
— Dois anos... três anos... olhe, num sê.
Lentamente comecei a identificar um mesmo padrão nas perguntas do Atticus:
partindo das perguntas que o Sr. Gilmer acharia irrelevantes ou pouco importantes, o
Atticus estava calmamente a construir uma imagem da vida familiar dos Ewells para o
júri. O júri ficava então sabendo que: os cheques da segurança social mal davam para
alimentar todas aquelas bocas e havia fortes suspeitas de que o pai esbanjava aquele
dinheiro até à última gota... às vezes se metia no pântano durante dias e voltava para casa
doente; não fazia demasiado frio a ponto de usar sapatos, mas quando o frio apertava
então podiam fazer uns sapatos bem formosos com tiras de pneus velhos; a família
tirava água aos baldes de um riacho que corria num dos extremos da lixeira... limpavam
a área circundante de todo o lixo existente... e era cada um por si no que respeitava à
higiene pessoal: quem quisesse se lavar tinha de ir buscar a respectiva água; as crianças
estavam sempre constipadas e viviam constantemente infestadas com urticária e outras
perebas; havia uma senhora que ia lá de vez em quando e perguntava a Mayella por que é
que ela não estava na escola... e ela escrevia-lhe a resposta; com dois membros da família
sabendo ler e escrever não havia necessidade de os outros aprenderem... e o pai bem que
precisava deles em casa.
— Srta. Mayella — disse o Atticus — uma moça de dezenove anos deve ter amigos.
Quem são eles?
— Amigos? — a testemunha franziu a sobrancelha, parecendo confusa.
— Sim, não conhece ninguém da sua idade ou talvez mais velho, ou até mais novo?
Rapazes e moças? Apenas amigos?
A hostilidade de Mayella, que até agora se tinha mantido neutra, veio novamente à
tona.
— ’Tá outra vez a g’zar comigo, num é, Sr. Finch?
O Atticus deixou que a pergunta dela respondesse à dele.
— Ama o seu pai, Srta. Mayella? — foi a sua pergunta seguinte.
— Amá-lo, qu’quer dizer pr’eu com isso?
— Quero dizer se ele é bom para ti, se é de trato fácil?
— A gente se ag’enta, só quando...
— Só quando?
Mayella olhou para o pai que estava bem recostado no seu lugar, cadeira reclinada
contra o varão. Depois, se sentou muito direito e esperou pela resposta dela.
— Quando nada — disse Mayella. — Disse que s’ag’entava.
O Sr. Ewell voltou a recostar-se.
— Exceto quando bebe? — perguntou o Atticus de uma forma tão gentil que a
Mayella assentiu, de imediato.
— Ele a maltrata?
— Qu’quer dizer?
— Quando está... zangado, alguma vez lhe bateu?
Mayella olhou em volta, para o escrivão e para o juiz.
— Responda à pergunta, Srta. Mayella — disse o Juiz Taylor.
— O meu pá’ nunca tocou n’m cabelo da minha cabeça — declarou com firmeza. —
Nunca tocou em mim, ouviu.
Os óculos do Atticus tinham escorregado ligeiramente e ele empurrou-os novamente
para o nariz.
— Confesso que foi uma boa conversa, Srta. Mayella, mas acho que é melhor
passarmos diretamente ao assunto. Disse que pediu ao Tom Robinson para cortar um...
o que é que era?
— Um roupeiro, uma cômoda velha cheia de gavetas num lado.
— E conhecia bem o Tom Robinson?
— Qu’e qu’quer dizer eu’ isso?
— Quero dizer se sabia quem era, onde vivia?
Mayella acenou que sim com a cabeça.
— Eu sabia quem el’era, pois passava p’la minha casa todos’dias.
— Esta foi a primeira vez que lhe pediu para entrar?
Mayella sobressaltou-se ligeiramente ao ouvir a pergunta.
O Atticus continuava a sua lenta peregrinação até à janela, tal como desde o início:
fazia uma pergunta e depois ficava olhando pela janela à espera da resposta. Certamente
não viu o seu sobressalto involuntário, mas me pareceu ter se apercebido do seu
movimento. Virou-se e ergueu as sobrancelhas.
— Foi... — começou a repetir a pergunta.
— Sim, foi.
— Nunca lhe tinha dito para entrar antes disso?
Agora ela já estava preparada.
— Num, num fiz nada disso.
— Esse «não» não é suficiente — disse o Atticus, com serenidade. — Nunca lhe tinha
pedido para fazer outros trabalhinhos?
— Talvez — respondeu Mayella. — Havia muitos pretos ali à volta.
— Recorda alguma outra ocasião?
— Num.
— Muito bem, agora vamos ao que aconteceu. Afirmou que quando se virou o Tom
Robinson estava atrás de ti no quarto, correto?
— Sim.
— Disse que ele «me agarrou pelo pescoço, disse muitas asneiras»... correto?
— Correto.
Subitamente a memória do Atticus estava ficando mais precisa.
— E disse «me atirou pr’ochão e me apertou e abusou de mim»... correto?
— Foi o qu’eu disse.
— Recorda-se de ele lhe ter batido na cara?
A testemunha hesitou.
— Parece ter a certeza que ele a apertou. Durante todo aquele tempo estava lutando
com ele, está recordada? Disse «dei pontapés e gritei o mais que podia». Recorda-se de
ele lhe ter batido na cara?
Mayella estava em silêncio. Parecia estar tentando esclarecer algo para si mesma. Por
um momento pensei que estava imitando o Sr. Heck Tate e aquele seu truque de fingir
que havia alguém na sua frente. Ela olhou para o Sr. Gilmer.
— É uma pergunta fácil, Srta. Mayella, por isso vou fazê-la novamente. Recorda-se
de ele lhe ter batido na cara?
A voz do Atticus tinha perdido a sua brandura; falava agora na sua voz profissional,
árida e distante.
— Recorda-se de ele lhe ter batido na cara?
— Num, num me lembro s’ele me bateu. Bem, quer dizer, sim, ele me bateu.
— A resposta foi a sua última frase?
— Hã? Sim, ele bateu... eu só num m’ lembro, só num m’ lembro... aconteceu tudo
tão depressa.
O Juiz Taylor olhava Mayella com severidade.
— Não chore, menina — começou, mas o Atticus interrompeu:
— Deixe-a chorar se ela quiser, meritíssimo. Temos todo o tempo do mundo.
Mayella fungou furiosamente e encarou o Atticus.
— Diga lá, respondo a qualquer pergunta qu’ tiver... me pôs aqui p’ra me gozar,
num foi? Respondo a qualquer pergunta qu’ tiver...
— Ótimo — disse o Atticus — Só tenho mais algumas. Srta. Mayella, eu não quero
ser chato, mas afirmou que o réu lhe bateu, a agarrou pelo pescoço e abusou de ti. Só
quero ter a certeza de que escolheu o homem certo. Pode identificar o homem que a
violou?
— Posso, é ’quele lá.
O Atticus virou-se para o réu.
— Levante-se, Tom. Deixe que a Srta. Mayella olhe bem para si... É este o homem,
Srta. Mayella?
Os ombros poderosos do Tom Robinson sobressaíam por baixo de uma camisa fina.
Levantou-se e manteve a mão direita apoiada nas costas da cadeira. Parecia
estranhamente desequilibrado, mas não era por estar de pé. O braço esquerdo era mais
curto do que o direito aí uns bons trinta centímetros e pendia inerte ao lado do corpo.
O braço terminava numa mãozinha encarquilhada e desfigurada e lá de cima, do meu
lugar, via claramente que estava inutilizada.
— Scout — sussurrou o Jem. — Scout, olha! Reverendo, ele é aleijado!
O Reverendo Sykes se debruçou sobre mim e sussurrou para o Jem:
— Ficou com o braço preso numa descaroçadeira de algodão, ficou com ele preso na
máquina do Sr. Dolphus Raymond quando era ainda um rapaz... esvair-se quase até à
morte... lhe esmagou todos os músculos até aos ossos...
O Atticus disse:
— Foi este o homem que a violou?
— Claro que foi.
A pergunta seguinte do Atticus tinha apenas uma palavra.
— Como?
Mayella estava furiosa.
— Num sei como ele fez, mas que fez, fez... e já disse que foi tão depressa qu’eu...
— Vamos considerar o assunto calmamente... — começou o Atticus, mas o Sr.
Gilmer interrompeu-o logo com uma objeção: não era irrelevante, nem desprovido de
interesse, mas o Atticus estava intimidando a testemunha.
O Juiz Taylor soltou uma sonora gargalhada.
— Oh, sente-se Horace. Ele não está fazendo nada disso. Se formos por aí a
testemunha é que está intimidando o Atticus.
O Juiz Taylor foi a única pessoa dentro do tribunal que riu.
Até os bebês estavam quietos, mas perguntei-me subitamente se não estariam
sossegados por estarem no peito.
— Vamos ver — disse o Atticus. — a Srta. Mayella testemunhou que o réu lhe tinha
apertado o pescoço e lhe tinha batido... não disse que ele a surpreendeu por trás e lhe
deu uma pancada e a fez perder os sentidos, mas sim que se virou e ali estava ele... — O
Atticus estava novamente atrás da sua mesa e enfatizava cada palavra com o bater dos nós
dos dedos na mesa.
— ...deseja rever o seu testemunho?
— Você quer qu’eu diga uma coisa qu’ num aconteceu, é?
— Não, menina. Quero que diga o que aconteceu. Conte-nos novamente. O que
aconteceu?
— Já lh’disse o qu’aconteceu, homem.
— Disse que se virou e ele estava ali na sua frente. Foi nessa altura que ele lhe
apertou o pescoço?
— Sim.
— E depois libertou o pescoço e lhe bateu?
— Já disse que sim.
— Ele deixou seu olho esquerdo roxo com o punho direito?
— Eu me abaixei e... resvalou, foi isso qu’ele fez. Me abaixei e resvalou. — Mayella
parecia ter visto finalmente a luz.
— Parece que, subitamente, este ponto está se tornando claro para ti. Há pouco não
se lembrava muito bem, né?
— Eu disse qu’ ele me bateu.
— Muito bem. Ele lhe apertou o pescoço, lhe bateu e violentou-a, certo?
— Claro que sim.
— É uma moça forte. O que fez durante todo esse tempo? Limitou-se a assistir?
— Já lh’a disse, gritei e des’pois dei pontapés e des’pois gritei...
O Atticus tirou os óculos, encarou a testemunha com o seu olho direito, o olho bom,
e disparou uma chuva de perguntas. O Juiz Taylor disse:
— Uma pergunta de cada vez, Atticus. Dê à testemunha a possibilidade de responder.
— Muito bem, por que é que não fugiu?
— Eu tentei...
— Tentou? O que é que a impediu?
— Eu... ele me atirou p’ro chão. Foi o que fez, me atirou p’ro chão e subiu em cima
de mim.
— E gritou durante todo esse tempo?
— Claro que sim.
— Então por que é que as outras crianças não ouviram? Onde estavam? Na lixeira?
Não houve resposta.
— Onde estavam?
— Por que é que elas não vieram correndo com os seus gritos?
A lixeira fica mais perto do que o bosque, não fica?
Não houve resposta.
— Ou será que só gritou quando viu o seu pai na janela? Não se lembra de ter
gritado até essa altura, não foi?
Não houve resposta.
— Gritou primeiro para o seu pai e não para o Tom Robinson?
Foi isso, não foi?
Não houve resposta.
— Quem é que lhe bateu? O Tom Robinson ou o seu pai?
Não houve resposta.
— O que é que o seu pai viu da janela, o crime de estupro ou o seu álibi perfeito?
Por que é que não diz a verdade, criança, foi Bob Ewell que lhe bateu, não foi?
Quando o Atticus se afastou de Mayella parecia estar cheio de dores de estômago, mas
o rosto de Mayella era um misto de terror e fúria. O Atticus sentou-se cansado e
começou a limpar os óculos com o lenço.
Subitamente Mayella ganhou vida.
— Tenho uma coisa p’ra dizer — começou ela. O Atticus levantou a cabeça.
— Quer então nos contar o que aconteceu?
Só que ela não percebeu o tom de compaixão contido no seu convite.
— Tenh’uma coisa p’ra dizer e depois num digo mai’ nada.
’Quele preto lá abusou d’mim e se vocês que estão p’rai armados como s’nhores
muito finos num querem fazer nada sobr’isso, então são todos uns covarde, vocês todos
são uns gande covardes. P’ra mim esses ares emproados d’ocês num serve p’ra nada...
essa coisa de «m’nina» e «Srta. Mayella» num serve p’ra nada, Sr. Finch...
Foi então que ela rompeu num choro convulsivo. Os seus ombros eram sacudidos
por soluços furiosos. E, a seguir, fez exatamente o que ameaçara. Não respondeu a mais
nenhuma pergunta, mesmo quando Sr. Gilmer tentou dar a volta no assunto. Acho que
se ela não fosse tão pobre e ignorante o Juiz Taylor tinha mandado prendê-la por
desrespeito ao tribunal. De alguma forma, o Atticus tinha-a atingido duramente de um
modo que eu não conseguia compreender, embora isso não lhe trouxesse qualquer
prazer. Por isso sentou-se, com a cabeça descaída para a frente, e eu confesso que nunca
tinha visto ninguém olhar de forma tão odiosa para alguém como aquele olhar que a
Mayella lançou para o Atticus quando abandonou o banco e passou pela sua mesa.
Quando o Sr. Gilmer disse ao Juiz Taylor que a acusação suspendia os trabalhos e
não tinha mais testemunhas a apresentar perante o tribunal, o juiz disse:
— Está na hora de todos fazermos o mesmo. A audiência está suspensa por dez
minutos.
O Atticus e o Sr. Gilmer se encontraram no meio da sala de audiências, frente à mesa
do juiz, trocaram algumas impressões em voz baixa e depois saíram da sala pela porta
que ficava atrás do banco das testemunhas. Era sinal que nós podíamos nos esticar um
pouco. Descobri que tinha ficado sentada numa das pontas do banco liso e estava meio
dormente. O Jem se levantou e bocejou.
O Dill imitou-o e o Reverendo Sykes limpou o rosto com o chapéu. Afirmou que a
temperatura deveria rondar os trinta e cinco graus.
O Sr. Braxton Underwood, que tinha estado sentado calmamente numa cadeira
reservada à imprensa, absorvendo os testemunhos com a esponja que era o seu cérebro,
lá deixou que os seus olhos de escárnio e maldizer percorressem o balcão dos negros,
até que os nossos olhares se cruzaram. Soltou uma expressão de reprovação e desviou o
olhar.
— Jem — disse eu. — o Sr. Underwood nos viu.
— Não faz mal. Descansa que ele não vai contar nada ao Atticus, vai apenas falar
disso na coluna social do Tribune. — O Jem começou a explicar os pontos altos do
julgamento ao Dill, se bem que para mim fosse difícil formular uma opinião. Não tinha
havido grande argumentação entre o Atticus e o Sr. Gilmer; o Sr. Gilmer parecia estar
desempenhando o seu papel com alguma relutância; as testemunhas estavam sendo
literalmente conduzidas atrás de uma cenoura como os burros e com poucas objeções de
ambas as partes. Mas o Atticus nos tinha dito uma vez que no tribunal do Juiz Taylor os
advogados que conjecturavam demais sobre as provas acabavam sendo alvo de fortes
reprimendas por parte do juiz. Tinha também nos explicado que, muito embora o Juiz
Taylor parecesse algo preguiçoso e sonolento, era um homem reservado e dificilmente
influenciável, e isso era a verdadeira prova dos nove. O Atticus disse que era um bom
juiz.
Foi nessa altura que o Juiz Taylor regressou e subiu para a sua cadeira rotativa. Tirou
um charuto do bolso do colete e examinou-o cuidadosamente. Dei uma cotovelada no
Dill. Depois de passar pela inspeção do juiz, o charuto sofreu uma dentada violenta.
— Às vezes viemos aqui só para o ver fazer aquilo — expliquei.
— Aquilo vai lhe ocupar o resto da tarde. Repara.
Ignorando que estava sendo alvo da nossa atenção, o Juiz Taylor livrou-se da ponta
cortada, metendo-a com perícia por entre os lábios, ao que se seguiu um sonoro «Ptiu».
Acertou em cheio no escarrador de tal maneira que pudemos ouvir o barulho.
— Que pontaria — murmurou Dill.
Regra geral, o intervalo significava que todos saíam dos seus lugares, mas hoje
ninguém se mexia. Até os Ociosos, que entretanto não tinham conseguido que os
homens mais novos lhes cedessem o lugar, mantinham-se religiosamente de pé colados à
parede.
Acho que o Sr. Heck Tate tinha reservado os banheiros só para os funcionários do
tribunal.
O Atticus e o Sr. Gilmer retornaram e o Juiz Taylor olhou para o relógio.
— Já são quase quatro horas — disse ele. Era estranho pois o relógio da torre já
tinha dado a hora, pelo menos duas vezes. Não tinha ouvido nada, nem sequer sentido
as suas vibrações habituais.
— Vamos tentar acabar esta tarde? — perguntou o Juiz Taylor.
— Que lhe parece, Atticus?
— Acho que é possível — respondeu o Atticus.
— Quantas testemunhas tem?
— Uma.
— Então pode chamá-la.
XIX
THOMAS ROBINSON ERGUEU a mão direita, pôs os dedos sob o seu braço
esquerdo e levantou-o. Depois, guiou o braço até a Bíblia e a sua mão esquerda, que
parecia de borracha, tocou na encadernação preta. Quando levantou a mão direita, a sua
mão aleijada escorregou da Bíblia, batendo na mesa do escrivão. Estava tentando de
novo quando o Juiz Taylor resmungou:
— Está bem assim, Tom.
O Tom prestou o juramento e sentou-se na cadeira das testemunhas.
Com grande rapidez, o Atticus pediu-lhe para nos elucidar do seguinte:
Tom tinha vinte e cinco anos; era casado e tinha três filhos; já tinha tido problemas
com a lei: tinha cumprido trinta dias de prisão por conduta desordeira.
— e sobre essa conduta desordeira — disse o Atticus. — E em que consistiu?
— Andei brigano no soco com outro home, tentou me acertá com uma faca.
— E conseguiu?
— Sim, sinhô, um pouquinho, ma’ não o suficiente p’ra me magoar. Sabe, eu... —
Tom mexeu o ombro esquerdo.
— Sim — disse o Atticus. — Ambos foram condenados?
— Sim, sinhô, tive de ir preso pois num podia pagar a multa.
O outro pagou a dele.
O Dill debruçou-se sobre mim e perguntou ao Jem o que o Atticus estava fazendo. O
Jem disse que o Atticus estava mostrando ao júri que o Tom não tinha nada a esconder.
— Conhecia a Srta. Mayella Violet Ewell? — perguntou o Atticus.
— Sim, sinhô. Tinha de passar pela casa dela todos os dia, quando ia e vinha do
campo.
— E de quem era o campo?
— Apanho algodão para o Sr. Link Deas.
— E estava apanhando algodão em Novembro?
— Não, sinhô, eu trabalho em seu quintal d’Outono e d’lnverno.
Eu trabalho todo ano p’ra ele, qu’ele tem umas nogueira assim.
— Disse que passava pela casa dos Ewells quando ia e vinha do trabalho. Há mais
algum caminho?
— Não, sinhô, não qu’eu conheça.
— Tom, alguma vez ela falou contigo?
— Ora, sim sinhô. Eu levava a mão ao chapéu quando passava e um dia ela inté
pediu pra mim p’ra entrar e desmontá um roupeiro.
— Quando é que ela lhe pediu para desmontar o... o roupeiro?
— Foi n’última Primavera, Sr. Finch. Lembro que estava n’hora de cortar a lenha e
levava c’migo a ’nha enxada. Disse-lhe que só tinha c’migo a enxada, mas ela inté disse
que tinha um machado. Ela deu o machado pra mim e eu desfiz o roupeiro. E ela ’ntão
disse «’tou vendo tenho que te dar uma moeda, num é?». E eu disse «Não, sinhôra, não
levo nada». Depois fui p’ra casa. Sr. Finch, isto foi na Primavera passada, já lá vai um
ano.
— Voltou a entrar na casa dela?
— Sim, sinhô.
— Quando?
— Bem, um monte de vezes.
O Juiz Taylor agarrou instintivamente o seu martelo, mas depressa baixou a mão. O
sururu que reinava debaixo de nós depressa esmoreceu sem precisar da sua intervenção.
— Em que circunstâncias?
— Desculpe, sinhô?
— Por que é que foi lá muitas vezes?
A testa do Tom Robinson mostrava sinais de descontração.
— Ela chamava a mim, sinhô. Parecia que toda a vez que passava ela tinha umas
coisinha para eu fazê... cortar gravetos, trazer água para ela. Todos’dias ela botava água
naquelas frôr vermelha...
— Era pago pelos seus serviços?
— Não, sinhô, não depois d’me ter ’frecido ’quela moeda da primeira vez. Eu ficava
contente por ajuda’. O Sr. Ewell não parecia ajuda’ ela e nem as c’ianca e sabia qu’ ela
não tinha muitas moeda p’ra dar por aí.
— Onde estavam as outras crianças?
— Andavam sempre por ali, por todo lado. Ficavam me vendo trabalhar, algumas
delas, outras ficavam na janela.
— E a Srta. Mayella falava contigo?
— Sim, sinhô, ela falava p’ra mim.
À medida que o Tom Robinson depunha, ocorreu-me que Mayella Ewell devia ser a
pessoa mais só na face da terra. Talvez fosse ainda mais só do que o Boo Radley, que
não saía de casa há vinte e cinco anos. Quando o Atticus lhe perguntou se ela tinha
amigos, parecia não saber o que isso significava e depois pensou que ele estava fazendo
pouco dela. Era tão triste como os mestiços: os brancos não queriam nada com ela
porque vivia no meio de porcos; os negros não queriam nada com ela porque era
branca. Não podia viver como o Sr. Dolphus Raymond, que preferia a companhia dos
negros, porque ela não era dona de uma margem do rio nem vinha de boas famílias.
Ninguém costumava dizer «É a maneira de ser deles» sobre os Ewells. Com uma mão
Maycomb lhes dava cestas básicas de Natal e dinheiro da segurança social, enquanto que
com a outra os enxotava. Provavelmente, Tom Robinson fora a única pessoa que tinha
sido verdadeiramente decente com ela. Mas ela disse que ele tinha abusado dela e,
quando ela se levantou, olhou para ele como se ele fosse o lixo que ela pisava.
— Alguma vez — o Atticus interrompeu a minha meditação — foi à propriedade dos
Ewells... alguma vez pôs os pés na propriedade dos Ewells sem ser convidado por um
deles?
— Não, sinhô, Sr. Finch, nunca. Eu não fazer isso, sinhô.
Às vezes, o Atticus dizia que para ver se uma testemunha estava mentindo, ou dizendo
a verdade, era preciso ouvir em vez de olhar: tentei aplicar o teste... Tom negou três
vezes de uma assentada, mas de forma calma, sem ponta de lamento ou hesitação na voz
e dei por mim acreditando nele, apesar de ele protestar demais. Ele parecia ser um negro
honrado e respeitador e um preto honrado e respeitador nunca entraria no pátio de
ninguém por vontade própria.
— Tom, o que lhe aconteceu na noite de vinte e um de Novembro do ano passado?
Lá em baixo, o auditório pareceu inspirar em uníssono e se inclinou todo para frente.
Atrás de nós, os pretos fizeram o mesmo.
Tom era de um negro aveludado, não brilhante, mas como um veludo negro e macio.
O branco dos seus olhos iluminava-lhe o rosto e, quando falava, víamos o brilho dos
seus dentes. Se não tivesse aquela deficiência, seria um belo pedaço de homem.
— Sr. Finch — recomeçou — ’tava indo p’ra casa com’e costume quando passei
p’los Ewell e a Srta. Mayella ’tava lá no alpendre como já disse qu’estava. Tudo ’tava
muito calmo e não sabia muito bem porquê. Tava eu a matutar porquê, só de passagem,
quando vai daí e ela disse p’ra ir lá e ajudá-la um instantinho. Bem, eu passei a cerca e
fiquei olhando à procura d’uns ramos p’ra cortar, mas não vi n’nhum e ela disse
«Naum, hoje tenho uma coisa p’ra fazer dentro de casa. A porta velha ’tá solta nas
dobradiças e o Outono ’tá chegando munto depressa». Eu disse «Tem uma chave de
p’rafusos, Srta. Mayella?» Ela disse que tinha. Bem, subi os degrau e ela disse p’ra eu
entrar e entrei no quarto da frente e olhei p’ra porta. Disse «Srta. Mayella esta porta
parece num ter problema». Abri e fechei e as dobradiça ’tavam boa. Então ela fechou a
porta na minha cara. Sr. Finch, e aí eu pensava porqu’e que ’tá tudo tão calmo e percebi
que não havia uma c’ianca lá, nem uma e disse «Srta. Mayella, onde ’tão as c’ianca»?
A pele de veludo preto do Tom reluzia intensamente e ele passou a mão pela cara.
— E eu disse «Onde ’ta as c’ianca?» — continuou —, e ela disse... ela só ria, tipo...
disse que ’tavam todos na cidade comendo sorvete. E vai daí e diz «Demorei um ano
inteiro a juntar s’te moedas, mas consegui. ’Tão todos p’ra cidade».
O desconforto de Tom não era motivado pelo calor.
— O que disse então, Tom? — perguntou o Atticus.
— Disse-lhe alguma coisa tipo, «Pois Srta. Mayella, faz munto bem em dar um gosto
a eles». E ela disse «Acha?», e acho qu’ela ’té não percebeu o que eu ’tava dizendo... eu
queria era dizer qu’era bom poupar com’ela tinha feito e foi bonito o que fez p’las
c’ianca.
— Eu entendi, Tom. Continue — pediu o Atticus.
— Bem, disse qu’era milhó ir indo, que não podia fazê nada por’ela e ela disse qu’eu
podia si sinhô, e eu perguntei o quê e ela disse p’ra subir numa cadeira lá e pegar na
caixa que ’tava em cima do roupeiro.
— Não era o roupeiro que tinha desmanchado? — perguntou o Atticus.
A testemunha sorriu.
— Não, sinhô, era outro. Quasi tão alto com’o quarto. Por isso, fiz o que ela pediu
pra mim e quando ’tava pegano nele, bem, ela... ela me agarrou as perna, ela me agarrou
as perna, Sr. Finch. Ela me assustô tanto qu’eu saltei abaixo da cadeira e tombei ela... era
a única coisa, a única peça que ’tava virada naquele quarto quando saí, Sr. Finch. Juro
por Deus.
— O que aconteceu quando a cadeira tombou?
O Tom Robinson tinha entrado num beco sem saída. Olhou para o Atticus, olhou
para o juiz e olhou para Sr. Underwood, sentado do outro lado da sala.
— Tom, você jurou contar toda verdade. Vai contar?
Nervoso, o Tom passou a mão pela boca.
— O que aconteceu depois disso?
— Responda à pergunta — disse o Juiz Taylor. Naquela altura já tinha desaparecido
um terço do seu charuto.
— Sr. Finch, eu cai da cadeira e tombei e ela despois agarrou-se a mim.
— Agarrou-se a ti? De forma violenta?
— Não, sinhô, ela... ela me abraçou. Ela me abraçou p’la cintura.
Desta vez o martelo do Juiz Taylor desferia golpes sonoros na mesa. Ato contínuo,
de repente, as luzes da sala se acenderam. Ainda não tinha escurecido, mas o sol da tarde
já tinha abandonado as janelas. Rapidamente, o Juiz Taylor restabeleceu a ordem.
— O que é que ela fez depois?
A testemunha engoliu em seco.
— Ela me puxou e me beijou n’ cara. Ela disse que nunca tinha beijado um homem
adulto e que tanto lhe fazia beijar um preto. Despois disse qu’o pai dela lhe fazia num
contava. Ela disse «Me beija, preto». E eu disse «Srta. Mayella deixa eu ir embora» e
tentei fugir, mas ela encostou as costa na porta e tive d’afastá ela. Não queria machucá
ela, Sr. Finch, e disse pra me deixar passar, mas foi então qu’ Sr. Ewell começou os
grito p’la janela.
— O que é que ele disse?
Tom Robinson voltou a engolir em seco e os seus olhos aumentaram de tamanho.
— Coisas que num se pode dizê... que num se pode dizê na frente destas c’ianca...
— O que é que ele disse, Tom? Tem de dizer ao júri o que foi que ele disse.
Tom Robinson cerrou os olhos com toda a força.
— Ele disse «Minha grande vaca, qu’eu te mato».
— O que aconteceu depois?
— Sr. Finch, eu corria o mais qu’podia e não sei o qu’aconteceu.
— Tom, você violentou Mayella Ewell?
— Não, sinhô.
— Fez-lhe mal de alguma forma?
— Não, sinhô.
— Resistiu aos seus avanços?
— Sr. Finch, eu bem tentei. Eu tentei sem ser mau p’ra ela. Não queria ser mau, não
queria empurrar ela ou coisa assim.
De alguma forma, ocorreu-me que as maneiras do Tom Robinson eram tão boas
como as do Atticus. Não percebi a sutileza da situação do Tom até o meu pai ter me
explicado tudo mais tarde: ele jamais se atreveria a bater numa mulher branca, fossem
quais fossem as circunstâncias, esperando escapar com vida durante muito tempo, por
isso aproveitou a oportunidade para fugir... um sinal indiscutível de culpa.
— Tom, recuemos novamente até o momento que o Sr. Ewell apareceu — pediu o
Atticus. — Ele disse-lhe alguma coisa?
— Nada, sinhô. Ele pode ter dito alguma coisa, só qu’eu não ’tavalá...
— Isso chega — cortou o Atticus. — Lembra-se do que ouviu, com quem ele estava
falando?
— Sr. Finch, ele falava e olhava p’ra a Srta. Mayella.
— E então você fugiu?
— Sim, sinhô.
— Por que fugiu?
— Estava com medo, sinhô.
— De que é que tinha medo?
— Sr. Finch, se o sinhô fosse preto com’eu tamém tinha medo.
O Atticus se sentou. O Sr. Gilmer percorria o seu caminho até ao banco das
testemunhas quando, antes mesmo de lá chegar, o Sr. Link Deas se levantou do meio da
assistência e anunciou em alto e bom som:
— Só quero que vocês todos saibam uma coisa. Esse rapaz trabalhou p’ra mim
durante oito anos e nunca tive um único problema co’ele. Nada de nada.
— Cale já essa boca, senhor. — O Juiz Taylor estava bem desperto e rugia como um
leão. Tinha também o rosto vermelho. Miraculosamente, o charuto não teve qualquer
interferência no seu discurso. — Link Deas — gritou. — Se tem alguma coisa a dizer
diga-o sob juramento e no momento devido, mas até lá saia desta sala, ouviu? Saia já
desta sala, senhor, ouviu? Não me faltava mais nada do que ter de aturar esta cena outra
vez!
O Juiz Taylor lançou um olhar furioso para o Atticus, como se o desafiasse a
intervir, mas o Atticus já tinha baixado a cabeça e ria com os seus botões. Lembrei-me
de uma coisa que ele me tinha contado sobre os comentários ex cathedra do Juiz Taylor.
Por vezes ele excedia os limites do seu dever, mas havia muito poucos advogados que
conseguissem rebater os seus argumentos. Olhei para o Jem, mas o Jem limitou-se a
balançar a cabeça.
— Até parece que foi um dos jurados que se levantou e começou a falar — comentou
ele. — Mas acho que nesse caso seria diferente.
O Sr. Link só estava perturbando a paz ou coisa do gênero.
O Juiz Taylor disse ao escrivão para não anotar nada que tivesse acontecido depois de
«Sr. Finch, se o sinhô fosse preto com’eu tamém tinha medo» e deu instruções ao júri
para ignorar a interrupção.
Olhou desconfiadamente para o corredor central e acho que ficou à espera que o Sr.
Link Deas abandonasse a sala. Então disse:
— Continue, Sr. Gilmer.
— Esteve preso trinta dias por conduta desordeira, Robinson? — perguntou o Sr.
Gilmer.
— Sim, sinhô.
— E como ficou o outro preto?
— Ele tinha batido em mim, Sr. Gilmer.
— Sim, mas você foi condenado, não foi?
O Atticus levantou a cabeça.
— Foi um delito menor e consta do processo, meritíssimo.
Achei que a voz dele demonstrava algum cansaço.
— A testemunha vai responder — disse o Juiz Taylor, mostrando-se igualmente
cansado.
— Sim, sinhô, eu peguei trinta dias.
Eu já sabia que o Sr. Gilmer ia dizer ao júri que uma pessoa que tinha sido
condenada por conduta desordeira podia perfeitamente ter abusado de Mayella Ewell e
isso era a única coisa que lhe interessava. Aquele tipo de argumentos servia aos seus
propósitos.
— Robinson, é perfeitamente capaz de cortar armários e lenha só com uma mão, não
é?
— Sim, sinhô, acho que sim.
— Suficientemente forte para estrangular uma mulher e atirá-la ao chão?
— Nunca fiz tal, sinhô.
— Mas é suficientemente forte para isso, não é?
— Acho qu’ sim, sinhô.
— Já andava de olho nela há muito tempo, não andava, rapaz?
— Não, sinhô, nunca olhei p’ra ela.
— Então era muito simpático para cortar toda aquela lenha e ainda por cima ir buscar
água, não era, rapaz?
— Só tentava ajuda’ ela, sinhô.
— Convenhamos que estava sendo generoso generoso. Tinha tarefas para fazer em
casa depois do trabalho, não tinha?
— Sim, sinhô.
— Então por que é que não as fazia em vez de fazer as tarefas da Srta. Ewell?
— Eu fazia as duas, sinhô.
— Devia andar muito ocupado. Porquê?
— Porquê quê, sinhô?
— Por que é que andava tão interessado em fazer as tarefas daquela mulher?
Tom Robinson hesitou enquanto procurava uma resposta.
— Par’cia qu’ não havia mais ninguém p’ra ajudar ela, como disse...
— Com Sr. Ewell e mais sete crianças na propriedade, rapaz?
— Bem, eu disse qu’ par’cia qu’eles nunca ajudavam ela...
— E cortava aquela lenha toda e fazia os outros trabalhos por pura bondade, rapaz?
— Tentava ajudar ela, já disse.
O Sr. Gilmer dirigiu um sorriso sombrio para o júri.
— Parece que é uma boa pessoa... e fazia tudo sem receber uma única moeda?
— Sim, sinhô. Eu tinha munta pena dela, qu’ela par’cia trabalha’ mais que os outro...
— Teve pena dela, teve pena dela? — Sr. Gilmer parecia prestes a subir pelas
paredes.
A testemunha percebeu o erro que tinha cometido e mexeu-se desconfortavelmente na
cadeira. Mas o mal estava feito. Por baixo de nós não havia ninguém que tivesse
gostado da resposta do Tom Robinson. O Sr. Gilmer fez uma grande pausa para deixar
que a resposta se entranhasse eficazmente no público.
— Bem, a vinte e um de Novembro último, dirigia-se para casa como habitualmente
— disse ele — quando ela lhe pediu para entrar e desmontar um roupeiro?
— Não, sinhô.
— Nega ter entrado na casa?
— Não, sinhô... ela disse que tinha uma coisa p’ra eu fazer dentro da casa... .
— Ela disse que lhe pediu para desmontar o roupeiro, não é verdade?
— Não, sinhô, num é.
— Então diga-me que ela está mentindo, rapaz?
O Atticus já estava de pé, mas o Tom Robinson não precisava dele.
— Não lhe digo qu’ela mentiu, Sr. Gilmer. Digo é que ’tá com a cabeça confusa.
Nas dez perguntas seguintes, enquanto o Sr. Gilmer ia revendo a versão dos
acontecimentos de Mayella, a resposta firme da testemunha era que ela estaria confusa.
— Não é então verdade que o Sr. Ewell o expulsou da casa, rapaz?
— Não, sinhô, acho que não.
— Acha que não? O que quer dizer?
— Não fiquei lá tempo que chegasse p’ra ele me expulsar.
— Parece ter sido muito ingênuo... Já agora, por que é que fugiu correndo?
— Já disse que ’tava com medo, sinhô.
— Se estava de consciência tranquila de que é que tinha medo?
— Como disse antes, não era seguro p’ra um preto ’tar metido... numa embrulhada
daquelas.
— Mas você não estava metido numa confusão... até afirmou que estava resistindo a
Srta. Ewell. Tinha assim tanto medo que ela lhe fizesse mal que teve de correr tanto,
logo um tipo grande como você?
— Não, sinhô. Tinha medo d’ir parar num tribunal como ’tou agora.
— Medo de ser preso, medo de ter de responder pelo que fez?
— Não, sinhô. Medo de responder p’lo que não fiz.
— Está sendo insolente comigo, rapaz?
— Não, sinhô, não ’tou.
Foi tudo o que consegui ouvir do contra-interrogatório do Sr. Gilmer, pois o Jem
obrigou-me a levar o Dill lá para fora. O Dill tinha começado a chorar e não conseguia
parar; a princípio silenciosamente, mas depois os seus soluços foram ouvidos por várias
pessoas que estavam no balcão. O Jem disse que eu havia de ir por bem ou por mal e o
Reverendo Sykes disse que era melhor que eu fosse, por isso fui. Durante todo o dia, o
Dill pareceu-me estar perfeitamente bem, como se não houvesse nada de errado com ele,
mas acho que ele ainda não tinha recuperado totalmente da história de ter fugido de casa.
— Não está se sentindo bem? — perguntei, quando chegamos ao fundo das escadas.
O Dill tentou recompor-se enquanto descíamos os degraus do setor sul. No topo da
escadaria, o Sr. Link Deas parecia uma figura solitária.
— Está acontecendo alguma coisa, Scout? — perguntou, quando passamos por ele.
— Não, senhor — respondi por cima do ombro. — O Dill está maldisposto.
— Anda para debaixo das árvores — disse. — Deve ter sido o calor.
Escolhemos o maior carvalho e sentamos debaixo dele.
— Já não conseguia aguentar mais ele — confessou o Dill.
— A quem? Ao Tom?
— Aquele Sr. Gilmer que o tratava daquela maneira e que falava com tanto ódio...
— Dill, esse é o trabalho dele. Pensa comigo, se não tivéssemos advogados de
acusação... bem, então também não podíamos ter advogados de defesa.
O Dill expirou pacientemente.
— Sei disso tudo, Scout. Era só a maneira como dizia aquilo, foi isso que me deixou
doente, doente de verdade.
— É normal ele fazer aquilo, Dill, ele estava contra...
— Mas ele não agiu assim quando.
— Dill, eles eram testemunhas dele.
— Tudo bem, mas o Sr. Finch não agiu assim com a Mayella e com o velho Ewell
quando os contra-interrogou. A maneira como aquele homem lhe chamava «rapaz», o
encarava com desprezo e a forma como olhava para o júri cada vez que ele respondia...
— Bem, Dill, afinal de contas ele não passa de um negro.
— Isso não me interessa nada. Não está certo. Não está certo tratá-los daquela
maneira. Ninguém devia falar assim... me deixa doente, agoniado.
— É só a maneira de ser do Sr. Gilmer, Dill. Ele trata todo mundo assim. Ainda não
o viu a cair em cima de alguém à séria. Quando... bem, a mim pareceu que o Sr. Gilmer
nem sequer estava passando dos limites. A maior parte dos advogados trata todos assim.
— O Sr. Finch não.
— Ele não é exemplo, Dill. Ele... — procurava na minha memória uma daquelas
frases lapidares da Srta. Maudie Atkinson.
E encontrei-a: «Ele é uma e a mesma pessoa, dentro do tribunal ou na rua».
— Não era isso que eu queria dizer — disse o Dill.
— Eu sei o que queria dizer, criança — disse uma voz atrás de nós.
Pensamos que tinha vindo da árvore, mas na verdade a voz pertencia ao Sr. Dolphus
Raymond. Mostrou-se do lado de lá do tronco, espreitando para nós.
— Ainda não tem calo e aquilo te deixa enojado, não é?
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