sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Gabriel Garcia Marquez

Um senhor muito velho com umas asas muito grandes

 No terceiro dia de chuva tinham matado tantos caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado para atirá-los ao mar, pois o bebé recém-nascido tinha passado a noite com febre e pensava-se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham-se transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio-dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar-se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar-se, porque lho impediam as suas enormes asas. Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou-a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha-o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda muito rapidamente se recompuseram do assombro e acabaram por achá-lo familiar. Então atreveram-se a falar-lhe, e ele respondeu-lhes num dialecto incompreensível, mas com uma boa voz de navegante. Foi por isso que deixaram de preocupar-se com o inconveniente das asas e chegaram à sensata conclusão de que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro, desfeito pelo temporal. Contudo, chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou-lhe um olhar para tirá-los do engano. - É um anjo - disse-lhes. - Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair. No dia seguinte toda a gente sabia que em casa de Pelayo tinham cativo um anjo de carne e osso. Contra o critério da vizinha sábia, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá- lo à paulada. Pelayo esteve toda a tarde a vigiá-lo, da cozinha, armado com o seu garrote de aguazil, e, antes de deitar-se, tirou-o de rastros do lodaçal e fechou-o com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia-noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam a matar caranguejos. Pouco depois o menino acordou, sem febre e com desejos de comer. Então sentiram-se magnânimos e decidiram pôr o anjo numa balsa com água doce e provisões para três dias e abandoná-lo à sua sorte no mar alto. Mas, quando foram ao pátio com as primeiras claridades, encontraram toda a vizinhança em frente do galinheiro, divertindo-se com o anjo, sem a menor devoção e a atirar-lhe coisas para comer pelos buracos dos alambres, como se não se tratasse de uma criatura sobrenatural, mas sim de um animal de circo. O padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pela desproporção da notícia. A essa hora já tinham acorrido curiosos menos frívolos que os do amanhecer e tinham feito toda a espécie de suposições sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido lenhador vigoroso. Chegado aos alambres, fez uma rápida revisão do seu catecismo, e, entretanto, pediu que lhe abrissem a porta, para examinar de perto aquele varão de lástima que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas. Estava deitado num canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e as sobras de pequenos-almoços que lhe tinham atirado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, mal levantou os seus olhos de antiquário e murmurou alguma coisa no seu dialecto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu os bons-dias em latim. O pároco teve a primeira suspeita da sua impostura ao verificar que não compreendia a língua de Deus nem sabia cumprimentar os seus ministros. A seguir, observou que, visto de perto, tinha a aparência demasiado humana: tinha um insuportável odor de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada da sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro e, com um breve sermão, preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou-lhes que o Demónio tinha o mau hábito de servir-se de artifícios de Carnaval para confundir os incautos. Argumentou que, se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos o podiam ser para reconhecer os anjos. No entanto, prometeu escrever uma carta ao seu bispo, para que este escrevesse outra ao seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de maneira que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos. A sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou-se com tanta rapidez que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram de levar a tropa, com baionetas, para espantar o tumulto, que já estava quase a deitar a casa abaixo. Elisenda, com o espinhaço torcido de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de taipar o pátio e receber cinco centavos pela entrada para ver o anjo. Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou a zumbir várias vezes por cima da multidão, mas ninguém lhe ligou importância, porque as suas asas não eram de anjo, mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais infelizes do Caribe: uma pobre mulher que desde criança estava a contar os latejos do seu coração e já não tinha números que lhe chegassem, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que tinha feito acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana atulhavam de dinheiro os quartos de dormir, e, todavia, a fila de peregrinos que esperavam vez para entrar chegava até ao outro lado do horizonte. O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. O tempo ia-selhe em procurar acomodação no seu ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam aos alambres. Ao princípio insistiram para que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava-os, como desprezou, sem os provar, os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer nada mais que papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando o espiolhavam as galinhas em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas e os aleijados lhe arrancavam penas, para tocar com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, tentando conseguir que se levantasse, para vê-lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbá-lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque havia tantas horas que estava imóvel que pensaram que estava morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e bateu as asas duas vezes, o que provocou um remoinho de estrume de galinheiro e pó lunar e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Apesar de muitos terem ficado convencidos de que a sua reacção não tinha sido de raiva, mas sim de dor, desde esse dia trataram de não o incomodar, porque a maioria compreendeu que a sua passividade não era a de um herói em gozo de boa reforma, mas a de um cataclismo em repouso. O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto lhe chegava um parecer decisivo sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma tinha perdido a noção da urgência. O tempo ia-se-lhes a averiguar se o prisioneiro tinha umbigo, se o seu dialecto tinha alguma coisa a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta dum alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de parcimónia teriam ido e vindo até ao fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto um fim às tribulações do pároco. Sucedeu que, por esses dias, entre muitas outras atracções das feiras ambulantes do Caribe, levaram ao povoado o espectáculo triste da mulher que se tinha convertido em aranha por ter desobedecido a seus pais. A entrada para a ver não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas ainda permitiam fazer-lhe toda a espécie de perguntas sobre a sua absurda condição e examiná-la pelo direito e pelo avesso, de maneira que ninguém pusesse em dúvida a veracidade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Porém, o mais aflitivo não era a sua aparência de disparate, mas a sincera aflição com que contava os pormenores da sua desgraça; sendo quase uma criança, tinha-se escapado de casa dos seus pais para ir a um baile, e, quando regressava pelo bosque, depois de ter dançado toda a noite sem autorização, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. O seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caritativas quisessem deitar-lhe na boca. Semelhante espectáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha de derrotar, sem premeditação, o de um anjo despeitoso que mal se dignava olhar para os mortais. Além disso, os raros milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a vista mas a quem apareceram três dentes novos, o do paralítico que não pôde andar mas esteve quase a ganhar a lotaria e o do leproso a quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam divertimentos de troça, já tinham enfraquecido a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou de a aniquilar. Foi desta maneira que o padre Gonzaga se curou para sempre das insónias e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos andavam pelos quartos. Os donos da casa não tiveram nada que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com balcões e jardins e com muros muito altos, para que não entrassem os caranguejos do Inverno, e com barras de ferro nas janelas, para que não entrassem os anjos. Pelayo instalou, além disso, uma criação de coelhos muito perto da povoação, renunciando para sempre ao seu mau emprego de aguazil, e Elisenda comprou uns sapatos acetinados com saltos altos e muitos vestidos de seda furta-cor, como os que usavam as senhoras mais categorizadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi a única coisa que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e nele queimaram as lágrimas de mirra, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de esterqueira, que andava como um fantasma por toda a parte e estava a tornar velha a casa nova. Ao princípio, quando o menino começou a andar, tiveram cuidado para que não estivesse muito perto do galinheiro. Mas depois foram-se esquecendo do temor e acostumando-se à pestilência, e antes que o menino mudasse os dentes tinha-se habituado a brincar dentro do galinheiro, cujos alambres apodrecidos caíam aos bocados. O anjo não foi menos desabrido para com ele do que para com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansuetude de cão sem ilusões. Ambos contraíram a varicela ao mesmo tempo. O médico que tratou o menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo e encontrou-lhe tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, contudo, foi a lógica das suas asas. Pareciam tão naturais naquele organismo completamente humano que não podia compreender-se porque não as tinham também os outros homens. Quando o menino foi à escola, havia muito tempo que o sol e a chuva tinham desmantelado o galinheiro. O anjo andava a arrastar-se por aqui e por ali, como um moribundo sem dono. Expulsavam-no a vassouradas de um quarto e um momento depois encontravam-no na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava, fora de si, que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, os seus olhos de antiquário tinham-se-lhe tornado tão turvos que andava a tropeçar nas vigas que sustentavam o telhado e já não lhe restavam senão os ráquis pelados das últimas penas. Pelayo atirou-lhe para cima uma manta e fez-lhe a caridade de o deixar dormir no alpendre, e só então repararam que passava a noite com febres, delirando, em tartamudeios de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes em que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer e nem sequer a vizinha sábia tinha podido dizer-lhes o que se fazia com os anjos mortos. No entanto, não só sobreviveu ao seu pior Inverno como até pareceu melhor com os primeiros sóis. Permaneceu imóvel durante muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de Dezembro começaram a nascer-lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de passarão velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tinha todo o cuidado para que ninguém as notasse e para que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas. Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou-se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando-se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê-lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê-lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.

O mar do tempo perdido

 Para o fim de Janeiro o mar ia-se tornando tempestuoso, começava a despejar sobre a povoação um lixo espesso e poucas semanas depois tudo estava contaminado pelo seu humor insuportável. A partir de então o mundo não valia a pena, pelo menos até ao outro Dezembro, e ninguém ficava acordado depois das oito. Mas no ano em que veio o senhor Herbert o mar não se alterou, nem sequer em Fevereiro. Pelo contrário, tornou-se cada vez mais liso e fosforescente, e nas primeiras noites de Março exalou uma fragrância de rosas. Tobías sentiu-a. Tinha o sangue doce para os caranguejos e passava a maior parte da noite a espantá-los da cama, até que virava a brisa e conseguia dormir. Durante as suas longas insónias tinha aprendido a distinguir qualquer mudança do ar. De maneira que quando sentiu um cheiro de rosas não precisou de abrir a porta para saber que era um cheiro do mar. Levantou-se tarde. Clotilde estava a acender o lume no pátio. A brisa era fresca e todas as estrelas estavam nos seus lugares, mas era difícil contá-las até ao horizonte, por causa das luzes do mar. Depois de tomar café, Tobías sentiu um ressaibo da noite no paladar. - Esta noite - recordou - sucedeu uma coisa muito estranha. Clotilde, evidentemente, não a tinha sentido. Dormia de uma maneira tão pesada que nem sequer recordava os sonhos. - Era um cheiro de rosas - disse Tobías -, e tenho a certeza de que vinha do mar. - Não sei a que cheiram as rosas - disse Clotilde. Talvez fosse verdade. O povoado era árido, com um solo duro, gretado pelo salitre, e só de vez em quando alguém trazia de outro lugar um ramo de flores para o atirar ao mar, no sítio de onde se atiravam os mortos. - É o mesmo cheiro que tinha o afogado de Guacamayal - disse Tobías. - Está bem - sorriu Clotilde -, então se era um bom cheiro, podes ter a certeza de que não vinha deste mar. Era, com efeito, um mar cruel. Em certas épocas, enquanto as redes não arrastavam senão lixo em suspensão, as ruas do povoado ficavam cheias de peixes mortos quando se retirava a maré. A dinamite só punha a flutuar os restos de antigos naufrágios. As raras mulheres que ficavam na aldeia, como Clotilde, viviam cheias de rancor. E, como ela, a esposa do velho Jacob, que naquela manhã se levantou mais cedo que de costume, pôs a casa em ordem e chegou ao pequeno-almoço com uma expressão de adversidade. - A minha última vontade - disse ao seu esposo - é que me enterrem viva. Disse-o como se estivesse no seu leito de agonizante, mas estava sentada na cabeceira da mesa, numa sala de jantar com grandes janelas, por onde entrava a jorros e se metia por toda a casa a claridade de Março. Em frente dela, apascentando a sua fome repousada, estava o velho Jacob, um homem que a estimava tanto e desde há tanto tempo que já não podia conceber nenhum sofrimento que não tivesse origem na sua mulher. - Quero morrer com a certeza de que me porão debaixo da terra, como às pessoas decentes - prosseguiu ela. - E a única maneira de o saber é ir-me para outro lugar a suplicar a caridade de me enterrarem viva. - Não precisas de suplicá-lo a ninguém - disse com muita calma o velho Jacob. - Heide levar-te eu mesmo. - Então vamo-nos - disse ela -, porque vou morrer muito em breve. O velho Jacob examinou-a a fundo. Só os seus olhos permaneciam jovens. Os ossos tinham-se tornado descarnados nas articulações e tinha o mesmo aspecto de terra aplanada que, no fim de contas, sempre tinha tido. - Estás melhor do que nunca - disse-lhe. - Esta noite - suspirou ela - senti um cheiro de rosas. - Não te preocupes - tranquilizou-a o velho Jacob. - Essas são coisas que nos sucedem aos pobres. - Nada disso - disse ela. - Sempre rezei para que me seja anunciada a morte com a devida antecipação, para morrer longe deste mar. Um cheiro de rosas nesta povoação não pode ser senão um aviso de Deus. O velho Jacob não se lembrou de mais nada senão de pedir-lhe um pouco de tempo para arranjar as coisas. Tinha ouvido dizer que a gente não morre quando deve, mas sim quando quer, e estava seriamente preocupado com a premonição da sua mulher. Até se interrogou para saber se, chegado o momento, teria coragem para a enterrar viva. Às nove abriu o local onde tivera antes uma loja. Pôs na porta duas cadeiras e uma mesinha com o tabuleiro das damas e esteve toda a manhã a jogar com adversários ocasionais. Do seu lugar via a povoação em ruínas, as casas descalabradas, com vestígios de antigas cores carcomidas pelo sol e um pedaço de mar no fim da rua. Antes do almoço, como sempre, jogou com dom Máximo Gómez. O velho Jacob não podia imaginar um adversário mais humano que um homem que tinha sobrevivido intacto a duas guerras civis e só tinha deixado um olho na terceira. Depois de perder propositadamente uma partida, reteve-o para outra. - Diga-me uma coisa, dom Máximo - perguntou-lhe então -, o senhor seria capaz de enterrar a sua esposa viva? - Com certeza - disse dom Máximo Gómez. - Você creia-me que a mão não me tremeria. O velho Jacob guardou um silêncio assombrado. A seguir, tendo-se deixado despojar das suas melhores peças, suspirou: - É que, pelo que parece, a Petra vai morrer. Dom Máximo Gómez não se perturbou. - Nesse caso - disse -, não tem necessidade de a enterrar viva. - Comeu duas peças e fez uma dama. Depois fixou no seu adversário um olho humedecido por uma água triste. - Que é que ela tem? - Esta noite - explicou o velho Jacob - sentiu um cheiro de rosas. - Então vai morrer meio povoado - disse dom Máximo Gómez. - Esta manhã não se tem ouvido falar de outra coisa. O velho Jacob teve de fazer um grande esforço para perder de novo, sem o ofender. Guardou a mesa e as cadeiras, fechou a loja e andou por todos os lados em busca de alguém que tivesse sentido o cheiro. Por fim, só Tobías tinha a certeza. De maneira que lhe pediu o favor de passar pela sua casa, como se fosse por acaso, e de contar tudo à sua mulher. Tobías cumpriu. Às quatro, vestido como para fazer uma visita, apareceu no corredor onde a esposa tinha passado a tarde preparando para o velho Jacob a sua roupa de viúvo. Fez uma entrada tão sigilosa que a mulher sobressaltou-se. - Santo Deus - exclamou -, pensei que fosse o arcanjo Gabriel. - Pois veja que não - disse Tobías. - Sou eu e venho para lhe contar uma coisa. Ela ajustou as lunetas e voltou ao trabalho. -Já sei o que é - disse. - Aposto que não - disse Tobías. - Que esta noite sentiste um cheiro de rosas. - Como o soube? - perguntou Tobías, desolado. - Na minha idade - disse a mulher - tem-se tanto tempo para pensar que uma pessoa acaba por tornar-se adivinha. O velho Jacob, que tinha a orelha encostada ao tabique do quarto atrás da loja, endireitou-se, envergonhado. - Que te parece, mulher?! - gritou através do tabique. Deu a volta e apareceu no corredor. - Então não era o que tu pensavas. - São mentiras deste rapaz - disse ela, sem levantar a cabeça. - Não sentiu nada. - Foi por volta das onze - disse Tobías -, e eu estava a espantar os caranguejos. A mulher acabou de remendar um colarinho. - Mentiras - insistiu. - Toda a gente sabe que és um mentiroso. - Cortou o fio com os dentes e olhou para Tobías por cima das lentes. - O que não compreendo é que te tenhas dado ao trabalho de untar o cabelo com vaselina e de engraxar os sapatos unicamente para vires faltar-me ao respeito. A partir daí, Tobías começou a vigiar o mar. Pendurava a rede no corredor do pátio e passava a noite esperando, assombrado com as coisas que acontecem no mundo enquanto as pessoas estão a dormir. Durante muitas noites ouviu o arranhar desesperado dos caranguejos tentando marinhar pelas vigas, até que passaram tantas noites que se cansaram de insistir. Conheceu a maneira de dormir de Clotilde. Reparou que os seus roncos de flauta se foram tornando mais agudos à medida que o calor aumentava, até se converterem numa única nota lânguida, no torpor de Julho. Ao princípio Tobías vigiou o mar como o fazem aqueles que o conhecem bem, com o olhar fixo num único ponto do horizonte. Viu-o mudar de cor. Viu-o apagar-se, tornar-se espumoso e sujo e lançar os seus arrotos carregados de desperdícios, quando as grandes chuvas agitaram a sua digestão tormentosa. Pouco a pouco, foi aprendendo a vigiá-lo como o fazem aqueles que o conhecem melhor, sem olhá-lo sequer, mas sem poder esquecê-lo nem sequer durante o sono. Em Agosto morreu a esposa do velho Jacob. Amanheceu morta na cama e tiveram de atirá-la, como a toda a gente, para um mar sem flores. Tobías continuou à espera. Tinha esperado tanto que aquilo se converteu na sua maneira de ser. Uma noite, enquanto dormitava na rede, deu-se conta de que alguma coisa tinha mudado no ar. Foi uma lufada intermitente, como nos tempos em que o barco japonês despejou na entrada do porto um carregamento de cebolas podres. Seguidamente, o cheiro consolidou-se e não tornou a mover-se até ao amanhecer. Só quando teve a impressão de que podia agarrá-lo com as mãos para mostrá-lo, Tobías saltou da rede e entrou no quarto de Clotilde. Sacudiu-a várias vezes. - Cá está - disse-lhe. Clotilde teve de afastar o cheiro com os dedos, como uma teia de aranha, para poder endireitar-se. A seguir voltou a deixar-se cair na lona tépida. - Maldito seja - disse. Tobías deu um salto até à porta, saiu para o meio da rua e começou a gritar. Gritou com todas as suas forças, respirou fundo e tornou a gritar, a seguir fez um silêncio e respirou mais fundo, e o cheiro ainda estava no mar. Mas ninguém respondeu. Então foi batendo de casa em casa, inclusivamente nas casas de ninguém, até que o seu alvoroço se misturou com o dos cães e acordou toda a gente. Muitos não o sentiram. Mas outros, e especialmente os velhos, desceram para o gozar na praia. Era uma fragrância compacta que não podia comparar-se a nenhum cheiro do passado. Alguns, esgotados de tanto cheirar, regressaram a casa. A maioria ficou a acabar o sono na praia. Ao amanhecer o cheiro era tão puro que fazia pena respirar. Tobías dormiu quase todo o dia. Clotilde foi ter com ele durante a sesta e passaram a tarde a divertir-se na cama sem fechar a porta do pátio. Primeiro fizeram como as lombrigas, depois como os coelhos e por fim como as tartarugas, até que o mundo se pôs triste e voltou a escurecer. Contudo, ficavam vestígios de rosas no ar. Às vezes, chegava até ao quarto uma onda de música. - É no Catarino - disse Clotilde. - Deve ter chegado alguém. Tinham chegado três homens e uma mulher. Catarino pensou que, mais tarde, podiam vir outros, e tentou consertar a grafonola. Como não o conseguiu, pediu esse favor a Pancho Aparecido, que fazia toda a espécie de coisas porque nunca tinha nada que fazer e, além disso, tinha uma caixa de ferramentas e umas mãos inteligentes. A taberna do Catarino era uma casa afastada, de madeira, em frente ao mar. Tinha um salão grande com bancos e mesinhas e vários quartos no fundo. Enquanto observavam o trabalho de Pancho Aparecido, os três homens e a mulher bebiam em silêncio, sentados ao balcão, e bocejavam por turnos. A grafonola funcionou bem depois de muitas experiências. Ao ouvir a música, remota mas definida, as pessoas deixaram de conversar. Olharam umas para as outras e durante um momento não tiveram nada para dizer, porque só então se deram conta de quanto tinham envelhecido desde a última vez em que tinham ouvido música. Tobías encontrou toda a gente acordada depois das nove. Estavam sentados à porta, escutando os velhos discos do Catarino, na mesma atitude de fatalismo pueril com que se contempla um eclipse. Cada disco recordava-lhes alguém que tinha morrido, o sabor que tinham os alimentos depois de uma longa doença, ou alguma coisa que deviam fazer no dia seguinte, muitos anos atrás, e que nunca fizeram, por esquecimento. A música acabou por volta das onze. Muitos deitaram-se pensando que ia chover, porque havia uma nuvem escura sobre o mar. Mas a nuvem desceu, esteve a flutuar um momento à superfície e acabou por afundar-se na água. Por cima só ficaram as estrelas. Pouco depois, a brisa da povoação foi até ao centro do mar e trouxe de regresso uma fragrância de rosas. - Eu disse-lho, Jacob - exclamou dom Máximo Gómez. - Cá o temos outra vez. Tenho a certeza de que agora o sentiremos todas as noites. - Deus nos livre disso - disse o velho Jacob. - Este cheiro é a única coisa na vida que me chegou demasiado tarde. Tinham jogado às damas na loja vazia, sem prestar atenção aos discos. As suas recordações eram tão antigas que não existiam discos suficientemente velhos para as fazer voltar. - Eu, pela minha parte, não acredito muito em nada disto - disse dom Máximo Gómez. - Depois de tantos anos a comer terra, com tantas mulheres desejando um patiozinho onde semear as suas flores, não admira que uma pessoa acabe por sentir estas coisas, e até por acreditar que são verdadeiras. - Mas estamos a senti-lo com os nossos próprios narizes - disse o velho Jacob. - Não quer dizer nada - disse dom Máximo Gómez. - Durante a guerra, quando a revolução já estava perdida, tínhamos desejado tanto um general que vimos aparecer o duque de Marlborough, em carne e osso. Eu vi-o com os meus próprios olhos, Jacob. Passava da meia-noite. Quando ficou só, o velho Jacob fechou a loja e levou a luz para o quarto. Através da janela, recortada na fosforescência do mar, via a rocha de onde atiravam os mortos. - Petra - chamou, em voz baixa. Ela não pôde ouvi-lo. Naquele momento navegava quase à superfície da água, num meio-dia radiante do golfo de Bengala. Tinha levantado a cabeça para ver através da água, como numa vitrina iluminada, um transatlântico enorme. Mas não podia ver o seu esposo, que nesse instante começava a ouvir de novo a grafonola do Catarino, no outro lado do mundo. - Repara - disse o velho Jacob. - Há apenas seis meses supuseram-te louca e agora eles próprios fazem festa com o cheiro que te causou a morte. Apagou a luz e meteu-se na cama. Chorou devagarinho, com o chorinho sem graça dos velhos, mas muito depressa adormeceu. - Punha-me a andar desta aldeia, se pudesse - soluçou entre soluços. - Iria mesmo para o catano, se, pelo menos, tivesse vinte pesos arrecadados. Desde aquela noite, e durante várias semanas, o cheiro permaneceu no mar. Impregnou a madeira das casas, os alimentos e a água de beber e deixou de haver um lugar onde estar sem o sentir. Muitos se assustaram ao encontrá-lo no vapor da sua própria cagada. Os homens e a mulher que tinham vindo à taberna do Catarino foram-se embora numa sextafeira, mas regressaram no sábado, com um tumulto. No domingo vieram mais. Formigaram por todos os lados, à procura de comer e de onde dormir, até que não se pôde andar pela rua. Vieram mais. As mulheres que tinham partido quando morreu a povoação voltaram à taberna do Catarino. Estavam mais gordas e mais pintadas e trouxeram discos da moda que não recordavam nada a ninguém. Vieram alguns dos antigos habitantes da aldeia. Tinham ido apodrecer-se de dinheiro noutro lugar e regressavam falando da sua fortuna, mas com a mesma roupa que tinham levado vestida. Vieram músicas e tômbolas, mesas de jogos de azar, adivinhadeiras e pistoleiros e homens com uma cobra enrolada no pescoço que vendiam o elixir da vida eterna. Continuaram a vir durante várias semanas, mesmo depois de terem caído as primeiras chuvas e o mar se ter tornado turvo e desaparecido o cheiro. Entre os últimos chegou um padre. Andava por todos os lados, a comer pão molhado numa malga de café com leite, e pouco a pouco ia proibindo tudo o que o tinha precedido: os jogos de azar, a música nova e a maneira de a dançar, e até o recente costume de dormir na praia. Uma tarde, em casa de Melchor, pronunciou um sermão sobre o cheiro do mar. - Dai graças aos céus, meus filhos - disse -, porque este é o cheiro de Deus. Alguém o interrompeu. - Como pode sabê-lo, padre, se ainda não o sentiu? - As Sagradas Escrituras - disse ele - são explícitas a respeito deste cheiro. Estamos numa povoação eleita. Tobías andava como um sonâmbulo, de um lado para o outro, no meio da festa. Levou Clotilde, para conhecer o dinheiro. Imaginaram que jogavam somas enormes na roleta e a seguir fizeram as contas e sentiram-se imensamente ricos com o dinheiro que poderiam ter ganho. Mas, uma noite, não só eles, mas também a multidão que ocupava o povoado, viram muito mais dinheiro junto do que o que poderia ter-lhes cabido na imaginação. Essa foi a noite em que veio o senhor Herbert. Apareceu de repente, pôs uma mesa no meio da rua e em cima da mesa dois grandes baús cheios de notas até aos bordos. Havia tanto dinheiro que ao princípio ninguém lhe prestou atenção, porque não podiam acreditar que fosse verdade. Mas, como o senhor Herbert se pôs a tocar uma pequena sineta, as pessoas acabaram por lhe dar crédito e aproximaram-se, para ouvir. - Sou o homem mais rico da Terra - disse. - Tenho tanto dinheiro que já não sei onde metê-lo. E, como, além disso, tenho um coração tão grande que já não me cabe dentro do peito, tomei a determinação de percorrer o mundo para resolver os problemas do género humano. Era grande e corado. Falava alto e sem pausas e movia ao mesmo tempo umas mãos tíbias e lânguidas que pareciam sempre acabadas de ser tratadas. Falou durante um quarto de hora, e descansou. Depois, voltou a agitar a sineta e começou a falar outra vez. A meio do discurso, alguém agitou um chapéu, por entre a multidão, e interrompeu-o. - Bem, mister, não fale tanto e comece a repartir o dinheiro. - Assim não - replicou o senhor Herbert. - Repartir o dinheiro, sem tom nem som, além de ser um método injusto, não teria nenhum sentido. Localizou com a vista o que o tinha interrompido e fez-lhe sinal para que se aproximasse. A multidão abriu-lhe passagem. - Em vez disso - prosseguiu o senhor Herbert -, este impaciente amigo vai permitirnos agora que expliquemos o mais equitativo sistema de distribuição da riqueza. - Estendeu uma mão e ajudou-o a subir. - Como te chamas? - Patrício. - Muito bem, Patrício - disse o senhor Herbert. - Como toda a gente, tu tens, desde há tempos, um problema que não podes resolver. Patrício tirou o chapéu e confirmou com a cabeça. - Qual é? - Pois o meu problema é esse - disse Patrício -, que não tenho dinheiro. - E de quanto precisas? - Quarenta e oito pesos. O senhor Herbert lançou uma exclamação de triunfo. «Quarenta e oito pesos», repetiu. A multidão acompanhou-o num aplauso. - Muito bem, Patrício - prosseguiu o senhor Herbert. -Agora diz-me uma coisa: que sabes fazer? - Muitas coisas. - Decide-te por uma - disse o senhor Herbert. - A que faças melhor. - Bem - disse Patrício. - Sei fazer como os pássaros. Aplaudindo outra vez, o senhor Herbert dirigiu-se à multidão. - Portanto, senhoras e senhores, o nosso amigo Patrício, que imita extraordinariamente bem os pássaros, vai imitar quarenta e oito pássaros diferentes e resolver por essa forma o grande problema da sua vida. No meio do silêncio assombrado da multidão, Patrício fez então como os pássaros. Umas vezes assobiando, outras vezes com a garganta, fez como todos os pássaros conhecidos e completou o número com outros que ninguém conseguiu identificar. No fim, o senhor Herbert pediu um aplauso e entregou-lhe quarenta e oito pesos. - E agora - disse - vão passando um por um. Até amanhã a esta mesma hora estou aqui para resolver problemas. O velho Jacob foi informado do acontecimento pelos comentários da gente que passava diante da sua casa. A cada nova notícia o coração ia-se-lhe pondo grande, cada vez mais grande, até que o sentiu rebentar. - Que opinião tem o senhor deste gringo? - perguntou. Dom Máximo Gómez encolheu os ombros. - Deve ser um filantropo. - Se eu soubesse fazer alguma coisa - disse o velho Jacob -, agora poderia resolver o meu problemazinho. É coisa de pouco valor: vinte pesos. - Você joga muito bem às damas - disse dom Máximo Gómez. O velho Jacob não pareceu prestar-lhe atenção. Mas, quando ficou só, embrulhou o tabuleiro e a caixa das peças num jornal e foi desafiar o senhor Herbert. Esperou pela sua vez até à meia-noite. Por fim, o senhor Herbert mandou levar os baús e despediu-se até à manhã seguinte. Não foi deitar-se. Apareceu na taberna do Catarino, com os homens que levavam os baús, e até ali o perseguiu a multidão, com os seus problemas. Pouco a pouco foi-os resolvendo, e resolveu tantos que por fim só ficaram na taberna as mulheres e alguns homens com os seus problemas resolvidos. E, ao fundo do salão, uma mulher solitária que se abanava muito devagar com um cartão de propaganda. - E tu - gritou-lhe o senhor Herbert -, qual é o teu problema? A mulher deixou de abanar-se. - A mim não me meta na sua brincadeira, mister - gritou, através do salão. - Eu não tenho problemas de nenhuma espécie e sou puta porque me dá na gana. O senhor Herbert encolheu os ombros. Continuou a beber cerveja gelada, junto dos baús abertos, à espera de outros problemas. Transpirava. Pouco depois, uma mulher separou-se do grupo que a acompanhava na mesa e falou-lhe em voz muito baixa. Tinha um problema de quinhentos pesos. - Qual é o teu preço? - perguntou o senhor Herbert. - Cinco. - Imagina - disse o senhor Herbert. - São cem homens. - Não tem importância - disse ela. - Se consigo todo esse dinheiro junto, estes serão os últimos cem homens da minha vida. Examinou-a. Era muito nova, de ossos frágeis, mas os seus olhos expressavam uma decisão simples. - Está bem - disse o senhor Herbert. - Vai para o quarto, que para lá tos vou mandando, cada um com os seus cinco pesos. Saiu à porta da rua e agitou a sineta. Às sete da manhã, Tobías encontrou a loja do Catarino aberta. Estava tudo apagado. Meio adormecido e inchado de cerveja, o senhor Herbert controlava o ingresso dos homens no quarto da rapariga. Tobías também entrou. A rapariga conhecia-o e surpreendeu-se de vê-lo no seu quarto. - Tu também? - Disseram-me para entrar - disse Tobías. - Deram-me cinco pesos e disseram-me: «Não te demores». Ela tirou da cama o lençol empapado e pediu a Tobías que o segurasse de um lado. Pesava como tela. Espremeram-no, torcendo-o pelos extremos, até que recuperou o seu peso natural. Viraram o colchão, e o suor saía pelo outro lado. Tobías fez as coisas de qualquer maneira. Antes de sair pôs os cinco pesos no montão de notas que ia crescendo ao pé da cama. - Manda toda a gente que possas - recomendou-lhe o senhor Herbert -, a ver se acabamos com isto antes do meio-dia. A rapariga entreabriu a porta e pediu uma cerveja gelada. Estavam vários homens à espera. - Quantos faltam? - perguntou. - Sessenta e três - respondeu o senhor Herbert. O velho Jacob passou todo o dia a persegui-lo com o tabuleiro. Ao anoitecer conseguiu a sua vez, expôs o seu problema, e o senhor Herbert aceitou. Puseram duas cadeiras e a mesinha sobre a mesa grande, em plena rua, e o velho Jacob começou a partida. Foi a última jogada que conseguiu premeditar. Perdeu. - Quarenta pesos - disse o senhor Herbert -, e dou-lhe duas peças de vantagem. Voltou a ganhar. As suas mãos mal tocavam nas peças. Jogou vendado, adivinhando a posição do adversário, e ganhou sempre. A multidão cansou-se de vê-los. Quando o velho Jacob decidiu render-se, estava a dever cinco mil setecentos e quarenta e dois pesos com vinte e três centavos. Não se perturbou. Anotou a importância num papel que guardou no bolso. Depois dobrou o tabuleiro, meteu as peças na caixa e embrulhou tudo no jornal. - Faça de mim o que quiser - disse -, mas deixe-me estas coisas. Prometo-lhe que passarei o resto da minha vida a jogar até lhe reunir este dinheiro. O senhor Herbert olhou para o relógio. - Tenho muita pena - disse. - O prazo acaba dentro de vinte minutos. - Esperou até se convencer de que o adversário não encontraria a solução. - Não tem mais nada? - A honra. - Quero dizer-explicou o senhor Herbert -, qualquer coisa que mude de cor quando se lhe passe por cima uma broxa suja de tinta. - A casa - disse o velho Jacob, como se tivesse decifrado um enigma. - Não vale nada, mas é uma casa. Foi desta maneira que o senhor Herbert ficou com a casa do velho Jacob. Ficou, além disso, com as casas e propriedades de outros que também não puderam cumprir, mas ordenou uma semana de músicas, foguetes e acrobatas e ele mesmo dirigiu a festa. Foi uma semana memorável. O senhor Herbert falou do maravilhoso destino da povoação, e até desenhou a cidade do futuro, com imensos edifícios de vidro e pistas de baile nas açoteias. Mostrou-a à multidão. Olharam assombrados, procurando encontrar-se nos transeuntes coloridos pintados pelo senhor Herbert, mas estavam tão bem vestidos que não conseguiram reconhecer-se. Doeu-lhes o coração de tanto o usar. Riam-se das ganas de chorar que sentiam em Outubro e viveram nas nebulosas da esperança, até que o senhor Herbert sacudiu a sineta e proclamou o termo da festa. Só então descansou. - Vai morrer com essa vida que leva - disse o velho Jacob. - Tenho tanto dinheiro - disse o senhor Herbert - que não há nenhuma razão para que morra. Deixou-se cair na cama. Dormiu dias e dias, roncando como um leão, e passaram tantos dias que a gente se cansou de o esperar. Tiveram de desenterrar caranguejos para comer. Os novos discos do Catarino tornaram-se tão velhos que já ninguém pôde escutá- los sem lágrimas, e teve de se fechar a taberna. Muito tempo depois de o senhor Herbert ter começado a dormir, o padre bateu à porta do velho Jacob. A casa estava fechada por dentro. À medida que a respiração do adormecido ia gastando o ar, as coisas tinham ido perdendo o seu peso e algumas começavam a flutuar. - Quero falar com ele - disse o padre. - É preciso esperar - disse o velho Jacob. - Não disponho de muito tempo. - Sente-se, padre, e espere - insistiu o velho Jacob. - E, entretanto, faça-me o favor de falar comigo. Há muito que não sei nada do mundo. - A população está em debandada - disse o padre. -Dentro em pouco, a aldeia será a mesma de antes. Essa é a única novidade. - Voltarão - disse o velho Jacob - quando o mar voltar a cheirar a rosas. - Mas, entretanto, é preciso sustentar com alguma coisa a ilusão dos que ficam - disse o padre. - É urgente começar a construção do templo. - Por isso veio procurar o senhor Herbert - disse o velho Jacob. - É verdade - disse o padre. - Os gringos são muito caritativos. - Então, espere, padre - disse o velho Jacob. - Pode ser que acorde. Jogaram às damas. Foi uma partida longa e difícil, de muitos dias, mas o senhor Herbert não acordou. O padre deixou-se confundir pelo desespero. Andou por todos os lados, com um pratinho de cobre, pedindo esmolas para construir o templo, mas foi muito pouco o que conseguiu. De tanto suplicar foi-se tornando cada vez mais diáfano, os seus ossos começaram a encher-se de ruídos, e num domingo elevou-se dois palmos acima do nível do chão, mas ninguém o soube. Então pôs a roupa numa maleta e noutra o dinheiro recolhido e despediu-se para sempre. - Não voltará o cheiro - disse àqueles que tentaram dissuadi-lo. - É preciso enfrentar a evidência de que a povoação caiu em pecado mortal. Quando o senhor Herbert acordou, a povoação era a mesma de antes. A chuva tinha fermentado o lixo que a multidão deixou nas ruas e o solo estava outra vez árido e duro como um ladrilho. - Dormi muito - bocejou o senhor Herbert. - Séculos - disse o velho Jacob. - Estou morto de fome. - Toda a gente está assim - disse o velho Jacob. - Não tem outro remédio senão ir à praia desenterrar caranguejos. Tobías encontrou-o esgaravatando na areia, com a boca cheia de espuma, e assombrou-se de que os ricos com fome se parecessem tanto com os pobres. O senhor Herbert não encontrou suficientes caranguejos. Ao entardecer, convidou Tobías para ir procurar alguma coisa para comer, no fundo do mar. - Ouça - preveniu-o Tobías. - Só os mortos sabem o que há lá dentro. - Também o sabem os cientistas - disse o senhor Herbert. - Mais abaixo do mar dos naufrágios há tartarugas de carne deliciosa. Dispa-se e vamos. Foram. Nadaram primeiramente em linha recta e depois para baixo, muito fundo, até onde se acabou a luz do Sol, e a seguir a do mar, e as coisas eram unicamente visíveis pela sua própria luz. Passaram diante de uma povoação submergida, com homens e mulheres a cavalo, que giravam em torno do coreto da música. Era um dia esplêndido e havia flores de cores vivas nos terraços. - Afundou-se num domingo, por volta das onze da manhã - disse o senhor Herbert. - Deve ter sido um cataclismo. Tobías desviou-se em direcção da povoação, mas o senhor Herbert fez-lhe sinais para o seguir até ao fundo. - Ali há rosas - disse Tobías. - Quero que Clotilde as conheça. - Num outro dia voltas, com calma - disse o senhor Herbert. - Agora estou morto de fome. Descia como um polvo, com braçadas amplas e sigilosas. Tobías, que fazia esforços para não o perder de vista, pensou que aquela devia ser a maneira de nadar dos ricos. Pouco a pouco foram deixando o mar das catástrofes comuns e entraram no mar dos mortos. Havia tantos que Tobías não acreditou ter visto alguma vez tanta gente no mundo. Flutuavam, imóveis, de barriga para cima, a diferentes níveis, e todos tinham a expressão dos seres esquecidos. - São mortos muito antigos - disse o senhor Herbert. - Precisaram de séculos para conseguir este estado de repouso. Mais abaixo, em águas de mortos recentes, o senhor Herbert deteve-se. Tobías alcançou-o no momento em que passava em frente deles uma mulher muito jovem. Flutuava de costas, com os olhos abertos, perseguida por uma corrente de flores. O senhor Herbert pôs o indicador na boca e permaneceu assim até terem passado as últimas flores. - É a mulher mais formosa que vi na minha vida - disse. - É a esposa do velho Jacob - disse Tobías. - Parece cinquenta anos mais nova, mas é ela. Garanto. - Viajou muito - disse o senhor Herbert. - Leva atrás a flora de todos os mares do mundo. Chegaram ao fundo. O senhor Herbert deu várias voltas sobre um solo que parecia de ardósia lavrada. Tobías seguiu-o. Só quando se acostumou à penumbra da profundidade descobriu que ali estavam as tartarugas. Havia milhares, aplanadas no fundo e tão imóveis que pareciam petrificadas. - Estão vivas - disse o senhor Herbert -, mas dormem desde há milhões de anos. Virou uma. Com um impulso suave empurrou-a para cima e o animal adormecido escapou-se-lhe das mãos e continuou subindo à deriva. Tobías deixou-a passar. Então olhou para a superfície e viu todo o mar ao contrário. - Parece um sonho - disse. - Para o teu próprio bem - disse-lhe o senhor Herbert -, não contes isto a ninguém. Imagina a desordem que haveria no mundo se as pessoas soubessem destas coisas. Era quase meia-noite quando voltaram à aldeia. Despertaram Clotilde, para que aquecesse a água. O senhor Herbert degolou a tartaruga, mas foram precisos os três para perseguir e matar outra vez o coração, que saiu dando saltos pelo pátio, quando a esquartejaram. Comeram até não poder respirar. - Bem, Tobías - disse então o senhor Herbert -, é preciso enfrentar a realidade. - Certamente. - E a realidade - prosseguiu o senhor Herbert - é que esse cheiro não voltará nunca. - Voltará. - Não voltará - interveio Clotilde -, entre outras coisas porque não veio nunca. Foste tu quem convenceu toda a gente. - Tu própria o sentiste - disse Tobías. - Naquela noite eu estava meio atarantada - disse Clotilde. - Mas agora não tenho a certeza de nada que tenha que ver com este mar. - De maneira que me vou embora - disse o senhor Herbert. E acrescentou, dirigindo-se a ambos: - Também vocês deviam partir. Há muitas coisas a fazer no mundo em vez de ficarem a passar fome nesta aldeia. Partiu. Tobías permaneceu no pátio, contando as estrelas até ao horizonte e descobriu que havia mais três, desde o Dezembro anterior. Clotilde chamou-o para o quarto, mas ele não lhe deu atenção. - Vem para aqui, bruto - insistiu Clotilde. - Há séculos que não fazemos como os coelhinhos. Tobías esperou um bom bocado. Quando por fim entrou, ela tinha voltado a adormecer. Semiacordou-a, mas estava tão cansado que ambos confundiram as coisas e por fim só puderam fazer como as lombrigas. - Estás embobado - disse Clotilde, de mau humor. - Tenta pensar noutra coisa. - Estou a pensar noutra coisa. Ela quis saber em que era e ele decidiu contar-lhe, com a condição de que não o repetisse. Clotilde prometeu. - No fundo do mar - disse Tobías - há uma povoação de casinhas brancas com milhões de flores nos terraços. Clotilde levou as mãos à cabeça. - Ai, Tobías - exclamou. - Ai, Tobías, pelo amor de Deus, não vás começar agora, outra vez, com estas coisas. Tobías não voltou a falar. Chegou-se para a beira da cama e tentou dormir. Não o pôde fazer até ao amanhecer, quando mudou a brisa e os caranguejos o deixaram tranquilo.

O afogado mais formoso do mundo

 As primeiras crianças que viram o promontório obscuro e sigiloso que se aproximava pelo mar tiveram a ilusão de que era um barco inimigo. Depois viram que não levava bandeiras nem mastreação e pensaram que fosse uma baleia. Mas, quando ficou varado na praia, tiraram-lhe os matagais de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia em cima, e só então descobriram que era um afogado. Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e desenterrando-o na areia, quando alguém os viu por acaso e deu a voz de alarme na povoação. Os homens que com ele carregaram até à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto como um cavalo, e convenceram-se de que talvez tivesse estado demasiado tempo à deriva e a água se lhe tivesse metido dentro dos ossos. Quando o estenderam no chão viram que tinha sido muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a faculdade de continuar a crescer depois da morte estivesse na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que era o cadáver de um ser humano, porque a sua pele estava revestida de uma couraça de rémora e de lodo. Não precisaram de limpar-lhe a cara para saber que era um morto alheio. A povoação tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedras sem flores, dispersas no extremo de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com o temor de que o vento levasse as crianças, e os poucos mortos que lhes iam causando os anos tinham de atirá-los nos despenhadeiros. Mas o mar era manso e pródigo e todos os homens cabiam em sete botes. Por isso, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olharem-se uns aos outros para perceberem que estavam completos. Naquela noite não saíram para trabalhar no mar. Enquanto os homens averiguavam se não faltava alguém nas povoações vizinhas, as mulheres ficaram a tratar do afogado. Tiraram-lhe o lodo com tampões de esparto, desenredaram-lhe do cabelo os abrolhos submarinos e rasparam-lhe a rémora com ferros de escamar peixe. À medida que o faziam, notaram que a sua vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas e que as suas roupas estavam em farrapos, como se tivesse navegado por entre labirintos de corais. Notaram também que suportava a morte com altivez, pois não tinha o aspecto solitário dos outros afogados do mar, nem tão-pouco a catadura sórdida e indigente dos afogados fluviais. Mas só quando acabaram de o limpar tiveram consciência da espécie de homem que era, e então ficaram sem alento. Não somente era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o melhor armado que jamais tinham visto, como ainda, apesar de o estarem a ver, não lhes cabia na imaginação. Não encontram na povoação uma cama bastante grande para estendê-lo nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos nem as camisas dominicais dos mais corpulentos, nem os sapatos do mais bem plantado. Fascinadas pela sua desproporção e formosura, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cambraia de noiva, para que pudesse continuar a sua morte com dignidade. Enquanto cosiam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre dois alinhavos, parecia-lhes que o vento não tinha sido nunca tão tenaz, nem o Caribe tinha estado nunca tão ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham alguma coisa a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido na povoação, a sua casa teria tido as portas mais largas, o tecto mais alto e o sobrado mais firme e a armação da sua cama teria sido feita de cavernas mestras, com pernos de ferro, e a sua mulher teria sido a mais feliz. Pensavam que haveria tido tanta autoridade que teria tirado os peixes do mar apenas chamando-os pelos seus nomes, e teria posto tanto interesse no trabalho que teria feito brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e teria podido semear flores nos despenhadeiros. Compararam-no, em segredo, com os seus próprios homens, pensando que não seriam capazes de fazer em toda uma vida o que aquele era capaz de fazer numa noite, e terminaram por repudiá-los no fundo dos seus corações, como os seres mais esquálidos e mesquinhos da Terra. Andavam extraviadas por esses dédalos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha tinha contemplado o afogado com menos paixão do que compaixão, suspirou: - Tem cara de chamar-se Esteban. Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreenderem que não podia ter outro nome. As mais obstinadas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, depois de lhe vestirem a roupa, estendido entre flores e com uns sapatos de polimento, poderia chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O pano foi insuficiente, as calças, mal cortadas e pior cosidas, ficaram-lhe estreitas e as forças ocultas do seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia-noite tornaram-se mais finos os assobios do vento e o mar caiu na modorra da quarta-feira. O silêncio acabou com as últimas dúvidas: era Esteban. As mulheres que o tinham vestido, as que o tinham penteado, as que lhe tinham cortado as unhas e raspado a barba, não puderam reprimir um estremecimento de compaixão, quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido pelos pavimentos. Foi então que compreenderam quanto devia ter sido infeliz, com aquele corpo descomunal, se mesmo depois de morto o estorvava. Viram-no condenado, em vida, a passar de lado pelas portas, a magoar-se com as traves, a permanecer de pé durante as visitas, sem saber o que fazer com as suas delicadas e rosadas mãos de boi-marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e lhe suplicava, morta de medo, sente-se aqui Esteban, faça favor, e ele, encostado às paredes, sorrindo, não se preocupe, senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas escaldadas de tantas vezes repetir a mesma coisa em todas as visitas, não se preocupe, senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de desfazer a cadeira, e talvez sem nunca ter sabido que aqueles que lhe diziam não te vás embora Esteban, espera, pelo menos, até que sirva o café, eram os mesmos que depois cochichavam já saiu o bobo grande, que bom, já saiu o tonto formoso. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe taparam a cara com um lenço, para que a luz não o incomodasse, viram-no tão morto para sempre, tão parecido com os seus homens, que se lhes abriram as primeiras gretas de lágrimas no coração. Foi uma das mais jovens a que começou a soluçar. As outras, encorajando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos e quanto mais soluçavam mais desejos sentiam de chorar, porque o afogado se lhes ia tornando cada vez mais Esteban, até que o choraram tanto que foi o homem mais desamparado da Terra, o mais manso e o mais diligente, o pobre Esteban. De tal maneira que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era das povoações vizinhas, elas sentiram um espaço de júbilo, entre as lágrimas. - Bendito seja Deus! - suspiraram. - É nosso! Os homens convenceram-se de que aqueles espaventos não passavam de frivolidades de mulher. Cansados pelas tortuosas averiguações da noite, a única coisa que queriam era livrar-se de vez do estorvo do intruso antes que pegasse o sol valente daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas cangalhas com restos de traquetes e espichas e amarraramnas com sobrequilhas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até aos despenhadeiros. Quiseram acorrentar-lhe aos tornozelos uma âncora de barco mercante, para que fundeasse sem tropeços nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de nostalgia, de maneira que as más correntes não o fossem devolver à beira-mar, como tinha sucedido com outros corpos. Mas, quanto mais se apressavam, de mais coisas se lembravam as mulheres para perder o tempo. Andavam como galinhas assustadas, espiolhando amuletos de mar nos arcazes, umas estorvando aqui porque queriam pôr ao afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando ali para lhe porem uma pulseira de orientação, e, ao cabo de tanto tira-te daí mulher, põe-te onde não estorves, olha que quase me fazes cair sobre o defunto, aos homens subiram-lhes ao fígado as suspicácias e começaram a resmungar que qual seria o objectivo de tanta ferraria de altar-mor para um forasteiro, se por mais pregos e caldeirinhas que levasse com ele iam mastigá-lo os tubarões, mas elas continuavam remexendo as suas relíquias de pacotilha, levando e trazendo, tropeçando, enquanto se lhes ia em suspiros o que não se lhes ia em lágrimas, de tal maneira que os homens acabaram por disparatar que desde quando se viu semelhante alvoroço por um afogado à deriva, um afogado de ninguém, um fiambre de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou então o lenço da cara do cadáver, e também os homens ficaram sem respiração. Era Esteban. Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhes tivessem dito Sir Walter Raleigh, porventura, até eles se teriam impressionado com o seu acento de gringo, com o seu papagaio no ombro, com o seu arcabuz de matar canibais, mas Esteban só podia ser um no mundo, e ali estava estendido como um sável, sem botins, com umas calças de sete-mesinho e essas unhas cascalhosas que só podiam cortar-se à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço da cara para se perceber que estava envergonhado, que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado nem tão formoso, e, se tivesse sabido que aquilo ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, a sério, terme-ia amarrado eu mesmo uma âncora de galeão ao pescoço e teria tropeçado como quem não quer a coisa nos despenhadeiros, para não andar agora a estorvar com este morto de miércoles (Forma menos grosseira que mierda. Emprega-se por as primeiras letras serem iguais. (N. da T.)) como vocês dizem, para não incomodar ninguém com esta porcaria de fiambre que não tem nada que ver comigo. Havia tanta verdade na sua maneira de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as minuciosas noites do mar, temendo que as suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais duros, estremeceram até à medula com a sinceridade de Esteban. Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que podiam conceber-se para um afogado enjeitado. Algumas mulheres que tinham ido buscar flores vizinhas regressaram com outras que não acreditaram no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores e viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. À última hora custou-lhes devolvê-lo órfão às águas, e elegeram-lhe um pai e uma mãe entre os melhores, e outros fizeram-se-lhe irmãos, tios e primos, de maneira que através dele todos os habitantes da povoação acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o pranto à distância perderam a certeza do rumo, e soube-se de um que se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto discutiam pelo privilégio de levá-lo aos ombros tiveram a consciência, pela primeira vez, da desolação das suas ruas, da aridez dos seus pátios, da estreiteza dos seus sonhos, perante o esplendor e a formosura do afogado. Largaram-no sem âncora, para que voltasse, se quisesse e quando o quisesse, e todos retiveram a respiração durante a fracção de séculos que demorou a queda do corpo até ao abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para se aperceberem de que já não estavam completos, nem voltariam a está-lo jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir desse momento, que as suas casas iam ter as portas mais largas, os tectos mais altos, os pavimentos mais firmes, para que a recordação de Esteban pudesse andar por todos os lados sem tropeçar com as traves, e que ninguém se atrevesse a cochichar de futuro, já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o tonto formoso, porque eles iam pintar as fachadas das casas com cores alegres para eternizar a memória de Esteban e iam partir-se o espinhaço escavando mananciais nas pedras e semeando flores nos despenhadeiros, para que nos amanheceres dos anos vindouros os passageiros dos grandes navios acordassem sufocados por um cheiro de jardins no alto mar e o capitão tivesse de descer do seu castelo de popa, com o seu astrolábio, a sua estrela polar e a sua fileira de medalhas de guerra, e, apontando para o promontório de rosas no horizonte do Caribe, dissesse, em catorze idiomas, olhem para ali, de onde o vento é agora tão manso que fica a dormir debaixo das camas, ali, onde o Sol brilha tanto que os girassóis não sabem para que lado girar, sim, ali, é a povoação de Esteban.

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