quarta-feira, 21 de setembro de 2016

o sol é para todos 3

XXII AGORA ERA O JEM que estava chorando. Lágrimas de raiva corriam-lhe em sulcos pelo rosto enquanto tentávamos passar pela multidão exultante. — Não é justo — murmurava, até chegarmos à esquina da praça onde Atticus estava à nossa espera. O Atticus estava parado debaixo de um candeeiro como se nada tivesse acontecido: tinha o colete abotoado, o colarinho e a gravata estavam impecavelmente no local, a corrente do relógio brilhava e mostrava-se, de novo, impassível. — Não é justo, Atticus — disse o Jem. — Não, filho, não é justo. Estávamos indo para casa. A tia Alexandra estava à nossa espera. Estava de roupão e eu podia jurar que ela tinha o espartilho vestido. — Sinto muito, meu irmão — murmurou. Nunca tinha ouvido chamá-lo «irmão», por isso olhei para o Jem, mas reparei que ele não me ouvia. Olhava fixamente para o Atticus, depois para o chão e dei por mim pensando se ele achava que o Atticus era de alguma forma responsável pela condenação do Tom Robinson. — Tem certeza que ele está bem? — perguntou a tia, apontando para o Jem. — Vai ficar — disse o Atticus. — Foi um bocado forte para ele. O nosso pai soltou um suspiro. — Vou para a cama — disse ele. — Se não acordar de manhã, não me chamem. — Devo te dizer que, desde o início, não achei sensato deixá-los... — Mas esta é a terra deles, minha irmã — respondeu o Atticus. — Nós a fizemos assim e é melhor que aprendam a se adaptar. — Só que eles não têm necessidade de ir ao tribunal e se sujeitar a isso... — Faz tudo parte de Maycomb County, tal e qual como os chás de caridade. — Atticus... — os olhos da tia Alexandra demonstravam grande ansiedade. — É a última pessoa do mundo que eu esperaria ver se tornar amarga por causa disto. — Mas eu não estou amargurado, estou apenas cansado. Vou para a cama. — Atticus — interrompeu o Jem friamente. Ele chegou à porta e virou-se para trás. — O que foi, filho? — Como é que puderam fazer isto, como? — Não sei, só sei que o fizeram. Já o fizeram antes, voltaram a fazê-lo hoje e vão voltar a fazer isto e quando isso acontece... parece que só as crianças é que choram. Boanoite. Só que, de fato, as coisas parecem sempre bem melhor de manhã. O Atticus levantouse à sua assustadora hora habitual e já estava na sala atrás do The Mobile Register quando entramos. A cara matinal do Jem fez aquela pergunta que os seus lábios ensonados eram incapazes de fazer. — Ainda não é hora para nos preocuparmos — assegurou o Atticus, enquanto nos dirigíamos para a sala de jantar. — Ainda não terminamos. Podemos contar com um recurso... Meu Deus, Cal. O que é isto? O Atticus olhava com espanto para o seu prato de café da manhã. A Calpurnia disse: — Foi o pai do Tom Robinson que mandou esta galinha de manhãzinha. E eu a preparei. — Diga-lhe que me sinto muito honrado com a oferta... aposto que nem na Casa Branca não comem galinha no café da manhã. — E isto, o que é? — Brioches — respondeu a Calpurnia. — Foi a Estelle lá do hotel qu’ os mandou. Confuso, Atticus olhou para ela e ela disse: — O melhor é ir ’té à cozinha e ver co’os seus próprios olhos, Sr. Finch. Fomos atrás dele. A mesa da cozinha estava transbordando de tanta comida que chegava para alimentar toda a família: carne de porco em salmoura, tomates, feijão e até uvas. O Atticus sorriu ao encontrar um frasco de pés de porco em conserva. — Será que a tia nos deixa comer isto tudo na sala de jantar? A Calpurnia respondeu: — Quando cheguei de manhã, isto já ’tava nas escadas dos fundos. Eles... eles apreciaram bastante o qu’o senhor fez, Sr. Finch. Eles... eles não estão abusando, né? De repente, os olhos do Atticus se encheram de lágrimas. Por momentos, perdeu a fala. — Diga-lhes que estou muito, mas muito grato — disse ele. — E diga-lhes... digalhes para não voltarem a fazer isto. Estamos vivendo dias difíceis... Depois saiu da cozinha, entrou na sala de jantar e se desculpou perante a tia Alexandra. Pôs o chapéu e partiu para a cidade. Ouvimos os passos do Dill no átrio, por isso a Calpurnia optou por deixar na mesa do café da manhã do Atticus intacta. Entre uma dentada e outra, o Dill nos contou a reação da Srta. Rachel aos acontecimentos da noite passada: se um homem como o Atticus quisesse bater com a cabeça contra uma parede, isso era lá com ele. — Eu queria lhe contar tudo — resmungou o Dill, mordiscando uma perna de galinha — mas ela não estava nem dando bola. Disse qu’ tinha passado metade da noite acordada pensando por onde é qu’eu andava e que só não pôs o Xerife atrás de mim porque ele estava no tribunal. — Tem de deixar de sair sem dizer para onde vai, Dill — aconselhou o Jem. — Isso só faz com que ela fique ainda mais furiosa. O Dill suspirou pacientemente. — Mas eu lhe disse para onde ia até ficar roxinho... mas ela anda vendo coisas onde não existem. Vocês sabem que todas as manhãs aquela mulher bebe mais de meio litro de cerveja no café da manhã... eu sei que ela bebe dois copos cheios. Eu já isso, e outras mais. — Não fale assim, Dill — disse a tia Alexandra. — Não é linguagem própria para uma criança. Está sendo... cínico. — Não é cínico, Srta. Alexandra. É cínico dizer a verdade, hem? — Da maneira como diz, é. Os olhos do Jem brilharam na direção dela, mas depois virou-se para o Dill: — Vamos lá. Pode levar essa perna contigo. Quando chegamos à varanda da frente, a Srta. Stephanie Crawford estava entretida contando tudo a Srta. Maudie Atkinson e ao Sr. Avery. Olharam para nós e continuaram falando. Jem rosnou como um animal acossado. Eu só queria ter uma arma ali na mão. — Detesto que os adultos olhem para nós — disse o Dill. — Parece que fizemos alguma coisa de errado. O nariz da Srta. Stephanie tremia de tanta curiosidade. Ela queria saber quem é que tinha nos dado autorização para ir ao tribunal... ela não nos vira, mas toda a cidade já sabia que tínhamos ficado no balcão das pessoas de cor. Será que o Atticus tinha nos posto lá para...? Não ficava bem estarmos ao lado de todos aqueles...? Será que a Scout tinha percebido todas as...? E será que não estaríamos furiosos por assistir à derrota do nosso pai? — Cale-se, Stephanie — a dicção da Srta. Maudie era quase letal. — Tenho mais o que fazer do que passar a manhã toda aqui na varanda... Jem Finch, te chamei para saber se você e os teus amigos querem vir aqui comer bolo. Me levantei às cinco da manhã para o fazer, por isso é bom que diga que sim. Sem desculpas, Stephanie. — Bom-dia, Sr. Avery. Pousados sobre a mesa da cozinha da Srta. Maudie, estavam dois bolos pequenos e um grande. Onde deviam estar três bolos pequenos. Não era normal a Srta. Maudie se esquecer do Dill e acho que, pelas nossas caras, ela percebeu o lapso. Mas tudo ficou resolvido quando cortou o bolo em fatias e deu a mais fina ao Jem. Enquanto comíamos, percebemos que esta era a forma da Srta. Maudie nos fazer perceber que, para ela, nada tinha mudado. Sentou-se, silenciosa, na cadeira da cozinha nos observando. Subitamente, começou a falar: — Não se preocupe, Jem. Nada é tão mau como parece. Dentro de casa, quando a Srta. Maudie nos queria dizer alguma coisa mais demorada, colocava as mãos sobre os joelhos e ajeitava a saia. Decidimos esperar durante aquele ritual. — Só quero lhes dizer que, neste mundo, há homens que nascem só para fazerem as tarefas desagradáveis por nós. E o vosso pai é uma dessas pessoas. — Ah — disse o Jem —, entendi. Não me venha com esse «Ah, entendi» — replicou a Srta. Maudie, reconhecendo os ruídos fatalistas do Jem —, não tem idade suficiente para entender o que eu disse. O Jem olhava para a sua fatia meia comida. — É como ser uma lagarta dentro de um casulo, é isso — disse ele. — Como uma coisa adormecida num local quente. Sempre pensei que as pessoas de Maycomb eram as melhores pessoas do mundo, pelo menos era o que parecia. — Somos as pessoas mais seguras do mundo — disse a Srta. Maudie. — Raramente nos pedem para sermos bons cristãos, mas quando pedem, então temos pessoas como o Atticus que vão na nossa vez. O Jem sorriu, tristonho. — Quem me dera que todos pensassem assim. — Ficaria surpreendido se soubesse quantos de nós pensam desta forma. — Quem? — a voz do Jem subiu de tom. — Quem desta terra é que ajudou o Tom Robinson? Quem? — Em primeiro lugar, os seus amigos de cor e, em segundo, pessoas como nós. Pessoas como o Juiz Taylor. Pessoas como o Sr. Heck Tate para de comer e começa a pensar, Jem. Alguma vez pensou que a nomeação do Atticus, para defender aquele rapaz, não foi um mero acidente? Que o Juiz Taylor poderia ter as suas razões para o escolher? Era uma ideia plausível. As defesas oficiosas eram vulgarmente entregues a Maxwell Green, o mais novo elemento do tribunal de Maycomb, que precisava de ganhar experiência. O Maxwell Green é que deveria ter ficado com o caso de Tom Robinson. — Pensa nisso — pediu a Srta. Maudie. — Aquilo não foi um acidente. Ontem à noite, estava sentada na varanda, à espera. Esperei e esperei para vê-los descendo a rua e enquanto esperava, ia pensando... O Atticus Finch não vai ganhar, ele não pode ganhar, mas ele é o único homem das redondezas que pode fazer o júri demorar a tomar uma decisão, num caso como este. E pensei aqui comigo, é um passo... um passo de bebê, mas é um passo em frente. — É muito fácil falar assim... mas não há juízes nem advogados cristãos que possam compensar a imoralidade daqueles malditos jurados — murmurou o Jem. — Assim que eu crescer... — Isso é uma coisa que terá de ver com o teu pai — respondeu a Srta. Maudie. Descemos os degraus novinhos em folha da casa da Srta. Maudie para o Sol e demos com o Sr. Avery e a Srta. Stephanie Crawford ainda naquilo. Tinham andado alguns passos e estavam agora na porta da casa da Srta. Stephanie. A Srta. Rachel preparava-se para se juntar a eles. — Acho que, quando crescer, vou ser palhaço — afirmou o Dill. O Jem e eu paramos. — Sim, senhor. Um palhaço — disse ele. — Não sei fazer mais nada a não ser rir das pessoas, por isso vou para o circo passar a vida inteira rindo. — Entendeu tudo ao contrário, Dill — disse o Jem. — Os palhaços são tristes e as pessoas é que riem deles. — Bem, então eu vou ser um novo tipo de palhaço. Vou ficar no meio da pista rindo das pessoas. Olhem pr’ lá — apontou. — Todo mundo devia voar em vassouras. A tia Rachel já faz isso. A Srta. Stephanie e a Srta. Rachel nos acenavam, com gestos largos e exuberantes, que em nada contradiziam o comentário do Dill. — Oh não — suspirou o Jem. — Acho que pega mal fazer de conta que não as vimos. Algo de grave tinha acontecido. O Sr. Avery estava vermelho como uma pimenta devido a um ataque de espirros, e quase nos soprou para fora da calçada quando nos aproximamos. A Srta. Stephanie tremia de excitação e a Srta. Rachel agarrou o Dill pelo ombro. — Vai já para o quintal e não saia de lá — ordenou. — O perigo espreita. — ’Que ’tá acontecendo? — perguntei. — Ainda não sabe? Toda a cidade está comentando... Naquele instante, a tia Alexandra apareceu na porta e nos chamou, só que já era tarde demais. A Srta. Stephanie teve o prazer de nos contar tudo: naquela manhã, o Sr. Bob Ewell tinha parado o Atticus na esquina dos correios, cuspira na cara dele e jurara vingança, nem que isso demorasse a vida inteira. XXIII — SÓ GOSTARIA QUE O Bob Ewell não mascasse tabaco — foi tudo o que o Atticus disse sobre o assunto. No entanto, segundo a Srta. Stephanie Crawford, o Atticus estava saindo dos correios quando Sr. Ewell se aproximou dele, insultou-o, cuspiu nele e ameaçou matá-lo. A Srta. Stephanie (que, quando contou a história pela segunda vez, tinha estado lá e visto tudo... enquanto passava pelo Jitney Jungle, dizia ela)... A Srta. Stephanie disse que o Atticus nem sequer tinha pestanejado, apenas pegou no lenço, limpou a cara e ficou ali, enquanto o Sr. Ewell lhe chamava nomes que nada no mundo a faria repetir. O Sr. Ewell já era veterano de uma guerra obscura qualquer; além disso, a reação pacífica do Atticus fê-lo perguntar «É orgulhoso demais p’ra lutar, seu amigo de pretos d’uma figa?». A Srta. Stephanie disse que o Atticus respondeu «Não, sou é velho demais», meteu as mãos aos bolsos e se afastou. A Srta. Stephanie disse que tínhamos de reconhecer que, quando queria, Atticus Finch sabia ser muito parco em palavras. O Jem e eu não achamos o sucedido lá muito engraçado. — Afinal de contas — lembrei eu — ele foi o melhor atirador do condado. Ele bem que podia... — Sabe bem que ele não anda armado, Scout. Nem sequer tem uma... — disse o Jem. — Sabe bem qu’ naquela noite na prisão ele não tinha uma arma com ele. E ele me disse qu’andar armado era um convite p’ra levar um tiro. — Mas isto é diferente — respondi. — Podemos lhe dizer pra pedir uma emprestada. Assim fizemos e a resposta dele foi «Que absurdo». Dill achava que funcionaria melhor se apelássemos ao seu bom-senso: pois se o Sr. Ewell o matasse, nós morreríamos de fome e passaríamos a ser criados pela tia Alexandra. E nós sabíamos perfeitamente que a primeira coisa que ela faria, antes mesmo de o Atticus ter tempo de esfriar na cova, era despedir a Calpurnia. O Jem disse que, seria melhor se eu chorasse e fingisse ter um ataque, por ser a mais nova e ser uma menina. Mas também não resultou. Porém, quando finalmente percebeu que andávamos cabisbaixos pela vizinhança, não comíamos, nem nos interessávamos pelas atividades habituais, o Atticus descobriu que estávamos profundamente assustados. Uma noite estava ele e o Jem com uma revista de futebol nova, mas quando este a folheou e pôs de lado, perguntou: — O que é que está te preocupando, filho? O Jem foi direito ao assunto. — Sr. Ewell. — O que é que aconteceu? — Não aconteceu nada. Temos medo por ’ocê e achamos que deve fazer alguma coisa em relação a ele. O Atticus sorriu secamente. — Fazer o quê? Aplicar-lhe uma medida de caução. — Quando um homem diz qu’ vai dar cabo de ’ocê, parece estar disposto a isso. — Ele estava disposto a isso quando o disse — justificou o Atticus. — Jem, vê se consegue se colocar no lugar de Bob Ewell. Naquele tribunal eu destruí o que restava da sua credibilidade, se é que ele ainda tinha alguma. O homem tinha de se vingar de alguma forma. Este tipo de gente é assim mesmo. Se o fato de ter cuspido na minha cara e ter me ameaçado de morte salvou Mayella de mais uma surra, então não me importo nada de repetir. Ele tinha de se vingar em alguém e prefiro que se vingue em mim do que naquelas crianças. Compreende agora? O Jem acenou que sim com a cabeça. A tia Alexandra entrou na sala quando o Atticus dizia: — Não temos nada a temer do Bob Ewell. Naquela manhã, ele já colocou tudo o que queria aqui para fora. — Eu não estaria tão certa disso, Atticus — disse ela. — Aquela gente é capaz de tudo para se vingar. Sei bem como são. — O que é que o Ewell poderia me fazer, irmã? — Algo pelas costas — disse a tia Alexandra. — Pode contar com isso. — Ninguém tem muitas maneiras de fazer algo escondido em Maycomb — respondeu o Atticus. Aquilo fez com que perdêssemos o medo. O Verão estava terminando e decidimos aproveitá-lo ao máximo. O Atticus tinha assegurado que nada iria acontecer ao Tom Robinson até o tribunal superior rever o caso e que o Tom tinha boas hipóteses de ser libertado, ou, pelo menos, de ser novamente julgado. Ele estava no Campo de Trabalhos Forçados de Enfield, a cento e dez quilômetros dali, em Chester County. Perguntei ao Atticus se a mulher e os filhos podiam visitá-lo, mas o Atticus disse que não. — O que é que vai lhe acontecer — perguntei certa noite — se ele perder o recurso? — Vai para a cadeira elétrica — respondeu o Atticus — a menos que o Governador decida alterar a sua pena. Ainda não é o momento para preocupações, Scout. Temos boas chances. O Jem estava esticado no sofá lendo a Popular Mechanics. Levantou os olhos. — Não é justo. Mesmo que fosse culpado, ele não matou ninguém. Ele não tirou a vida a ninguém. — Sabe bem que o estrupo é um crime capital no estado do Alabama — disse o Atticus. — Sei, sim senhor, mas o júri não era obrigado a condená-lo à morte... podiam terlhe dado vinte anos, se quisessem. — Poderia — disse o Atticus. — Mas o Tom Robinson é um homem de cor, Jem. Não há um único júri nesta parte do mundo que fosse capaz de dizer «Achamos que é culpado, mas não muito» face a uma acusação destas. Ou era absolvição direta ou nada. O Jem abanava a cabeça. — Eu sei que não é justo, mas não consigo perceber o que está errado... talvez o estrupo não devia ser um crime capital... O Atticus pousou o jornal ao lado da sua cadeira. Depois disse que não tinha nada contra as penas previstas para o crime de violação, mas tinha sérias reservas quando a acusação pedia, ou o júri condenava, a pena de morte mediante provas meramente circunstanciais. Em seguida olhou para mim, viu que eu estava ouvindo e traduziu tudo em detalhes. — O que eu quero dizer é que, antes de um homem ser condenado à pena de morte, deveria haver uma ou duas testemunhas oculares. Existir alguém que possa dizer «Eu estava lá e o vi apertar o gatilho». — Mas houve... houve muita gente enforcada só com base em provas circunstanciais — retorquiu o Jem. — Eu sei e, provavelmente, muitos merecidamente... mas na falta de testemunhas oculares a dúvida persiste sempre, às vezes apenas a sombra de uma dúvida. A lei fala de «dúvida razoável», mas acho que o réu tem o direito à sombra de uma dúvida. Há sempre a possibilidade, por muito improvável que seja, de ele estar inocente. — Então fica tudo nas mãos do júri. Talvez devíamos era nos livrar dos jurados — teimava o Jem. O Atticus tentou disfarçar o sorriso, mas não conseguiu. — Está sendo duro demais conosco, filho. Talvez haja uma forma melhor. Mudar a lei. Mudá-la para que só os juízes possam fixar as penas em casos de crime capital. — Então vá a Montgomery e mude a lei. — Ficaria espantado se soubesse como isso é difícil. Eu sei que não vou viver o tempo suficiente para ver a lei mudar e mesmo que você viva o suficiente para ver isso, nessa altura já será um homem velho. Para Jem, aquele argumento não bastava. — Não, senhor. Eles deviam se livrar dos júris. Ele não era culpado e eles disseram que era. — Filho, se você, e mais outros onze rapazes como você, fizessem parte daquele júri, o Tom seria um homem livre — disse o Atticus. — Até agora, ao longo da tua vida, nada interferiu com o teu processo de raciocínio. O júri que condenou o Tom era composto por doze homens razoáveis, mas houve algo que se interpôs entre eles e a razão. E houve a mesma coisa naquela noite em frente à prisão. Quando eles foram embora, não foi por serem homens razoáveis, mas sim porque nós estávamos lá. No mundo em que vivemos existem coisas que fazem com que os homens percam a cabeça... por muito que tentassem, aquela gente jamais conseguiria ser justa. Nos tribunais, quando a palavra de um branco vai contra a palavra de um homem negro, a vitória pertence sempre ao branco. Não é bonito, mas a vida é mesmo assim. — Isso não faz com que seja justo — afirmou o Jem, com firmeza. Bateu devagar com o punho sobre o joelho. — Não se pode condenar um homem com provas destas... não se pode. — Não se pode, mas eles puderam e fizeram. Quanto mais velho for, melhor verá tudo isto. O único local onde um homem deve ser tratado de forma justa é dentro de um tribunal, seja ele de que cor for, mas os homens acabam sempre por levar os seus ressentimentos para as cadeiras do júri. À medida que for crescendo, e durante todos os dias da tua vida, verá sempre homens brancos enganando homens negros, mas deixe eu te dizer uma coisa que nunca mais vai se esquecer... sempre que um homem branco fizer algo a um homem negro, independentemente da sua natureza, posição, riqueza ou linhagem familiar, esse homem branco nada mais é senão lixo. O Atticus estava falando tão baixo que aquela última palavra ressoou nos nossos ouvidos. Olhei para cima e o seu rosto transparecia veemência. — Para mim não há nada mais repugnante do que um branco de quinta categoria tirando partido da ignorância de um negro. E não se iludam... Tudo está se acumulando e, um dia, ainda vamos pagar essa fatura. Só espero que não seja enquanto forem crianças. O Jem coçava a cabeça. De repente, arregalou os olhos. — Atticus — disse. — Por que é que pessoas como nós e a Srta. Maudie nunca se sentam nas cadeiras do júri? Nunca se vê ninguém de Maycomb no júri... vêm todos lá dos bosques. O Atticus recostou-se na sua cadeira de balanço. Por alguma razão, ele parecia bastante satisfeito com o Jem. — Estava mesmo pensando quando é que ia lembrar disso — comentou. — Há muitas razões. Primeiro, a Srta. Maudie não pode fazer parte de um júri porque é mulher... — Quer dizer que as mulheres do Alabama não podem...? — perguntei, indignada. — É isso mesmo. Acho que é para proteger as nossas frágeis senhoras de casos sórdidos como o do Tom. Além disso — e o Atticus sorriu — duvido que conseguíssemos levar o julgamento até ao fim... as mulheres passariam a vida nos interrompendo para fazer perguntas. Rimos. Seria, de fato, impressionante ver Srta. Maudie no júri. Pensei na velha Sra. Dubose, sentada na sua cadeira de rodas... «Pare de martelar, John Taylor. Eu quero é fazer uma perguntinha a este homem». Os nossos antepassados é que deviam ter razão. O Atticus estava dizendo: — Com pessoas como nós... essa é a nossa quota da fatura. Normalmente temos o júri que merecemos. Em primeiro lugar, os firmes e decididos cidadãos de Maycomb não estão interessados. E em segundo lugar, têm medo. Depois, estão... — Medo? Porquê? — perguntou o Jem. — Bem, e se... digamos que o Sr. Link Deas tivesse de decidir o montante da indenização a pagar a, digamos, para a Srta. Maudie, quando esta foi atropelada pelo carro da Srta. Rachel. O Link não iria gostar da ideia de perder qualquer uma das clientes da loja, né? Por isso, ele diz ao Juiz Taylor que não pode ser um dos jurados porque não tem ninguém para tomar conta da loja na sua ausência. Daí o Juiz Taylor o dispensa. E às vezes já o tem dispensado mesmo a contragosto. — O qu’o fez pensar qu’qualquer uma delas podia deixar de fazer negócio co’ele? — perguntei. — A Srta. Rachel deixaria, quase de certeza, mas a Srta. Maudie não. Mas o voto de um jurado é secreto, Atticus. — Disse o Jem. O nosso pai encolheu os ombros. — Ainda tem muito caminho a percorrer, filho. Supostamente o voto é secreto. Mas fazer parte de um júri obriga um homem a pensar e decidir por si próprio sobre alguma coisa. E os homens não gostam de fazer isso. Às vezes é desagradável. — O júri do Tom decidiu bem rápido — murmurou o Jem. Os dedos do Atticus procuraram o seu relógio de bolso. — Não, não decidiu. — Disse ele, mais para si próprio do que para nós. — Foi isso que me fez pensar, bem, que este podia ser o início de qualquer coisa nova. Aquele júri demorou umas horas a decidir. Talvez tenha sido um veredito inevitável, mas normalmente demora só uns minutos. E todo esse tempo... — parou e olhou para nós. — Bom, talvez gostassem de saber que houve um sujeito que se opôs consideravelmente... no início exigiu uma absolvição direta. — Quem? — o Jem mostrava-se abismado. Os olhos do Atticus brilharam. — Eu não devia dizer isto, mas só digo uma coisa. Era um dos seus amigos de Old Sarum... — Um dos Cunninghams? — gritou o Jem. — Um dos... não reconheci nenhum deles... ’tá brincando. Olhou para o Atticus pelo canto do olho. — Um dos seus parentes. Não o dispensei porque tinha um palpite... Um palpite. Podia dispensá-lo, mas não o fiz. — Meu deus — disse o Jem, com reverência. — Tão depressa o queriam matar como logo a seguir já estavam tentando libertá-lo... Por mais que viva, nunca vou entender aquela gente. O Atticus disse que era preciso conhecê-los para os compreender. Ele disse que os Cunninghams nunca tinham tirado nem recebido nada de ninguém desde que tinham imigrado para o Novo Mundo. Também disse que, uma vez conquistado o seu respeito lutariam por nós com unhas e dentes. O Atticus confessou que tinha um pressentimento, não mais que uma suspeita, que, quando saíram da prisão naquela noite, tinham ganho um respeito considerável pelos Finchs. Além disso, disse ele, era preciso juntar um raio, um trovão e mais outro Cunningham para os fazer mudar de ideia. — Se ao menos tivéssemos dois deles no meio do júri, tínhamos conseguido bloquear a decisão dos jurados. O Jem disse lentamente: — Quer dizer que incluiu propositadamente no júri um homem que tinha tentado te matar na noite anterior? Como pode correr esse risco, Atticus? Como? — Quando analisei a opção, o risco era pequeno. Não há muita diferença entre um homem que sabe que vai condenar e outro homem que também sabe que vai condenar, né? Mas há uma pequena diferença entre um homem que sabe que vai condenar e outro homem que está um pouco confuso, não há? Ele era a minha única dúvida na lista toda. — Que parentesco tinha esse homem com o Sr. Walter Cunningham? — perguntei. O Atticus levantou-se, espreguiçou-se e bocejou. Ainda não estava na hora de irmos para a cama, mas sabíamos que ele queria uma oportunidade para ler o seu jornal. Pegou nele, dobrou-o e deu-me uma palmadinha na cabeça. — Deixa-me ver — murmurou para si mesmo. — Já sei. Duas vezes primo em primeiro grau. — E como é qu’isso pode ser? — Duas irmãs casaram com dois irmãos. E não lhes conto mais nada... descubram vocês o resto. Torturei-me pensando e deduzi que se eu casasse com o Jem e o Dill tivesse uma irmã e casasse com ela, os nossos filhos seriam duas vezes primos em primeiro grau. — Deus me livre, Jem — disse, quando o Atticus saiu — que gente mais estranha. Ouviu isto, tia? A tia Alexandra estava bordando um tapete. Embora não estivesse de olho em nós, sempre lhe chegava alguma coisa ao ouvido. Estava sentada na sua cadeira, com o cesto de trabalho ao lado e o tapete no colo. Nunca consegui entender muito bem por que é que as senhoras bordavam tapetes de lã em noites tão quentes. — Ouvi — respondeu ela. Lembrei-me daquela ocasião, distante e desastrosa, quando corri em defesa do jovem Walter Cunningham. Agora estava feliz por tê-lo feito. — Assim que começar a escola, vou convidar o Walter para vir almoçar aqui em casa — planejei, esquecendo a minha resolução privada de o encher de pancada da próxima vez que o visse. — Agora também pode ficar às vezes aqui em casa depois da escola. O Atticus podia levá-lo até Old Sarum de carro. Talvez até podia dormir aqui de vez em quando, não acha, Jem? — Vamos ver — disse a tia Alexandra, uma declaração que, vindo dela, soava sempre a ameaça e nunca a uma promessa. Surpreendida, virei-me para ela. — Mas por que não, tia? Eles são boa gente. Ela olhou para mim por cima dos seus óculos de costura. — Jean Louise, não tenho dúvidas de que são boa gente. Mas eles não são o nosso gênero de pessoas. — Ela quer dizer que são uns rústicos, Scout. — O que é um rústico? — Oh, camponês. Gostam de tocar rabecas e coisas assim. — Eu também... — Não seja tonta, Jean Louise — disse a tia Alexandra. — Podíamos esfregar o Walter Cunningham até brilhar, meter-lhe uns sapatos e um terno novo, mas ele nunca seria como o Jem. Além disso, aquela família tem uma longa história de bebida. As moças Finch não se interessam por aquele tipo de gente. — Tia — disse o Jem —, ela ainda nem tem nove anos. — Mais vale aprender enquanto é tempo. A tia Alexandra tinha dito a sua ordem. De repente, me recordei da última vez em que ela bateu o pé no chão. Nunca soube porquê. Foi numa altura em que eu estava absorvida nos meus planos para visitar a casa da Calpurnia... estava bastante curiosa, interessada; queria ser sua «convidada», ver como vivia e quem eram os seus amigos. Era como se eu quisesse ver o outro lado da Lua. Desta vez a tática fora diferente, mas o objetivo da tia Alexandra era o mesmo. Provavelmente tinha sido por isso que ela tinha vindo viver conosco... para nos ajudar a escolher os amigos. Estava decidida a impedi-la custasse o que custasse. — Mas se eles são boas pessoas, por que é que não posso ser simpática para o Walter? — Eu não disse para não ser simpática com ele. Deve ser simpática e educada com ele. Deve ser gentil com todo mundo, querida. Mas não tem de o convidar aqui para casa. — E se ele fosse nosso parente, tia? — O fato é que ele não é nosso parente, mas se fosse, a minha resposta era a mesma. — Tia — começou o Jem —, o Atticus diz qu’a gente pode escolher os nossos amigos, mas qu’ não pode escolher a nossa família. E que depois continuam a ser nossos parentes quer queiramos quer não, e qu’ depois parecemos todos uns tolos se não os aceitarmos. — É mesmo típico do teu pai — disse a tia Alexandra — mas continuo dizendo que a Jean Louise não pode convidar o Walter Cunningham para dentro desta casa. Mesmo que ele fosse duas vezes primo em primeiro grau, há muito afastado do seio da família, continuaria a não ser recebido nesta casa, a menos que viesse tratar de assuntos profissionais com o Atticus. E o assunto está encerrado. Ela já tinha dito que não, mas desta vez teria de explicar os motivos. — Mas eu quero brincar com o Walter, tia. Por que é que não posso? Ela tirou os óculos e olhou fixamente para mim. — Sabe porquê, sabe? Porque... ele... é... lixo, e é por isso que não pode brincar com ele. Não quero que ande com ele. Pode aprende os seus hábitos e sabe Deus que mais. Já dá demasiadas dores de cabeça ao teu pai. Não sei o que me passou pela cabeça, mas o Jem impediu-me de agir. Agarrou-me pelos ombros, me abraçou e me levou até ao quarto, soluçando furiosamente. O Atticus nos ouviu e meteu a cabeça por entre a porta. — Está tudo bem, pai — disse o Jem em voz baixa. — Não é nada. O Atticus foi-se embora. — Toma um caramelo, Scout — Jem mexeu no bolso e tirou um Tootsie Roll. Demorei uns minutos dando uma forma confortável ao caramelo. O Jem estava arrumando umas coisas na cômoda. O cabelo dele estava todo espetado na nuca e caía sobre a testa. Será que algum dia iria se parecer com um homem? Se rapasse o cabelo, este talvez voltasse a crescer em condições. As sobrancelhas estavam ficando mais grossas e reparei que o seu corpo estava ficando mais elegante. Além disso, estava ficando mais alto. Quando olhou para mim, deve ter pensado que eu ia voltar a chorar, pois disse: — Vou te mostrar uma coisa se prometer não contar a ninguém. — O quê? — perguntei Desabotoou a camisa, sorrindo envergonhado. — Então? — voltei a perguntar. — Então, não consegue ver? — Não. — Bem, é um pelo. — Aonde? — Aqui. Aqui mesmo. Uma vez que ele me tinha apoiado tanto, disse que era muito interessante, embora não tivesse visto nada. — Que legal, Jem. — Também tenho debaixo dos braços — prosseguiu. — p’oxmo ano vou p’ro futebol. Scout, não deixe qu’a tia t’enerve. Parecia que tinha sido ontem que ele me dissera para não incomodar a tia. — Sabe que ela não está habituada a moças — explicou o Jem — muito menos a moças como ’ocê. Ela está tentando fazer de ti uma senhora. Não pode aprender a bordar ou coisa assim? — Nem pensar. Ela não gosta de mim. É tão simples quanto isso e eu não me importo mesmo nada. Só fiquei assim p’que ela chamou o Walter Cunningham de lixo, Jem. Não foi por ter dito qu’ eu só dava dores de cabeça ao Atticus. Já esclareci isso tudo co’ ele e ele disse qu’ não, qu’eu até não lhe dou grandes dores de cabeça. Melhor dizendo, que eu era uma dor de cabeça qu’ele conseguia resolver e depois disse p’ra eu não me preocupar mais co’ isso. Na, foi pelo Walter... aquele menino não é lixo, Jem. Ele não é como os Ewells. O Jem descalçou os sapatos e começou a balançar os pés em cima da cama. Encostouse na almofada e ligou a luz de leitura. — Sabe que mais, Scout? Eu agora percebi tudo. Tenho pensado muito nisso e já percebi tudo. No mundo há quatro tipos de pessoas. Há o tipo de pessoas normais como nós e os nossos vizinhos, o tipo de pessoas dos bosques, como os Cunninghams, o tipo de pessoas que vivem em lixeiras, como os Ewells e os negros. — Então e os chineses e os índios Cajun, p’ra lá em Baldwin County? — Eu quero dizer que em Maycomb. O que acontece é que as pessoas como nós não gostam dos Cunninghams, os Cunninghams não gostam dos Ewells e os Ewells odeiam e desprezam as pessoas de cor. Disse ao Jem que, se era assim, então por que é que o júri do Tom, constituído por pessoas como os Cunninghams, não tinha absolvido o Tom em vez dos Ewells? O Jem repeliu a minha pergunta como se fosse uma infantilidade. — Sabe — disse ele —, já vi o Atticus batendo o pé ao som de violino no rádio e, mais do que qualquer homem que conheço, ele também gosta do seu licorzinho caseiro... — E isso faz com qu’a gente seja igual aos Cunninghams — disse eu. — Não ’tô entendo por que é que a tia... — Não, m’ deixa acabar... ele faz, mas, de alguma maneira, continuamos a ser diferentes. O Atticus me disse uma vez que o motivo pelo qual a tia tem tanto orgulho na família é porque tudo o que temos é nome e antecedentes, só que não temos um tostão. — Bem, Jem, eu não sei... O Atticus disse-me uma vez que esta história de família antiga era uma tolice sem tamanho, porque a família de todos é tão velha como a de qualquer um. Eu perguntei se isso incluía os negros e os ingleses e ele disse que sim. — Nome e antecedentes não significa ter uma família antiga — contrapôs o Jem. — Acho qu’ quer dizer há quanto tempo é qu’a família sabe ler e escrever. Scout, pensei muito nisto e esta é a única razão que encontrei. Em alguma parte no passado, quando os Finchs estavam no Egito, um deles deve ter aprendido um hieróglifo ou dois e ensinouos ao seu filho — o Jem desatou a rir. — Imagina ocê... a tia toda orgulhosa do seu tetravô saber ler e escrever... as senhoras escolhem umas coisas engraçadas p’ra se orgulharem. — Bem, fico feliz por ele saber, ou quem quer que tenha ensinado o Atticus a ler. Abem dizer, se o Atticus não soubesse ler, então é que estávamos metidos numa grande enrascada. Acho que os antecedentes não são isso, Jem. — Então como é que se explica o fato de os Cunningham serem diferentes? O Sr. Walter mal sabe assinar o nome. Isso eu já vi. Nós sabemos ler e escrever há mais tempo do que eles. — Não, todos temos d’ aprender, ninguém nasce sabendo. Aquele Walter é bem esperto, reprova muitas vezes p’rque tem de ficar em casa pra ajudar o pai. Não há nada de errado com ele. Não, Jem. Acho que só há um tipo de gente. Pessoas. O Jem virou-se e bateu na almofada. Quando se recostou apresentava uma expressão sombria. Tinha entrado numa das suas depressões habituais e eu fiquei logo alerta. Uniu as sobrancelhas e a boca tornou-se numa linha fina. Durante algum tempo manteve-se em silêncio. — Eu também pensava assim — disse, por fim — quando tinha a tua idade. Se só existe um tipo de pessoas, por que é que não se dão bem? E se todos somos iguais, por que é que se esforçam tanto para se odiarem mutuamente? Scout, acho que estou começando a perceber uma coisa. Estou começando a perceber por que é que o Boo Radley se manteve fechado naquela casa durante todo este tempo... é porque ele quer estar lá dentro.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

o sol é para todos 2

MAS EIS QUE ALGUÉM gritava de novo. — Mayella Violet Ewell... Uma mocinha dirigiu-se para o banco das testemunhas. Quando levantou a mão e jurou que o testemunho que iria prestar seria verdade, toda verdade, nada mais que verdade e que Deus a ajudasse, pareceu ter um aspecto frágil, mas quando se sentou no banco das testemunhas, virada para nós, transformou-se naquilo que realmente era, isto é, uma moça entroncada habituada a trabalhos pesados. Em Maycomb era fácil perceber quando alguém tomava banho regularmente ou uma vez por ano: o Sr. Ewell tinha um ar literalmente escaldado; como se uma boa ensaboadela o tivesse privado das várias camadas de lixo que lhe protegiam a pele, deixando-a agora extremamente sensível aos elementos. Pelo contrário, a Mayella parecia esforçar-se por estar limpa e me lembrei, então, da fila de gerânios vermelhos que havia no quintal dos Ewells. O Sr. Gilmer pediu a Mayella para contar, com as suas próprias palavras, o que tinha acontecido na noite de vinte e um de Novembro, com as suas próprias palavras, por favor. Mayella sentou-se em silêncio. — Onde estava naquele fim de tarde? — começou o Sr. Gilmer pacientemente. — No alpendre. — Qual deles? — Só há um, o da frente. — E o que estava fazendo no alpendre? — Nada. — Conte apenas aquilo que aconteceu. É capaz, não é? — perguntou o Juiz Taylor. Mayella olhou para ele e desatou a chorar. Cobriu a boca com as mãos e começou aos soluços. O Juiz Taylor deixou-a chorar durante um tempo e depois disse: — Pronto, já chega. Desde que diga verdade não há motivos para ter medo destas pessoas. Eu sei que tudo isto é estranho para você, mas não precisa de ter vergonha nem medo. De que é que tem medo? Mayella disse algo por entre as mãos. — O que disse? — perguntou o juiz. — Dele — choramingou, apontando para o Atticus. — Do Sr. Finch? Ela assentiu vigorosamente, dizendo: — Eu num quero qu’ele me trate c’umo tratou o pai, tentando fazer ele passar pro canhoto... O Juiz Taylor coçou o seu espesso cabelo branco. Era óbvio que nunca tinha se deparado com um problema daquele tipo. — Quantos anos tem? — perguntou. — Dezenove e meio — respondeu Mayella. O Juiz Taylor pigarreou e tentou, sem grande êxito, falar de forma a acalmá-la. — O Sr. Finch não quer assustar você — resmungou —, e mesmo que ele queira, eu estou aqui para o impedir. É essa uma das razões por que estou aqui sentado. E a menina já é uma moça crescida, por isso sente-se direita e diga-me... diga-nos o que lhe aconteceu. É capaz disso, não é? Sussurrei para o Jem: — Será que ela bate bem da bola? O Jem olhava fixamente para o banco das testemunhas. — Olha, não sei — disse ele. — Ela tem inteligência suficiente para fazer com que o juiz tenha pena dela, mas pode ser apenas... Oh, sei lá. Mais calma, Mayella lançou um olhar apavorado para o Atticus e respondeu ao Sr. Gilmer. — Bem, eu ’tava lá no alpendre... e depois ele chegou e, sabe, havia um roupeiro velho no pátio que o pai trouxe p’ra fazer lenha... o pai disse p’ra eu o cortar enquanto ele ia pro bosque, mas como me sentia um bocado fraca e ele apareceu... — Quem é esse «ele»? Mayella apontou para o Tom Robinson. — Tenho de lhe pedir para ser mais específica — disse o Sr. Gilmer. — O escrivão não consegue transcrever muito bem os gestos. — Aquele lá — disse ela. — O Robinson. — E depois o que aconteceu? — Bem, eu depois lhe disse, vem aqui preto e corta este roupeiro p’ra mim, qu’eu depois tenh’uma moeda p’ra ti. Aquilo era canja p’ra ele, ó se era. ’Tão vai daí ele entrou no pátio e eu entrei em casa p’ra buscar a moeda e me virei e antes de pegar ela ele já ’tava em cima de mim. Acho qu’ veio ’trás de mim, foi o qu’ foi. Despois, agarrou-me p’lo pescoço, disse muntas asneiras... e eu lutei e gritei, mas ele me prendeu p’lo pescoço. E despois bateu-me uma vez e mais outra... O Sr. Gilmer esperou que Mayella se recompusesse: ela aproveitou para torcer um lenço que trazia até se tornar numa corda encharcada em suor; quando voltou a abrir para limpar a cara, o lenço já era um monte de rugas nascidas das suas mãos quentes. Depois, aguardou que o Sr. Gilmer fizesse outra pergunta, mas como ele não perguntava nada, disse: — ...me ’tirou pr’o chão e me ’pretou e abusou d’mim. — Gritou? — perguntou o Sr. Gilmer. — Gritou e tentou se defender? — Acho qu’ sim, gritei o mais qu’ podia, bem, dei pontapés e gritei o mais qu’ podia. — E o que aconteceu depois? — Num m’lembro munto bem, mas a seguir só m’lembro do pai ’tar no quarto em cima de mim a berrar quem me tinha feit’ aquilo, quem me tinha feit’aquilo? Despois acho que desmaiei e só m’lembro do Sr. Tate me levantar do chão e me levar ’té ao balde d’agua. Parecia que o recital de Mayella lhe tinha dado confiança, só que ela não era feita da mesma cepa do pai: tinha um olhar furtivo, tal como um gato observa a sua presa, olhos fixos no alvo, abanando a cauda. — Disse que o tinha afastado com toda a força que tinha? Lutou com garras e dentes, foi? — perguntou o Sr. Gilmer. — Claro que sim — Mayella respondeu como o seu pai. — Tem a certeza que ele abusou totalmente de você? O rosto de Mayella se contorceu outra vez e tive medo que ela voltasse a chorar. Em vez disso, disse: — Ele fez aquilo qu’ queria e tudo mais. O Sr. Gilmer fez notar o dia quente que estava, ao limpar a cara com a mão. — Por enquanto é tudo — disse, com amabilidade — mas não saia daí. Penso que o Sr. Finch, mau como é, lhe quer fazer umas perguntinhas. — O Estado não deve influenciar a testemunha contra o advogado de defesa — murmurou o Juiz Taylor —, pelo menos, não neste momento. O Atticus se levantou sorrindo, mas em vez de se dirigir ao banco das testemunhas, abriu o casaco, enfiou o polegar dentro do colete e começou a se dirigir calmamente até à janela. Olhou lá para fora, não parecendo estar especialmente interessado no que via, virou-se e encaminhou-se para o banco das testemunhas. Devido aos longos anos de experiência, percebi logo que estava tentando tomar uma decisão. — Srta. Mayella — disse, sorrindo — longe de mim tentar assustá-la, pelo menos por agora. Vamos nos conhecer um pouco melhor, está bem? Que idade tem? — Já disse qu’ tinha dezenove, disse ali p’ro juiz lá — Mayella parecia ressentida. — Sim disse, tem toda a razão, menina. Só que vai ter de ter paciência comigo, Srta. Mayella. Já estou ficando velho e não me lembro das coisas tão bem como era costume. Possivelmente até vou perguntar coisas às quais já respondeu, mas vai me responder, não vai? Muito bem. Não vi nada na expressão de Mayella que comprovasse a afirmação do Atticus quanto ao fato de ela estar disposta a colaborar. Ela o olhava furiosa. — Num vou responder nada se continuar a gozar c’migo — disse ela. — Desculpe? — perguntou Atticus assustado. — Se continuar a f’zer troça d’mim, ponto final. O Juiz Taylor disse: — Sr. Finch não está fazendo troça de ti. Mas o que é que lhe deu? Mayella encarou o Atticus com os olhos semicerrados, mas disse ao juiz, cabisbaixa: — S’ ele continuar a me chamar m’nina Srta. Mayella. Num tenho d’aturar estas coisas, num sou ’brigada a isso. O Atticus continuou o seu passeio até à janela e deixou que fosse o Juiz Taylor a resolver esta questão. O Juiz Taylor não era o tipo de pessoa que evocasse piedade, mas senti alguma coisa enquanto ele tentava explicar. — É apenas a maneira de ser do Sr. Finch — explicou à Mayella. — Há anos que tratamos de casos neste tribunal e o Sr. Finch foi sempre cortês com todas as pessoas. Ele não estava tentando fazer pouco de ti, só estava tentando ser educado. É apenas a sua maneira de ser. Posto isto, o juiz recostou-se na cadeira. — Atticus, vamos prosseguir e que conste no processo que a testemunha não foi insultada, muito pelo contrário. Imaginei se alguma vez na vida ela teria sido tratada por «menina» ou «Srta. Mayella». Provavelmente não, pois verdade é que ela se tinha sentido insultada por uma cortesia de rotina. Como é que seria a sua vida? Muito em breve iria descobrir. — Disse que tinha dezenove anos — retomou o Atticus. — Quantos irmãos e irmãs tem? Ele voltou da janela para junto do banco. — Set’ — respondeu e perguntei-me se todos eles seriam como aquela criatura que eu tinha conhecido no meu primeiro dia de aulas. — É a primogênita? A irmã mais velha? — Sim. — Há quanto tempo morreu a sua mãe? — Num sei... há munto. — Alguma vez foi à escola? — Sei ler e escrever tão bem cumu o pai além. Mayella parecia o Sr. Jingle 11 de um livro que eu estava lendo. — Quanto tempo frequentou a escola? — Dois anos... três anos... olhe, num sê. Lentamente comecei a identificar um mesmo padrão nas perguntas do Atticus: partindo das perguntas que o Sr. Gilmer acharia irrelevantes ou pouco importantes, o Atticus estava calmamente a construir uma imagem da vida familiar dos Ewells para o júri. O júri ficava então sabendo que: os cheques da segurança social mal davam para alimentar todas aquelas bocas e havia fortes suspeitas de que o pai esbanjava aquele dinheiro até à última gota... às vezes se metia no pântano durante dias e voltava para casa doente; não fazia demasiado frio a ponto de usar sapatos, mas quando o frio apertava então podiam fazer uns sapatos bem formosos com tiras de pneus velhos; a família tirava água aos baldes de um riacho que corria num dos extremos da lixeira... limpavam a área circundante de todo o lixo existente... e era cada um por si no que respeitava à higiene pessoal: quem quisesse se lavar tinha de ir buscar a respectiva água; as crianças estavam sempre constipadas e viviam constantemente infestadas com urticária e outras perebas; havia uma senhora que ia lá de vez em quando e perguntava a Mayella por que é que ela não estava na escola... e ela escrevia-lhe a resposta; com dois membros da família sabendo ler e escrever não havia necessidade de os outros aprenderem... e o pai bem que precisava deles em casa. — Srta. Mayella — disse o Atticus — uma moça de dezenove anos deve ter amigos. Quem são eles? — Amigos? — a testemunha franziu a sobrancelha, parecendo confusa. — Sim, não conhece ninguém da sua idade ou talvez mais velho, ou até mais novo? Rapazes e moças? Apenas amigos? A hostilidade de Mayella, que até agora se tinha mantido neutra, veio novamente à tona. — ’Tá outra vez a g’zar comigo, num é, Sr. Finch? O Atticus deixou que a pergunta dela respondesse à dele. — Ama o seu pai, Srta. Mayella? — foi a sua pergunta seguinte. — Amá-lo, qu’quer dizer pr’eu com isso? — Quero dizer se ele é bom para ti, se é de trato fácil? — A gente se ag’enta, só quando... — Só quando? Mayella olhou para o pai que estava bem recostado no seu lugar, cadeira reclinada contra o varão. Depois, se sentou muito direito e esperou pela resposta dela. — Quando nada — disse Mayella. — Disse que s’ag’entava. O Sr. Ewell voltou a recostar-se. — Exceto quando bebe? — perguntou o Atticus de uma forma tão gentil que a Mayella assentiu, de imediato. — Ele a maltrata? — Qu’quer dizer? — Quando está... zangado, alguma vez lhe bateu? Mayella olhou em volta, para o escrivão e para o juiz. — Responda à pergunta, Srta. Mayella — disse o Juiz Taylor. — O meu pá’ nunca tocou n’m cabelo da minha cabeça — declarou com firmeza. — Nunca tocou em mim, ouviu. Os óculos do Atticus tinham escorregado ligeiramente e ele empurrou-os novamente para o nariz. — Confesso que foi uma boa conversa, Srta. Mayella, mas acho que é melhor passarmos diretamente ao assunto. Disse que pediu ao Tom Robinson para cortar um... o que é que era? — Um roupeiro, uma cômoda velha cheia de gavetas num lado. — E conhecia bem o Tom Robinson? — Qu’e qu’quer dizer eu’ isso? — Quero dizer se sabia quem era, onde vivia? Mayella acenou que sim com a cabeça. — Eu sabia quem el’era, pois passava p’la minha casa todos’dias. — Esta foi a primeira vez que lhe pediu para entrar? Mayella sobressaltou-se ligeiramente ao ouvir a pergunta. O Atticus continuava a sua lenta peregrinação até à janela, tal como desde o início: fazia uma pergunta e depois ficava olhando pela janela à espera da resposta. Certamente não viu o seu sobressalto involuntário, mas me pareceu ter se apercebido do seu movimento. Virou-se e ergueu as sobrancelhas. — Foi... — começou a repetir a pergunta. — Sim, foi. — Nunca lhe tinha dito para entrar antes disso? Agora ela já estava preparada. — Num, num fiz nada disso. — Esse «não» não é suficiente — disse o Atticus, com serenidade. — Nunca lhe tinha pedido para fazer outros trabalhinhos? — Talvez — respondeu Mayella. — Havia muitos pretos ali à volta. — Recorda alguma outra ocasião? — Num. — Muito bem, agora vamos ao que aconteceu. Afirmou que quando se virou o Tom Robinson estava atrás de ti no quarto, correto? — Sim. — Disse que ele «me agarrou pelo pescoço, disse muitas asneiras»... correto? — Correto. Subitamente a memória do Atticus estava ficando mais precisa. — E disse «me atirou pr’ochão e me apertou e abusou de mim»... correto? — Foi o qu’eu disse. — Recorda-se de ele lhe ter batido na cara? A testemunha hesitou. — Parece ter a certeza que ele a apertou. Durante todo aquele tempo estava lutando com ele, está recordada? Disse «dei pontapés e gritei o mais que podia». Recorda-se de ele lhe ter batido na cara? Mayella estava em silêncio. Parecia estar tentando esclarecer algo para si mesma. Por um momento pensei que estava imitando o Sr. Heck Tate e aquele seu truque de fingir que havia alguém na sua frente. Ela olhou para o Sr. Gilmer. — É uma pergunta fácil, Srta. Mayella, por isso vou fazê-la novamente. Recorda-se de ele lhe ter batido na cara? A voz do Atticus tinha perdido a sua brandura; falava agora na sua voz profissional, árida e distante. — Recorda-se de ele lhe ter batido na cara? — Num, num me lembro s’ele me bateu. Bem, quer dizer, sim, ele me bateu. — A resposta foi a sua última frase? — Hã? Sim, ele bateu... eu só num m’ lembro, só num m’ lembro... aconteceu tudo tão depressa. O Juiz Taylor olhava Mayella com severidade. — Não chore, menina — começou, mas o Atticus interrompeu: — Deixe-a chorar se ela quiser, meritíssimo. Temos todo o tempo do mundo. Mayella fungou furiosamente e encarou o Atticus. — Diga lá, respondo a qualquer pergunta qu’ tiver... me pôs aqui p’ra me gozar, num foi? Respondo a qualquer pergunta qu’ tiver... — Ótimo — disse o Atticus — Só tenho mais algumas. Srta. Mayella, eu não quero ser chato, mas afirmou que o réu lhe bateu, a agarrou pelo pescoço e abusou de ti. Só quero ter a certeza de que escolheu o homem certo. Pode identificar o homem que a violou? — Posso, é ’quele lá. O Atticus virou-se para o réu. — Levante-se, Tom. Deixe que a Srta. Mayella olhe bem para si... É este o homem, Srta. Mayella? Os ombros poderosos do Tom Robinson sobressaíam por baixo de uma camisa fina. Levantou-se e manteve a mão direita apoiada nas costas da cadeira. Parecia estranhamente desequilibrado, mas não era por estar de pé. O braço esquerdo era mais curto do que o direito aí uns bons trinta centímetros e pendia inerte ao lado do corpo. O braço terminava numa mãozinha encarquilhada e desfigurada e lá de cima, do meu lugar, via claramente que estava inutilizada. — Scout — sussurrou o Jem. — Scout, olha! Reverendo, ele é aleijado! O Reverendo Sykes se debruçou sobre mim e sussurrou para o Jem: — Ficou com o braço preso numa descaroçadeira de algodão, ficou com ele preso na máquina do Sr. Dolphus Raymond quando era ainda um rapaz... esvair-se quase até à morte... lhe esmagou todos os músculos até aos ossos... O Atticus disse: — Foi este o homem que a violou? — Claro que foi. A pergunta seguinte do Atticus tinha apenas uma palavra. — Como? Mayella estava furiosa. — Num sei como ele fez, mas que fez, fez... e já disse que foi tão depressa qu’eu... — Vamos considerar o assunto calmamente... — começou o Atticus, mas o Sr. Gilmer interrompeu-o logo com uma objeção: não era irrelevante, nem desprovido de interesse, mas o Atticus estava intimidando a testemunha. O Juiz Taylor soltou uma sonora gargalhada. — Oh, sente-se Horace. Ele não está fazendo nada disso. Se formos por aí a testemunha é que está intimidando o Atticus. O Juiz Taylor foi a única pessoa dentro do tribunal que riu. Até os bebês estavam quietos, mas perguntei-me subitamente se não estariam sossegados por estarem no peito. — Vamos ver — disse o Atticus. — a Srta. Mayella testemunhou que o réu lhe tinha apertado o pescoço e lhe tinha batido... não disse que ele a surpreendeu por trás e lhe deu uma pancada e a fez perder os sentidos, mas sim que se virou e ali estava ele... — O Atticus estava novamente atrás da sua mesa e enfatizava cada palavra com o bater dos nós dos dedos na mesa. — ...deseja rever o seu testemunho? — Você quer qu’eu diga uma coisa qu’ num aconteceu, é? — Não, menina. Quero que diga o que aconteceu. Conte-nos novamente. O que aconteceu? — Já lh’disse o qu’aconteceu, homem. — Disse que se virou e ele estava ali na sua frente. Foi nessa altura que ele lhe apertou o pescoço? — Sim. — E depois libertou o pescoço e lhe bateu? — Já disse que sim. — Ele deixou seu olho esquerdo roxo com o punho direito? — Eu me abaixei e... resvalou, foi isso qu’ele fez. Me abaixei e resvalou. — Mayella parecia ter visto finalmente a luz. — Parece que, subitamente, este ponto está se tornando claro para ti. Há pouco não se lembrava muito bem, né? — Eu disse qu’ ele me bateu. — Muito bem. Ele lhe apertou o pescoço, lhe bateu e violentou-a, certo? — Claro que sim. — É uma moça forte. O que fez durante todo esse tempo? Limitou-se a assistir? — Já lh’a disse, gritei e des’pois dei pontapés e des’pois gritei... O Atticus tirou os óculos, encarou a testemunha com o seu olho direito, o olho bom, e disparou uma chuva de perguntas. O Juiz Taylor disse: — Uma pergunta de cada vez, Atticus. Dê à testemunha a possibilidade de responder. — Muito bem, por que é que não fugiu? — Eu tentei... — Tentou? O que é que a impediu? — Eu... ele me atirou p’ro chão. Foi o que fez, me atirou p’ro chão e subiu em cima de mim. — E gritou durante todo esse tempo? — Claro que sim. — Então por que é que as outras crianças não ouviram? Onde estavam? Na lixeira? Não houve resposta. — Onde estavam? — Por que é que elas não vieram correndo com os seus gritos? A lixeira fica mais perto do que o bosque, não fica? Não houve resposta. — Ou será que só gritou quando viu o seu pai na janela? Não se lembra de ter gritado até essa altura, não foi? Não houve resposta. — Gritou primeiro para o seu pai e não para o Tom Robinson? Foi isso, não foi? Não houve resposta. — Quem é que lhe bateu? O Tom Robinson ou o seu pai? Não houve resposta. — O que é que o seu pai viu da janela, o crime de estupro ou o seu álibi perfeito? Por que é que não diz a verdade, criança, foi Bob Ewell que lhe bateu, não foi? Quando o Atticus se afastou de Mayella parecia estar cheio de dores de estômago, mas o rosto de Mayella era um misto de terror e fúria. O Atticus sentou-se cansado e começou a limpar os óculos com o lenço. Subitamente Mayella ganhou vida. — Tenho uma coisa p’ra dizer — começou ela. O Atticus levantou a cabeça. — Quer então nos contar o que aconteceu? Só que ela não percebeu o tom de compaixão contido no seu convite. — Tenh’uma coisa p’ra dizer e depois num digo mai’ nada. ’Quele preto lá abusou d’mim e se vocês que estão p’rai armados como s’nhores muito finos num querem fazer nada sobr’isso, então são todos uns covarde, vocês todos são uns gande covardes. P’ra mim esses ares emproados d’ocês num serve p’ra nada... essa coisa de «m’nina» e «Srta. Mayella» num serve p’ra nada, Sr. Finch... Foi então que ela rompeu num choro convulsivo. Os seus ombros eram sacudidos por soluços furiosos. E, a seguir, fez exatamente o que ameaçara. Não respondeu a mais nenhuma pergunta, mesmo quando Sr. Gilmer tentou dar a volta no assunto. Acho que se ela não fosse tão pobre e ignorante o Juiz Taylor tinha mandado prendê-la por desrespeito ao tribunal. De alguma forma, o Atticus tinha-a atingido duramente de um modo que eu não conseguia compreender, embora isso não lhe trouxesse qualquer prazer. Por isso sentou-se, com a cabeça descaída para a frente, e eu confesso que nunca tinha visto ninguém olhar de forma tão odiosa para alguém como aquele olhar que a Mayella lançou para o Atticus quando abandonou o banco e passou pela sua mesa. Quando o Sr. Gilmer disse ao Juiz Taylor que a acusação suspendia os trabalhos e não tinha mais testemunhas a apresentar perante o tribunal, o juiz disse: — Está na hora de todos fazermos o mesmo. A audiência está suspensa por dez minutos. O Atticus e o Sr. Gilmer se encontraram no meio da sala de audiências, frente à mesa do juiz, trocaram algumas impressões em voz baixa e depois saíram da sala pela porta que ficava atrás do banco das testemunhas. Era sinal que nós podíamos nos esticar um pouco. Descobri que tinha ficado sentada numa das pontas do banco liso e estava meio dormente. O Jem se levantou e bocejou. O Dill imitou-o e o Reverendo Sykes limpou o rosto com o chapéu. Afirmou que a temperatura deveria rondar os trinta e cinco graus. O Sr. Braxton Underwood, que tinha estado sentado calmamente numa cadeira reservada à imprensa, absorvendo os testemunhos com a esponja que era o seu cérebro, lá deixou que os seus olhos de escárnio e maldizer percorressem o balcão dos negros, até que os nossos olhares se cruzaram. Soltou uma expressão de reprovação e desviou o olhar. — Jem — disse eu. — o Sr. Underwood nos viu. — Não faz mal. Descansa que ele não vai contar nada ao Atticus, vai apenas falar disso na coluna social do Tribune. — O Jem começou a explicar os pontos altos do julgamento ao Dill, se bem que para mim fosse difícil formular uma opinião. Não tinha havido grande argumentação entre o Atticus e o Sr. Gilmer; o Sr. Gilmer parecia estar desempenhando o seu papel com alguma relutância; as testemunhas estavam sendo literalmente conduzidas atrás de uma cenoura como os burros e com poucas objeções de ambas as partes. Mas o Atticus nos tinha dito uma vez que no tribunal do Juiz Taylor os advogados que conjecturavam demais sobre as provas acabavam sendo alvo de fortes reprimendas por parte do juiz. Tinha também nos explicado que, muito embora o Juiz Taylor parecesse algo preguiçoso e sonolento, era um homem reservado e dificilmente influenciável, e isso era a verdadeira prova dos nove. O Atticus disse que era um bom juiz. Foi nessa altura que o Juiz Taylor regressou e subiu para a sua cadeira rotativa. Tirou um charuto do bolso do colete e examinou-o cuidadosamente. Dei uma cotovelada no Dill. Depois de passar pela inspeção do juiz, o charuto sofreu uma dentada violenta. — Às vezes viemos aqui só para o ver fazer aquilo — expliquei. — Aquilo vai lhe ocupar o resto da tarde. Repara. Ignorando que estava sendo alvo da nossa atenção, o Juiz Taylor livrou-se da ponta cortada, metendo-a com perícia por entre os lábios, ao que se seguiu um sonoro «Ptiu». Acertou em cheio no escarrador de tal maneira que pudemos ouvir o barulho. — Que pontaria — murmurou Dill. Regra geral, o intervalo significava que todos saíam dos seus lugares, mas hoje ninguém se mexia. Até os Ociosos, que entretanto não tinham conseguido que os homens mais novos lhes cedessem o lugar, mantinham-se religiosamente de pé colados à parede. Acho que o Sr. Heck Tate tinha reservado os banheiros só para os funcionários do tribunal. O Atticus e o Sr. Gilmer retornaram e o Juiz Taylor olhou para o relógio. — Já são quase quatro horas — disse ele. Era estranho pois o relógio da torre já tinha dado a hora, pelo menos duas vezes. Não tinha ouvido nada, nem sequer sentido as suas vibrações habituais. — Vamos tentar acabar esta tarde? — perguntou o Juiz Taylor. — Que lhe parece, Atticus? — Acho que é possível — respondeu o Atticus. — Quantas testemunhas tem? — Uma. — Então pode chamá-la. XIX THOMAS ROBINSON ERGUEU a mão direita, pôs os dedos sob o seu braço esquerdo e levantou-o. Depois, guiou o braço até a Bíblia e a sua mão esquerda, que parecia de borracha, tocou na encadernação preta. Quando levantou a mão direita, a sua mão aleijada escorregou da Bíblia, batendo na mesa do escrivão. Estava tentando de novo quando o Juiz Taylor resmungou: — Está bem assim, Tom. O Tom prestou o juramento e sentou-se na cadeira das testemunhas. Com grande rapidez, o Atticus pediu-lhe para nos elucidar do seguinte: Tom tinha vinte e cinco anos; era casado e tinha três filhos; já tinha tido problemas com a lei: tinha cumprido trinta dias de prisão por conduta desordeira. — e sobre essa conduta desordeira — disse o Atticus. — E em que consistiu? — Andei brigano no soco com outro home, tentou me acertá com uma faca. — E conseguiu? — Sim, sinhô, um pouquinho, ma’ não o suficiente p’ra me magoar. Sabe, eu... — Tom mexeu o ombro esquerdo. — Sim — disse o Atticus. — Ambos foram condenados? — Sim, sinhô, tive de ir preso pois num podia pagar a multa. O outro pagou a dele. O Dill debruçou-se sobre mim e perguntou ao Jem o que o Atticus estava fazendo. O Jem disse que o Atticus estava mostrando ao júri que o Tom não tinha nada a esconder. — Conhecia a Srta. Mayella Violet Ewell? — perguntou o Atticus. — Sim, sinhô. Tinha de passar pela casa dela todos os dia, quando ia e vinha do campo. — E de quem era o campo? — Apanho algodão para o Sr. Link Deas. — E estava apanhando algodão em Novembro? — Não, sinhô, eu trabalho em seu quintal d’Outono e d’lnverno. Eu trabalho todo ano p’ra ele, qu’ele tem umas nogueira assim. — Disse que passava pela casa dos Ewells quando ia e vinha do trabalho. Há mais algum caminho? — Não, sinhô, não qu’eu conheça. — Tom, alguma vez ela falou contigo? — Ora, sim sinhô. Eu levava a mão ao chapéu quando passava e um dia ela inté pediu pra mim p’ra entrar e desmontá um roupeiro. — Quando é que ela lhe pediu para desmontar o... o roupeiro? — Foi n’última Primavera, Sr. Finch. Lembro que estava n’hora de cortar a lenha e levava c’migo a ’nha enxada. Disse-lhe que só tinha c’migo a enxada, mas ela inté disse que tinha um machado. Ela deu o machado pra mim e eu desfiz o roupeiro. E ela ’ntão disse «’tou vendo tenho que te dar uma moeda, num é?». E eu disse «Não, sinhôra, não levo nada». Depois fui p’ra casa. Sr. Finch, isto foi na Primavera passada, já lá vai um ano. — Voltou a entrar na casa dela? — Sim, sinhô. — Quando? — Bem, um monte de vezes. O Juiz Taylor agarrou instintivamente o seu martelo, mas depressa baixou a mão. O sururu que reinava debaixo de nós depressa esmoreceu sem precisar da sua intervenção. — Em que circunstâncias? — Desculpe, sinhô? — Por que é que foi lá muitas vezes? A testa do Tom Robinson mostrava sinais de descontração. — Ela chamava a mim, sinhô. Parecia que toda a vez que passava ela tinha umas coisinha para eu fazê... cortar gravetos, trazer água para ela. Todos’dias ela botava água naquelas frôr vermelha... — Era pago pelos seus serviços? — Não, sinhô, não depois d’me ter ’frecido ’quela moeda da primeira vez. Eu ficava contente por ajuda’. O Sr. Ewell não parecia ajuda’ ela e nem as c’ianca e sabia qu’ ela não tinha muitas moeda p’ra dar por aí. — Onde estavam as outras crianças? — Andavam sempre por ali, por todo lado. Ficavam me vendo trabalhar, algumas delas, outras ficavam na janela. — E a Srta. Mayella falava contigo? — Sim, sinhô, ela falava p’ra mim. À medida que o Tom Robinson depunha, ocorreu-me que Mayella Ewell devia ser a pessoa mais só na face da terra. Talvez fosse ainda mais só do que o Boo Radley, que não saía de casa há vinte e cinco anos. Quando o Atticus lhe perguntou se ela tinha amigos, parecia não saber o que isso significava e depois pensou que ele estava fazendo pouco dela. Era tão triste como os mestiços: os brancos não queriam nada com ela porque vivia no meio de porcos; os negros não queriam nada com ela porque era branca. Não podia viver como o Sr. Dolphus Raymond, que preferia a companhia dos negros, porque ela não era dona de uma margem do rio nem vinha de boas famílias. Ninguém costumava dizer «É a maneira de ser deles» sobre os Ewells. Com uma mão Maycomb lhes dava cestas básicas de Natal e dinheiro da segurança social, enquanto que com a outra os enxotava. Provavelmente, Tom Robinson fora a única pessoa que tinha sido verdadeiramente decente com ela. Mas ela disse que ele tinha abusado dela e, quando ela se levantou, olhou para ele como se ele fosse o lixo que ela pisava. — Alguma vez — o Atticus interrompeu a minha meditação — foi à propriedade dos Ewells... alguma vez pôs os pés na propriedade dos Ewells sem ser convidado por um deles? — Não, sinhô, Sr. Finch, nunca. Eu não fazer isso, sinhô. Às vezes, o Atticus dizia que para ver se uma testemunha estava mentindo, ou dizendo a verdade, era preciso ouvir em vez de olhar: tentei aplicar o teste... Tom negou três vezes de uma assentada, mas de forma calma, sem ponta de lamento ou hesitação na voz e dei por mim acreditando nele, apesar de ele protestar demais. Ele parecia ser um negro honrado e respeitador e um preto honrado e respeitador nunca entraria no pátio de ninguém por vontade própria. — Tom, o que lhe aconteceu na noite de vinte e um de Novembro do ano passado? Lá em baixo, o auditório pareceu inspirar em uníssono e se inclinou todo para frente. Atrás de nós, os pretos fizeram o mesmo. Tom era de um negro aveludado, não brilhante, mas como um veludo negro e macio. O branco dos seus olhos iluminava-lhe o rosto e, quando falava, víamos o brilho dos seus dentes. Se não tivesse aquela deficiência, seria um belo pedaço de homem. — Sr. Finch — recomeçou — ’tava indo p’ra casa com’e costume quando passei p’los Ewell e a Srta. Mayella ’tava lá no alpendre como já disse qu’estava. Tudo ’tava muito calmo e não sabia muito bem porquê. Tava eu a matutar porquê, só de passagem, quando vai daí e ela disse p’ra ir lá e ajudá-la um instantinho. Bem, eu passei a cerca e fiquei olhando à procura d’uns ramos p’ra cortar, mas não vi n’nhum e ela disse «Naum, hoje tenho uma coisa p’ra fazer dentro de casa. A porta velha ’tá solta nas dobradiças e o Outono ’tá chegando munto depressa». Eu disse «Tem uma chave de p’rafusos, Srta. Mayella?» Ela disse que tinha. Bem, subi os degrau e ela disse p’ra eu entrar e entrei no quarto da frente e olhei p’ra porta. Disse «Srta. Mayella esta porta parece num ter problema». Abri e fechei e as dobradiça ’tavam boa. Então ela fechou a porta na minha cara. Sr. Finch, e aí eu pensava porqu’e que ’tá tudo tão calmo e percebi que não havia uma c’ianca lá, nem uma e disse «Srta. Mayella, onde ’tão as c’ianca»? A pele de veludo preto do Tom reluzia intensamente e ele passou a mão pela cara. — E eu disse «Onde ’ta as c’ianca?» — continuou —, e ela disse... ela só ria, tipo... disse que ’tavam todos na cidade comendo sorvete. E vai daí e diz «Demorei um ano inteiro a juntar s’te moedas, mas consegui. ’Tão todos p’ra cidade». O desconforto de Tom não era motivado pelo calor. — O que disse então, Tom? — perguntou o Atticus. — Disse-lhe alguma coisa tipo, «Pois Srta. Mayella, faz munto bem em dar um gosto a eles». E ela disse «Acha?», e acho qu’ela ’té não percebeu o que eu ’tava dizendo... eu queria era dizer qu’era bom poupar com’ela tinha feito e foi bonito o que fez p’las c’ianca. — Eu entendi, Tom. Continue — pediu o Atticus. — Bem, disse qu’era milhó ir indo, que não podia fazê nada por’ela e ela disse qu’eu podia si sinhô, e eu perguntei o quê e ela disse p’ra subir numa cadeira lá e pegar na caixa que ’tava em cima do roupeiro. — Não era o roupeiro que tinha desmanchado? — perguntou o Atticus. A testemunha sorriu. — Não, sinhô, era outro. Quasi tão alto com’o quarto. Por isso, fiz o que ela pediu pra mim e quando ’tava pegano nele, bem, ela... ela me agarrou as perna, ela me agarrou as perna, Sr. Finch. Ela me assustô tanto qu’eu saltei abaixo da cadeira e tombei ela... era a única coisa, a única peça que ’tava virada naquele quarto quando saí, Sr. Finch. Juro por Deus. — O que aconteceu quando a cadeira tombou? O Tom Robinson tinha entrado num beco sem saída. Olhou para o Atticus, olhou para o juiz e olhou para Sr. Underwood, sentado do outro lado da sala. — Tom, você jurou contar toda verdade. Vai contar? Nervoso, o Tom passou a mão pela boca. — O que aconteceu depois disso? — Responda à pergunta — disse o Juiz Taylor. Naquela altura já tinha desaparecido um terço do seu charuto. — Sr. Finch, eu cai da cadeira e tombei e ela despois agarrou-se a mim. — Agarrou-se a ti? De forma violenta? — Não, sinhô, ela... ela me abraçou. Ela me abraçou p’la cintura. Desta vez o martelo do Juiz Taylor desferia golpes sonoros na mesa. Ato contínuo, de repente, as luzes da sala se acenderam. Ainda não tinha escurecido, mas o sol da tarde já tinha abandonado as janelas. Rapidamente, o Juiz Taylor restabeleceu a ordem. — O que é que ela fez depois? A testemunha engoliu em seco. — Ela me puxou e me beijou n’ cara. Ela disse que nunca tinha beijado um homem adulto e que tanto lhe fazia beijar um preto. Despois disse qu’o pai dela lhe fazia num contava. Ela disse «Me beija, preto». E eu disse «Srta. Mayella deixa eu ir embora» e tentei fugir, mas ela encostou as costa na porta e tive d’afastá ela. Não queria machucá ela, Sr. Finch, e disse pra me deixar passar, mas foi então qu’ Sr. Ewell começou os grito p’la janela. — O que é que ele disse? Tom Robinson voltou a engolir em seco e os seus olhos aumentaram de tamanho. — Coisas que num se pode dizê... que num se pode dizê na frente destas c’ianca... — O que é que ele disse, Tom? Tem de dizer ao júri o que foi que ele disse. Tom Robinson cerrou os olhos com toda a força. — Ele disse «Minha grande vaca, qu’eu te mato». — O que aconteceu depois? — Sr. Finch, eu corria o mais qu’podia e não sei o qu’aconteceu. — Tom, você violentou Mayella Ewell? — Não, sinhô. — Fez-lhe mal de alguma forma? — Não, sinhô. — Resistiu aos seus avanços? — Sr. Finch, eu bem tentei. Eu tentei sem ser mau p’ra ela. Não queria ser mau, não queria empurrar ela ou coisa assim. De alguma forma, ocorreu-me que as maneiras do Tom Robinson eram tão boas como as do Atticus. Não percebi a sutileza da situação do Tom até o meu pai ter me explicado tudo mais tarde: ele jamais se atreveria a bater numa mulher branca, fossem quais fossem as circunstâncias, esperando escapar com vida durante muito tempo, por isso aproveitou a oportunidade para fugir... um sinal indiscutível de culpa. — Tom, recuemos novamente até o momento que o Sr. Ewell apareceu — pediu o Atticus. — Ele disse-lhe alguma coisa? — Nada, sinhô. Ele pode ter dito alguma coisa, só qu’eu não ’tavalá... — Isso chega — cortou o Atticus. — Lembra-se do que ouviu, com quem ele estava falando? — Sr. Finch, ele falava e olhava p’ra a Srta. Mayella. — E então você fugiu? — Sim, sinhô. — Por que fugiu? — Estava com medo, sinhô. — De que é que tinha medo? — Sr. Finch, se o sinhô fosse preto com’eu tamém tinha medo. O Atticus se sentou. O Sr. Gilmer percorria o seu caminho até ao banco das testemunhas quando, antes mesmo de lá chegar, o Sr. Link Deas se levantou do meio da assistência e anunciou em alto e bom som: — Só quero que vocês todos saibam uma coisa. Esse rapaz trabalhou p’ra mim durante oito anos e nunca tive um único problema co’ele. Nada de nada. — Cale já essa boca, senhor. — O Juiz Taylor estava bem desperto e rugia como um leão. Tinha também o rosto vermelho. Miraculosamente, o charuto não teve qualquer interferência no seu discurso. — Link Deas — gritou. — Se tem alguma coisa a dizer diga-o sob juramento e no momento devido, mas até lá saia desta sala, ouviu? Saia já desta sala, senhor, ouviu? Não me faltava mais nada do que ter de aturar esta cena outra vez! O Juiz Taylor lançou um olhar furioso para o Atticus, como se o desafiasse a intervir, mas o Atticus já tinha baixado a cabeça e ria com os seus botões. Lembrei-me de uma coisa que ele me tinha contado sobre os comentários ex cathedra do Juiz Taylor. Por vezes ele excedia os limites do seu dever, mas havia muito poucos advogados que conseguissem rebater os seus argumentos. Olhei para o Jem, mas o Jem limitou-se a balançar a cabeça. — Até parece que foi um dos jurados que se levantou e começou a falar — comentou ele. — Mas acho que nesse caso seria diferente. O Sr. Link só estava perturbando a paz ou coisa do gênero. O Juiz Taylor disse ao escrivão para não anotar nada que tivesse acontecido depois de «Sr. Finch, se o sinhô fosse preto com’eu tamém tinha medo» e deu instruções ao júri para ignorar a interrupção. Olhou desconfiadamente para o corredor central e acho que ficou à espera que o Sr. Link Deas abandonasse a sala. Então disse: — Continue, Sr. Gilmer. — Esteve preso trinta dias por conduta desordeira, Robinson? — perguntou o Sr. Gilmer. — Sim, sinhô. — E como ficou o outro preto? — Ele tinha batido em mim, Sr. Gilmer. — Sim, mas você foi condenado, não foi? O Atticus levantou a cabeça. — Foi um delito menor e consta do processo, meritíssimo. Achei que a voz dele demonstrava algum cansaço. — A testemunha vai responder — disse o Juiz Taylor, mostrando-se igualmente cansado. — Sim, sinhô, eu peguei trinta dias. Eu já sabia que o Sr. Gilmer ia dizer ao júri que uma pessoa que tinha sido condenada por conduta desordeira podia perfeitamente ter abusado de Mayella Ewell e isso era a única coisa que lhe interessava. Aquele tipo de argumentos servia aos seus propósitos. — Robinson, é perfeitamente capaz de cortar armários e lenha só com uma mão, não é? — Sim, sinhô, acho que sim. — Suficientemente forte para estrangular uma mulher e atirá-la ao chão? — Nunca fiz tal, sinhô. — Mas é suficientemente forte para isso, não é? — Acho qu’ sim, sinhô. — Já andava de olho nela há muito tempo, não andava, rapaz? — Não, sinhô, nunca olhei p’ra ela. — Então era muito simpático para cortar toda aquela lenha e ainda por cima ir buscar água, não era, rapaz? — Só tentava ajuda’ ela, sinhô. — Convenhamos que estava sendo generoso generoso. Tinha tarefas para fazer em casa depois do trabalho, não tinha? — Sim, sinhô. — Então por que é que não as fazia em vez de fazer as tarefas da Srta. Ewell? — Eu fazia as duas, sinhô. — Devia andar muito ocupado. Porquê? — Porquê quê, sinhô? — Por que é que andava tão interessado em fazer as tarefas daquela mulher? Tom Robinson hesitou enquanto procurava uma resposta. — Par’cia qu’ não havia mais ninguém p’ra ajudar ela, como disse... — Com Sr. Ewell e mais sete crianças na propriedade, rapaz? — Bem, eu disse qu’ par’cia qu’eles nunca ajudavam ela... — E cortava aquela lenha toda e fazia os outros trabalhos por pura bondade, rapaz? — Tentava ajudar ela, já disse. O Sr. Gilmer dirigiu um sorriso sombrio para o júri. — Parece que é uma boa pessoa... e fazia tudo sem receber uma única moeda? — Sim, sinhô. Eu tinha munta pena dela, qu’ela par’cia trabalha’ mais que os outro... — Teve pena dela, teve pena dela? — Sr. Gilmer parecia prestes a subir pelas paredes. A testemunha percebeu o erro que tinha cometido e mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Mas o mal estava feito. Por baixo de nós não havia ninguém que tivesse gostado da resposta do Tom Robinson. O Sr. Gilmer fez uma grande pausa para deixar que a resposta se entranhasse eficazmente no público. — Bem, a vinte e um de Novembro último, dirigia-se para casa como habitualmente — disse ele — quando ela lhe pediu para entrar e desmontar um roupeiro? — Não, sinhô. — Nega ter entrado na casa? — Não, sinhô... ela disse que tinha uma coisa p’ra eu fazer dentro da casa... . — Ela disse que lhe pediu para desmontar o roupeiro, não é verdade? — Não, sinhô, num é. — Então diga-me que ela está mentindo, rapaz? O Atticus já estava de pé, mas o Tom Robinson não precisava dele. — Não lhe digo qu’ela mentiu, Sr. Gilmer. Digo é que ’tá com a cabeça confusa. Nas dez perguntas seguintes, enquanto o Sr. Gilmer ia revendo a versão dos acontecimentos de Mayella, a resposta firme da testemunha era que ela estaria confusa. — Não é então verdade que o Sr. Ewell o expulsou da casa, rapaz? — Não, sinhô, acho que não. — Acha que não? O que quer dizer? — Não fiquei lá tempo que chegasse p’ra ele me expulsar. — Parece ter sido muito ingênuo... Já agora, por que é que fugiu correndo? — Já disse que ’tava com medo, sinhô. — Se estava de consciência tranquila de que é que tinha medo? — Como disse antes, não era seguro p’ra um preto ’tar metido... numa embrulhada daquelas. — Mas você não estava metido numa confusão... até afirmou que estava resistindo a Srta. Ewell. Tinha assim tanto medo que ela lhe fizesse mal que teve de correr tanto, logo um tipo grande como você? — Não, sinhô. Tinha medo d’ir parar num tribunal como ’tou agora. — Medo de ser preso, medo de ter de responder pelo que fez? — Não, sinhô. Medo de responder p’lo que não fiz. — Está sendo insolente comigo, rapaz? — Não, sinhô, não ’tou. Foi tudo o que consegui ouvir do contra-interrogatório do Sr. Gilmer, pois o Jem obrigou-me a levar o Dill lá para fora. O Dill tinha começado a chorar e não conseguia parar; a princípio silenciosamente, mas depois os seus soluços foram ouvidos por várias pessoas que estavam no balcão. O Jem disse que eu havia de ir por bem ou por mal e o Reverendo Sykes disse que era melhor que eu fosse, por isso fui. Durante todo o dia, o Dill pareceu-me estar perfeitamente bem, como se não houvesse nada de errado com ele, mas acho que ele ainda não tinha recuperado totalmente da história de ter fugido de casa. — Não está se sentindo bem? — perguntei, quando chegamos ao fundo das escadas. O Dill tentou recompor-se enquanto descíamos os degraus do setor sul. No topo da escadaria, o Sr. Link Deas parecia uma figura solitária. — Está acontecendo alguma coisa, Scout? — perguntou, quando passamos por ele. — Não, senhor — respondi por cima do ombro. — O Dill está maldisposto. — Anda para debaixo das árvores — disse. — Deve ter sido o calor. Escolhemos o maior carvalho e sentamos debaixo dele. — Já não conseguia aguentar mais ele — confessou o Dill. — A quem? Ao Tom? — Aquele Sr. Gilmer que o tratava daquela maneira e que falava com tanto ódio... — Dill, esse é o trabalho dele. Pensa comigo, se não tivéssemos advogados de acusação... bem, então também não podíamos ter advogados de defesa. O Dill expirou pacientemente. — Sei disso tudo, Scout. Era só a maneira como dizia aquilo, foi isso que me deixou doente, doente de verdade. — É normal ele fazer aquilo, Dill, ele estava contra... — Mas ele não agiu assim quando. — Dill, eles eram testemunhas dele. — Tudo bem, mas o Sr. Finch não agiu assim com a Mayella e com o velho Ewell quando os contra-interrogou. A maneira como aquele homem lhe chamava «rapaz», o encarava com desprezo e a forma como olhava para o júri cada vez que ele respondia... — Bem, Dill, afinal de contas ele não passa de um negro. — Isso não me interessa nada. Não está certo. Não está certo tratá-los daquela maneira. Ninguém devia falar assim... me deixa doente, agoniado. — É só a maneira de ser do Sr. Gilmer, Dill. Ele trata todo mundo assim. Ainda não o viu a cair em cima de alguém à séria. Quando... bem, a mim pareceu que o Sr. Gilmer nem sequer estava passando dos limites. A maior parte dos advogados trata todos assim. — O Sr. Finch não. — Ele não é exemplo, Dill. Ele... — procurava na minha memória uma daquelas frases lapidares da Srta. Maudie Atkinson. E encontrei-a: «Ele é uma e a mesma pessoa, dentro do tribunal ou na rua». — Não era isso que eu queria dizer — disse o Dill. — Eu sei o que queria dizer, criança — disse uma voz atrás de nós. Pensamos que tinha vindo da árvore, mas na verdade a voz pertencia ao Sr. Dolphus Raymond. Mostrou-se do lado de lá do tronco, espreitando para nós. — Ainda não tem calo e aquilo te deixa enojado, não é?

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Exercicios Farmacocinetica

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – CURSO DE FARMÁCIA
FARMACOLOGIA I - FARMACOCINÉTICA

1.       CONSIDERANDO AS SEGUINTES SITUAÇÕES ABAIXO:

A – PACIENTE COM INTENSA DOR NAS COSTAS, INCAPAZ DE MANTER-SE ERETO.
B – PACIENTE COM UMA CONTUSÃO EM UMA PARTIDA DE FUTEBOL QUE FORMOU UM HEMATOMA.
C – PACIENTE COM INFLAMAÇÃO DE GARGANTA.

            VOCÊ DISPÕE DAS SEGUINTES MEDICAÇÕES ANTIINFLAMATÓRIAS:

-          VOLTARENÒ (DICLOFENACO DE SÓDIO) NA FORMA INJETÁVEL
-          VOLTARENÒ (DICLOFENACO DE SÓDIO) NA FORMA DE EMULGEL
-          VOLTARENÒ (DICLOFENACO DE SÓDIO) NA FORMA DE COMPRIMIDOS.

SABENDO QUE OS TRÊS COMPOSTOS SÃO ANTIINFLAMATÓRIOS, RESPONDA:

A) DEFINA O QUE SÃO AS VIAS DE ADMINISTRAÇÃO ENTERAL, PARENTERAL E TÓPICA? DÊ EXEMPLOS DE FORMAS FARMACÊUTICAS PARA CADA VIA DE ADMINISTRAÇÃO.

B) ESCOLHA A MEDICAÇÃO IDEAL PARA CADA CASO, JUSTIFICANDO O PORQUÊ DE SUA ESCOLHA. EXPLIQUE (NÃO É SÓ CITAR, EXPLICAR POR QUE É VANTAGEM OU DESVANTAGEM) TRÊS VANTAGENS E TRÊS DESVANTAGENS DA VIA ESCOLHIDA PARA CADA CASO.








2. UMA DOSE DE DIGOXINA (CARDICOR Ò), UM FÁRMACO ESTIMULANTE DO CORAÇÃO, DADA A DOIS PACIENTES DIFERENTES, A E B, FOI EFICAZ PARA O PACIENTE A, PORÉM QUASE MATOU O PACIENTE B. AO SE PESQUISAR AS CAUSAS POSSÍVEIS DA TOXICIDADE, DENTRE VÁRIOS EXAMES REALIZADOS, O PACIENTE FOI DIAGNOSTICADO COMO PORTADOR DE UM QUADRO DE INSUFICIÊNCIA RENAL.

EXPLIQUE POR QUE A DROGA APRESENTOU EFEITOS DIFERENTES NOS DOIS PACIENTES, JUSTIFICANDO A INTOXICAÇÃO DO PACIENTE B.



3. UMA NOVA FORMULAÇÃO PARA O MEDICAMENTO CGH6359 FOI TESTADA EM PESSOAS DIFERENTES PELAS VIAS ORAL E SUBLINGUAL. PORÉM, EMBORA OS NÍVEIS SANGÜÍNEOS ASSUMIDOS PARA A DROGA EM TESTE TENHAM SIDO MAIS ALTOS PARA A ADMINISTRAÇÃO POR VIA SUBLINGUAL, O EFEITO FOI MAIS DURADOURO APÓS ADMINISTRAÇÃO POR VIA ORAL.

EXPLIQUE, COM RIQUEZA DE DETALHES, POR QUE OS NÍVEIS SANGUÍNEOS DO FÁRMACO FORAM MAIS ALTOS POR VIA SUBLINGUAL. EXPLIQUE POR QUE O EFEITO DURA MAIS POR VIA ORAL.



5. FOI DADA ENTRADA DE UM PACIENTE NO PRONTO SOCORRO APÓS TENTATIVA DE SUICÍDIO APÓS INGESTÃO DE VÁRIOS COMPRIMIDOS DE DIAZEPAM (VALIUMÒ), UM MEDICAMENTO ANSIOLÍTICO DEPRESSOR DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL. CONSIDERANDO ESSA SITUAÇÃO, RESPONDA:

  1. DIAZEPAM É UM MEDICAMENTO MUITO OU POUCO LIPOSSOLÚVEL? POR QUE?

  1. SABE-SE QUE O MEDICAMENTO DIAZEPAM PASSA POR RECIRCULAÇÃO ÊNTERO-HEPÁTICA E TAMBÉM POR EFEITO DE PRIMEIRA PASSAGEM. EXPLIQUE O QUE É CADA UM DOS PROCESSOS E COMO ELES AFETAM A PASSAGEM DO DIAZEPAM PELO ORGANISMO.

  1. CITE QUAIS SÃO E EXPLIQUE OS TRÊS PROCESSOS QUE INFLUENCIAM A EXCREÇÃO RENAL DE FÁRMACOS.



6. O SENHOR NOGUEIRA, DE 58 ANOS, É CONSUMIDOR CRÔNICO DE VARFARINA (MAREVANÒ), UM ANTICOAGULANTE, PARA EVITAR A FORMAÇÃO DE TROMBOS. RECENTEMENTE, ELE FEZ A ADIÇÃO DO INFUSO (CHÁ) DE UMA PLANTA INDICADO POR SEU VIZINHO PORQUE ESTAVA SENTINDO MUITA GASTRITE. 

  1. SABENDO QUE ESSE CHÁ CONTÉM PRINCÍPIOS QUE PODEM CAUSAR A INDUÇÃO DAS ENZIMAS HEPÁTICAS, A INDICAÇÃO DO VIZINHO PODE TER UMA IMPLICAÇÃO GRAVE SOBRE O TRATAMENTO DO SENHOR NOGUEIRA. RESPONDA QUAL SERÁ ESSA IMPLICAÇÃO, JUSTIFICANDO-A.

  1. EXPLIQUE O QUE É BIOTRANSFORMAÇÃO, ONDE ELA PODE OCORRER, COMO ELA ACONTECE, QUAL O OBJETIVO E A IMPORTÂNCIA DA MESMA.




7. UM PACIENTE FOI ADMITIDO EM UM HOSPITAL APRESENTANDO UM QUADRO DE INTOXICAÇÃO POR ABUSO DE BARBITÚRICOS E, ALÉM DO TRATAMENTO SINTOMÁTICO E SUPORTE DAS FUNÇÕES VITAIS DO ENFERMO, FOI ADMINISTRADA UMA SUBSTÂNCIA QUE PROMOVIA A ALCALINIZAÇÃO DA URINA. UMA VEZ QUE BARBITÚRICOS SÃO DROGAS DE CARÁTER ÁCIDO, ESTE PROCEDIMENTO É CORRETO? POR QUE? QUAL O INTUITO DELE?

8. CITE QUATRO FATORES QUE INTERFEREM NA ADMINISTRAÇÃO DE FÁRMACOS POR VIA ENTERAL E EXPLIQUE COMO CADA UM DELES INFLUENCIA A ABSORÇÃO ENTERAL E POR QUE.

9. EXPLIQUE COMO A LIGAÇÃO ÀS PROTEÍNAS PLASMÁTICAS INFLUENCIA A DISTRIBUIÇÃO E A EXCREÇÃO RENAL DE FÁRMACOS.


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

sol é para todos

NAQUELE ANO, POR RAZÕES insondáveis que estavam além da compreensão dos mais experientes profetas de Maycomb County, o Outono transformou-se efetivamente em Inverno. Segundo o Atticus, tivemos as duas semanas mais frias desde 1885. O Sr. Avery aproveitou para dizer que estava escrito na Pedra de Roseta que quando as crianças desobedeciam aos pais, fumavam ou guerreavam umas contra as outras, as estações do ano mudavam: por isso, eu e o Jem carregávamos o fardo da culpa por havermos contribuído para tais aberrações da natureza, tendo causado, portanto, tristeza nos nossos vizinhos e desconforto em nós próprios. A velha Sra. Radley morreu naquele Inverno, mas a sua morte não levantou muita poeira — o bairro raramente a via, exceto quando regava as suas canas cidreira. Eu e o Jem decidimos que o Boo finalmente a tinha apanhado, mas, para nossa decepção, quando o Atticus voltou da Casa dos Radley contou-nos que ela tinha morrido de causas naturais. — Pergunte! — sussurrou o Jem. — Pergunte ’ocê. É mais velho. — É por isso que quem tem que perguntar é ’ocê. — Atticus — comecei —, viu o Sr. Arthur? O Atticus desviou com severidade os olhos do jornal e olhou para mim: — Não, não vi. Jem poupou-me de mais perguntas. Disse que o Atticus ainda estava sensível em relação a nós e aos Radleys e que não valia a pena ficar fazendo-lhe quaisquer perguntas. O Jem tinha a noção de que o Atticus sabia que as nossas atividades naquela noite do Verão passado não tinham estado estritamente confinadas ao strip poker. Mas, como não tinha uma base concreta para aquela ideia, dizia que era apenas um palpite. Na manhã seguinte, ao acordar, olhei para a janela e quase morri de susto. Os meus gritos fizeram o Atticus sair do banheiro ainda com a barba meia por fazer. — Atticus, é o fim do mundo! Por favor, faz alguma coisa... Arrastei-o até à janela e apontei. — Não é nada — disse ele. — Está apenas nevando. O Jem perguntou ao Atticus se aquilo dava pra conservar. Ele também nunca tinha visto neve, mas sabia o que era. O Atticus disse que não sabia muito mais sobre neve do que o Jem. — Penso, contudo, que se é assim tão líquida, acabará por se transformar em chuva. O telefone tocou e o Atticus deixou o café da manhã no meio para o ir atender. — Era a Eula May — disse ele, quando voltou. — E passo a citar, «Como já não nevava em Maycomb County desde 1885, hoje não haverá escola». Eula May era a telefonista chefe de Maycomb. Estava encarregada de fazer os anúncios públicos, convites para casamento, ativar a sirene de incêndio e fornecer instruções para primeiros socorros quando o Dr. Reynolds estava ausente. Quando finalmente o Atticus nos chamou à atenção e nos obrigou a olhar para o prato em vez de olhar para a janela, o Jem perguntou: — Como é que se faz um boneco de neve? — Não faço a mínima ideia — respondeu o Atticus. — Eu não quero desapontá-los, mas duvido que haja neve suficiente para fazer um boneco de neve. A Calpurnia entrou e disse que achava que a neve ia continuar caindo. Quando corremos para o quintal dos fundos, vimos que estava coberto por uma fina camada de neve quase líquida. — Não devíamos andar em cima dela — disse o Jem. — Repare, todos os passos que damos estão estragando-a. Olhei para trás para as minhas pegadas ainda frescas no chão. O Jem disse que se esperássemos que nevasse mais, com um pouquinho de esforço podíamos fazer um boneco de neve. Pus a língua de fora e apanhei um floco de neve. Queimava. — Jem, ’tá quente! — Não, não está. Está é tão fria que até queima. Scout, não a coma agora, ’ocê só vai desperdiçar. Deixe-a cair no chão. — Mas eu quero andar em cima dela! — Tenho uma ideia. Podíamos ir a pé até casa da Srta. Maudie. O Jem saltitou até o pátio da frente. Eu segui as suas pegadas. Quando estávamos na calçada em frente da casa da Srta. Maudie fomos interpelados pelo Sr. Avery. Tinha a face rosada e uma enorme barriga por baixo do cinto. — ’Tão vendo o que fizeram? — confrontou-nos. — Já num nevava em Maycomb desd’ Appomattox. São crianças más como vocês que fazem com c’as estações mudem. Imaginava se o Sr. Avery sabia com quanta esperança tínhamos aguardado, no Verão passado, que ele repetisse a sua performance e pensei que, se a nossa recompensa era aquilo, se não estávamos fazendo um pecado. Não era preciso pensar bastante para saber onde é que o Sr. Avery reunia as suas estatísticas meteorológicas: elas vinham diretamente da Pedra de Roseta. — Jem Finch, o Jem Finch! — A Srta. Maudie ’tá te chamando, Jem. — Fiquem no meio do pátio. Por baixo da varanda há algumas flores enterradas debaixo da neve. Não pisem nelas! — Sim, senhora! — respondeu o Jem. — É lindo, não é Srta. Maudie? — Lindo, pero no mucho! Se esta noite continuar nevando assim as minhas azaleias vão morrer! O velho chapéu de palha da Srta. Maudie brilhava com os cristais de neve. Ela estava dobrada sobre alguns pequenos arbustos, embrulhando-os em sacos de serapilheira. O Jem perguntou-lhe por que é que estava fazendo aquilo. — Para os manter quentes — respondeu. — Como é possível manter as flores quentes? Elas não andam. — Não posso responder a essa pergunta, Jem Finch. Tudo o que sei é que se esta noite nevar estas plantas vão congelar, por isso estou cobrindo-as. Entendeu? — Sim, senhora. Srta. Maudie? — Sim, caro senhor? — Pode nos emprestar alguma da sua neve, a mim e à Scout? — Façam favor, levem-na toda! Debaixo da casa tem um cesto velho para os pêssegos, levem-na aí. Depois, a Srta. Maudie franziu a sobrancelha, desconfiada: — Jem Finch, o que é que está pensando fazer com a minha neve? — Vai ver — respondeu o Jem e carregamos tanta neve quanto podíamos do pátio da Srta. Maudie para o nosso. Uma operação líquida... — O que é que vamos fazer, Jem? — perguntei eu. — Verá — respondeu. — Agora pega o cesto e traz toda a neve que puder do quintal dos fundos aqui para a frente. Atenção, siga sempre as tuas pegadas — ordenou-me. — Vamos fazer um bebê de neve, Jem? — Não, vamos fazer um boneco de neve de verdade. E agora mãos à obra. O Jem correu para o quintal dos fundos, pegou na enxada do jardim e começou a escavar rapidamente por trás da pilha de lenha, apartando as minhocas que encontrava. Entrou em casa, voltou com o cesto da roupa suja, encheu-o com terra e foi para o pátio. Quando tínhamos cinco cestos cheios de terra e dois de neve, o Jem disse que estávamos prontos para começar. — Não acha qu’isto é um pouquinho imundo? — perguntei. — Agora parece uma sujeira, mas depois não — respondeu. O Jem pegou numa mão cheia de terra, juntou-a até fazer um monte e juntou outra e mais outra até construir um tronco. — Jem, nunca ouvi falar num boneco de neve negro — disse eu. — Não vai ficar negro por muito tempo — retorquiu. Pegou em alguns galhos do pessegueiro do quintal dos fundos, trançou-os e dobrou-os até se tornarem ossos para serem cobertos de terra. — Pareca a Srta. Stephanie Crawford com as mãos nas cinturas. — comentei. — Gorduchinha no meio e com uns braços pequeninhos. — Eu vou fazê-los maiores. O Jem borrifou água para o boneco de lama e acrescentou mais terra. Por um momento pareceu pensativo, depois moldou uma grande barriga abaixo da linha da cintura. Olhou de relance para mim e os seus olhos cintilavam. — O Sr. Avery é mesmo parecido com um boneco de neve, não é? Pegou em alguma neve e começou a revestir o boneco. Só me deixou cobrir as costas, guardando as partes visíveis para ele. Aos poucos o Sr. Avery foi ficando branco. Usando tocos de madeira para os olhos, nariz, boca e alguns botões, o Jem conseguiu fazer com que o Sr. Avery ficasse com um ar zangado. Uma tora de lenha de fogão completou a figura. O Jem deu um passo atrás e observou a sua criação. — ’Tá muito bom, Jem — elogiei. — Só lhe falta falar. — ’Tá legal, não está? — disse ele timidamente. Mal podíamos esperar que o Atticus chegasse em casa para o jantar, por isso telefonamos pra ele e dissemos que tínhamos uma grande surpresa para ele. Pareceu surpreendido quando viu que praticamente todo o nosso quintal dos fundos tinha mudado para o pátio da frente, mas disse que tínhamos feito um trabalho digno de nota. — Confesso que não sabia como é que o ia fazer, filho — virou-se para o Jem — mas a partir de agora nunca mais me preocupo com o teu futuro, porque tem sempre alguma coisa em mente. O Jem corou até às orelhas com os elogios do Atticus, mas levantou logo a cabeça quando viu que o Atticus recuava. O Atticus pôs-se a olhar de soslaio para o boneco durante algum tempo. Sorriu e depois soltou uma gargalhada. — Filho, não sei te dizer o que vai ser quando for grande... engenheiro, advogado ou fotógrafo. Acabou de perpetrar aqui um pequeno ato de difamação. Temos de disfarçar este companheiro. O Atticus sugeriu que emagrecêssemos um pouco a parte da frente do boneco, trocássemos o pau de lenha por uma vassoura e lhe colocássemos um avental. O Jem explicou que se fizéssemos, o boneco de neve acabaria por ficar lamacento e assim deixaria de ser um boneco de neve. — Não me interessa o que vai fazer, desde que faça alguma coisa — disse o Atticus. — Não pode andar por aí fazendo caricaturas dos vizinhos. — Não é uma caricatura — defendeu-se o Jem. — É apenas parecido com ele. — O Sr. Avery pode não pensar da mesma forma. — Já sei! — disse o Jem. Atravessou a rua correndo, desapareceu no quintal dos fundos da Srta. Maudie e voltou triunfante. Enfiou o chapéu de palha dela na cabeça do boneco e meteu-lhe a tesoura de poda debaixo do braço. O Atticus disse que assim estava bem. A Srta. Maudie abriu a porta da frente e veio à varanda. Olhou para nós do outro lado da rua. Subitamente, esboçou um sorriso. — Jem Finch — chamou. — Seu diabinho, devolve-me já o meu chapéu! O Jem olhou para o Atticus, que abanou a cabeça. — Ela está brincando — sossegou. — Ela está verdadeiramente impressionada com a tua... obra de arte. O Atticus caminhou até na calçada da Srta. Maudie, local onde teve início uma conversa pontuada por muitos gestos. A única frase que consegui perceber foi «...ergueram um verdadeiro hermafrodita naquele pátio! Jamais será capaz de educá-los, Atticus!» Durante a tarde parou de nevar, a temperatura baixou e, ao anoitecer, as piores previsões do Sr. Avery concretizaram-se: a Calpurnia manteve todas as lareiras da casa acesas, mas nós ainda sentíamos um imenso frio. Naquela noite, quando o Atticus regressou pra casa, disse que o frio tinha vindo para ficar e perguntou se a Calpurnia queria ficar pra dormir em nossa casa. A Calpurnia olhou para o pé-direito alto e para as enormes janelas e disse que se sentiria mais quente e aconchegada na casa dela. Então o Atticus foi levá-la pra casa de carro. Antes de adormecer o Atticus colocou mais carvão na braseira do meu quarto. Disse que o termômetro marcava nove graus negativos, que era a noite mais fria de que tinha memória e que, lá fora, o boneco de neve estava congelado. Alguns minutos mais tarde, pareceu-me, fui acordada por alguém me sacudindo. O sobretudo do Atticus estava estendido sobre mim. — Já é de manhã? — Levante-se amor. O Atticus estava segurando o meu roupão de banho e um casaco. — Veste primeiro o roupão — indicou. O Jem estava ao lado do Atticus, despenteado e caindo de sono. Uma mão segurava o sobretudo junto ao pescoço e a outra estava metida no bolso. Parecia estranhamente obeso. — Depressa, querida — disse o Atticus. — Aqui estão seus sapatos e as meias. Meia estúpida, calcei-os. — Já é de manhã? — Não, mas já passa da uma da manhã... Vai. Por fim percebi de que havia algo de errado. — O que está acontecendo? Naquela altura era desnecessário alguém me explicar. Tal como os pássaros sabem para onde ir quando chove, eu sabia quando acontecia algo de mal na nossa rua. Assustada, ouvia lá fora um inquietante roçar de roupas e o barulho abafado de gente em correria nervosa. — Onde é? — Na casa da Srta. Maudie, querida — respondeu o Atticus com brandura. Da nossa porta da frente víamos as labaredas irrompendo pelas janelas da sala de jantar da Srta. Maudie. E, como que a confirmar a nossa visão, a sirene dos bombeiros da cidade fez-se ouvir estridentemente até ao topo da escala e depois manteve-se nesse tom, em altos berros. — Vai passar, não vai? — gemeu o Jem. — Espero que sim — disse o Atticus. — Agora ouçam, os dois. Desçam a rua e fiquem em frente à Casa dos Radley. E mantenham-se fora do caminho, estão ouvindo? Vejam para que lado o vento está soprando, está bem? — Ahm — disse o Jem. — Atticus, acha que devemos começar a retirar a mobília? — Ainda não, filho. Faz o que te digo. Vão logo. Toma conta da Scout, ouviu? Não tire os olhos dela. Com um empurrão, o Atticus nos direcionou para o portão da frente da Casa dos Radley. Ficamos vendo a rua repleta de homens e carros enquanto o fogo devorava silenciosamente a casa da Srta. Maudie. — Mas por que é que eles não se apressam, por que é que eles não vem rápido... — murmurava o Jem. Depois vimos porquê. O velho caminhão dos bombeiros, morto de frio, estava sendo empurrado desde a cidade por uma multidão de homens. Quando os homens ligaram a sua mangueira a uma hidrante, a mangueira arrebentou e a água espalhou-se, inundando o pavimento. — Ai meu Deus, Jem. O Jem colocou o braço à minha volta. — Calma, Scout — disse ele. — Ainda não é hora para preocupações. Eu te digo quando for. Os homens de Maycomb, uns mais vestidos, outros menos, mudaram a mobília da Srta. Maudie de dentro de casa para o pátio do outro lado da rua. Vi o Atticus carregando a pesada cadeira de balanço da Srta. Maudie e pensei como era sensato da parte dele salvar o objeto que lhe era mais valioso. Às vezes ouvíamos gritos. Depois, apareceu a cara do Sr. Avery numa das janelas do primeiro andar. Atirou um colchão para a rua pela janela e começou a atirar a mobília até os homens gritarem: — Sai daí, Dick! As escadas estão quase destruídas! Saia daí, Sr. Avery! O Sr. Avery se preparava para sair pela janela. — Scout, ele está encurralado... — sussurrou o Jem. — Ai meu Deus... O Sr. Avery estava entalado na janela. Enterrei a minha cabeça debaixo do braço do Jem e só voltei a olhar quando o Jem gritou: — Ele se soltou, Scout! Ele ’tá bem! Olhei para cima e vi o Sr. Avery atravessando a varanda do primeiro andar. Passou as pernas por cima do corrimão e preparava-se para descer um pilar quando escorregou. Caiu com um grito e acertou em cheio na cerca viva da Srta. Maudie. De súbito, reparei que os homens se afastavam da casa da Srta. Maudie e que estavam agora descendo rua abaixo na nossa direção. Já não carregavam mobília. O fogo consumia o segundo andar e começava agora a abrir caminho para o telhado: os caixilhos das janelas eram molduras pretas contrastando com um centro laranja vivo. — Jem, parece uma abóbora... — Scout, olha! Rolos de fumaça saíam da nossa casa e da da Srta. Rachel como o nevoeiro sai das margens de um rio, e os homens tentavam tudo para aproximar as mangueiras. Atrás de nós, o carro dos bombeiros de Abottsville apitou a sirene ao desfazer a curva, parando à frente da nossa casa. — Aquele livro... — disse eu. — O quê? — perguntou o Jem. — Aquele livro do Tom Swift, não é meu, é do Dill... — Não se preocupe, Scout, ainda não está na hora de se preocupar — disse o Jem. E depois apontou. — Olhe pr’á lá. O Atticus estava parado, mãos nos bolsos do sobretudo, juntamente com um grupo de vizinhos. Parecia que estava assistindo a um jogo de futebol. A Srta. Maudie estava ao lado dele. — ’Tá vendo, ele ainda não está preocupado — disse o Jem. — Mas por qu’e qu’ele não ’stá no telhado duma das casas? — É muito velho, pode quebrar o pescoço. — ‘Ocê acha que o devemos obrigar a tirar as nossas coisas de lá de dentro? — Não vamos incomodar, ele decerto saberá quando for a hora certa — reafirmou o Jem. O caminhão dos bombeiros de Abbottsville começou a bombear água para a nossa casa; no telhado, um homem ia apontando para os locais onde era mais necessário. Vi o nosso Morfrodita Perfeito ficando preto e desmoronando; o chapéu de palha da Srta. Maudie permanecia por cima do monte. Só não conseguia ver a sua tesoura de poda. Com o calor que estava entre a nossa casa, a da Srta. Rachel e a da Srta. Maudie, os homens há muito que tinham despido os casacos e os roupões. Trabalhavam de pijama ou com as camisas de noite metidas dentro das calças, mas aos poucos fui percebendo que estava literalmente me congelando naquele local. O Jem tentava me manter quente, mas o braço dele não chegava. Libertei-me dele e pus as mãos nos ombros. Se dançasse um pouquinho, era capaz de sentir os pés. Surgiu outra viatura dos bombeiros e parou em frente da casa da Srta. Stephanie Crawford. Como não havia hidrante para outra mangueira, os homens tentaram molhar a casa dela com extintores. O telhado de zinco da Srta. Maudie ia conseguindo controlar as chamas. Rugindo, a casa desmoronou; o fogo espalhou-se por todo o lado, seguido por um tumulto de homens armados de cobertores que, do topo das casas adjacentes, tentavam apagar fagulhas e pedaços de madeira ardendo. O amanhecer despontou antes mesmo que os homens começassem a ir embora, primeiro um a um, depois em grupo. Empurraram o caminhão dos bombeiros de Maycomb de volta até à cidade, o caminhão de Abbottsville partiu e só o terceiro ficou. No dia seguinte, descobrimos que tinha vindo de Clark’s Ferry, a quase cem quilômetros de distância. Eu e o Jem atravessamos a rua. A Srta. Maudie estava parada olhando para o buraco negro fumegante no seu terreno e o Atticus nos fez sinal com a cabeça alertando-nos de que ela não queria falar. Levou-nos para casa, abraçado a nós, como que nos aconchegando face àquela rua gelada. Disse que a Srta. Maudie iria ficar na casa da Srta. Stephanie durante algum tempo. — Alguém quer chocolate quente? — perguntou. Estremeci quando o Atticus acendeu o fogão da cozinha. Enquanto bebíamos o nosso cacau, reparei que o Atticus estava olhando para mim, primeiro com curiosidade, depois com severidade. — Pensei que eu tinha dito para ficarem quietos — começou. — Porquê, mas nós ficamos. Sério que ficamos... — Então de quem é esse cobertor? — Cobertor? — Sim, senhora, cobertor. Não é nosso. Olhei para baixo e reparei que estava embrulhada num cobertor de lã castanho que me cobria os ombros, à moda índia, tipo squaw. — Atticus, não sei, mas pai... eu... Olhei para o Jem à espera de uma resposta, mas o Jem ainda estava mais atônito do que eu. Ele disse que não sabia como tinha ido parar ali, pois tínhamos feito exatamente o que o Atticus tinha dito, mantendo-nos em frente do portão da Casa dos Radley longe de todos, sem nos mexermos um milímetro — o Jem calou-se. — O Sr. Nathan estava no incêndio — balbuciou. — Eu vi, eu vi, estava puxando aquele colchão — eu juro, Atticus... — Tudo bem, filho — o Atticus esboçou um sorriso. — De qualquer forma, parece que Maycomb em peso esteve aqui fora esta noite. Jem, acho que há algum papel de embrulho na despensa. Vai buscá-lo para começarmos a... — Por favor Atticus, não! O Jem parecia que endoidecera de vez. Começou a contar a torto e a direito todos os nossos segredos com total indiferença à minha segurança, se não também à dele, não deixando escapar nada, o buraco da árvore, as calças, tudo, tudo. — ...O Sr. Nathan pôs cimento naquela árvore, Atticus, e fê-lo p’ra nos impedir de encontrar as coisas. — Eu acho qu’ele é doido, tal como dizem, mas Atticus, eu juro por Deus qu’ele nunca nos fez mal, nunca nos fez mal, e naquela noite ele podia ter cortado a minha garganta de orelha a orelha, mas em vez disso tentou remendar as minhas calças... ele nunca nos fez mal, Atticus... O Atticus interrompeu-o, dizendo «Pronto, calma, filho», tão gentilmente que eu fiquei bastante animada. Era óbvio que não tinha percebido uma palavra do que o Jem tinha dito, por isso apenas disse: — Tem razão. É melhor guardarmos isto e o cobertor para nós. Talvez um dia a Scout possa lhe agradecer por tê-la coberto. — Agradecer a quem? — perguntei. — Ao Boo Radley. Estava tão distraída olhando para o incêndio que não reparei quando ele colocou o cobertor nas minhas costas. Senti o meu estômago embrulhando e quase vomitei quando o Jem agarrou no cobertor e se aproximou de mim. — Ele escapou da casa... deu uma volta... e voltou a correu para dentro, assim, num piscar de olhos! O Atticus disse secamente: — Espero que isto não sirva de inspiração para futuras proezas, Jeremy. O Jem começou a zombar: — Não vou lhe fazer nada — só que eu bem via aquela centelha, sinal de novas aventuras, no seu olhar. — Imagina só, Scout — disse ele — se tivesse se virado, tinha lhe visto. A Calpurnia acordou-nos ao meio-dia. O Atticus disse que naquele dia não precisávamos de ir para a escola, já que não se aprendia nada sem uma boa noite de sono. A Calpurnia disse para tentarmos limpar o pátio da frente. O chapéu de palha da Srta. Maudie estava suspenso sobre uma fina camada de gelo, como uma mosca no mel e tivemos de escavar no meio da sujeira para encontrar a tesoura de poda. Fomos encontrá-la no quintal dos fundos olhando para as azaleias geladas e carbonizadas. — Viemos devolver-lhe as suas coisas, Srta. Maudie — disse o Jem. — Lamentamos muito. A Srta. Maudie olhou em volta e a sombra do seu velho sorriso voltou a encher o seu rosto. — Sempre quis ter uma casa mais pequena, Jem Finch. Assim teria mais terreno. Viu, agora tenho mais espaço para as minhas azaleias! — Não ’stá sofrendo, a Srta. Maudie? — perguntei eu, surpreendida. O Atticus tinha me dito que aquela casa era praticamente tudo o que ela tinha. — Sofrendo, querida? Porquê? Detestava aquele estábulo. Pensei em tacar-lhe fogo umas cem vezes, mas acho que assim ia parar na cadeia. — Mas... — Não se preocupe comigo, Jean Louise Finch. Há formas de se fazer as coisas que ainda não conhece. Agora vou construir uma casa mais pequena e arranjar um par de hóspedes... e, se Deus quiser, terei o melhor quintal de todo o Alabama. E quando eu começar aqueles Bellingraths vão ficar roídos de inveja. Eu e o Jem nos olhamos discretamente: — Como é que o fogo se ateou, a Srta. Maudie? — perguntou ele. — Não sei, Jem. Provavelmente devido à fuligem na chaminé da cozinha. Na noite passada deixei o fogão aceso para aquecer umas plantas que tinha nos vasos... Ouvi dizer que teve uma companhia inesperada a noite passada, Jean Louise. — Como é que sabe? — Foi o Atticus que me contou, esta manhã, a caminho da cidade. Olha, vou ser sincera, gostaria de ter estado contigo. E teria tido a esperteza suficiente para olhar para trás. A Srta. Maudie deixou-me intrigada. Tinha perdido a maior parte dos seus bens, o seu amado quintal estava arruinado e, mesmo assim, mantinha aquele interesse vivo e cordial pelos nossos assuntos. Eu acho que ela se percebeu da minha perplexidade. E disse: — A única coisa que me preocupou na noite passada foi o perigo e o sobressalto causados. Podia ter destruído o bairro todo. O Sr. Avery ainda vai ficar de cama uma semana —, está todo chamuscado, coitado. É muito velho para fazer coisas como aquela e eu bem que o avisei. Quando melhorar das mãos e quando a Srta. Stephanie Crawford não estiver olhando, vou lhe fazer um bolo recheado com frutas cristalizadas. Aquela Stephanie já anda atrás da minha receita há trinta anos e se ela pensa que eu agora vou lhe dar só por ficar na casa dela, está muito enganada. Pensei que, mesmo que a Srta. Maudie cedesse e lhe desse, ela nunca o conseguiria fazer. Certo dia, a Srta. Maudie tinha me deixado assistir: entre outras coisas, a receita exigia uma grande xícara de açúcar. O dia estava calmo e tranquilo. O ar estava tão frio e cristalino que ouvíamos o barulho do carrilhão do relógio do tribunal, a chocalhar e a ranger, antes de dar as horas. O nariz da Srta. Maudie tinha uma cor nunca antes vista por mim e me perguntava porquê. — Estou aqui fora desde as seis da manhã — respondeu ela. — A esta hora já devia estar congelada. — Ergueu as mãos. Uma rede de minúsculas linhas cruzava-lhe as palmas das mãos, castanhas e sujas de terra e de sangue seco. — Estragou-as todas — disse o Jem. — Por que não arranja um criado preto? Não havia qualquer nota de sacrifício na sua voz quando, mais tarde, acrescentou: — Ou então, eu e a Scout, nós podemos ajudá-la. A Srta. Maudie respondeu: — Obrigado, amigo, mas o teu trabalho é lá. — E apontou para o nosso quintal. — ’Tá se referindo ao morfrodita? — perguntei eu. — Sabe o que mais, a gente despacha aquilo num instante! A Srta. Maudie ficou olhando para mim, mexendo os lábios silenciosamente. De repente, levou as mãos à cabeça e começou a rir. Quando a deixamos, ainda estava rindo. O Jem disse que não sabia bem o que se passava com ela — mas que aquela era mesmo a Srta. Maudie. IX — RETIRE JÁ O QUE disse, rapaz! Esta ordem, dada por mim ao Cecil Jacobs, marcava o início de tempos um tanto ou quanto conturbados, tanto para mim, como para o Jem. Cerrei os punhos e estava pronta para atacar. O Atticus já tinha prometido que me castigaria se soubesse que eu tinha andado brigando; já era bem crescidinha para coisas tão infantis, e quanto mais cedo aprendesse a me controlar, melhor seria para todos. Mas depressa me esqueci de tudo isso. A culpa foi toda do Cecil Jacobs. Tinha andado dizendo no recreio da escola que o paizinho da Scout Finch defendia os pretos. Eu neguei, mas depois até contei ao Jem. — O qu’e qu’ele q’ria dizer com aquilo? — perguntei. — Nada — disse o Jem. — Pergunta ao Atticus, ele te explica. — Defende pretos, Atticus? — perguntei-lhe eu nessa mesma tarde. — Claro que sim. Não diga preto, Scout. É feio. — Mas’e o qu’todo mundo diz na escola. — Então, a partir de agora passa a ser todo mundo, menos uma pessoa... — Mas então, se não quer que cresça falando desta maneira, por que é que me manda p’rá escola? O meu pai olhou para mim de forma indulgente. Via que estava obviamente se divertindo. Apesar do nosso compromisso, a minha campanha para evitar a escola tinha continuado aqui e ali, desde a minha primeira dose de aula: o início de Setembro último tinha trazido consigo depressões, tonturas e leves queixas gástricas. Cheguei ao ponto de pagar uma moeda só para ter o privilégio de esfregar a minha cabeça contra a do filho da cozinheira, a Srta. Rachel, que sofria de tremendas impigens. Não adiantou. Só que agora havia outra coisa que me incomodava. — Todos os advogados defendem pre... negros, Atticus? — Claro que sim, Scout. — Então, por que é que o Cecil diz que ’ocê defende preto? É que ele deu a entender que faz alguma coisa fora do comum. O Atticus suspirou: — Neste momento estou defendendo um negro... chama-se Tom Robinson. Vive naquela pequena casa que fica além da lixeira da cidade. É membro da igreja da Calpurnia e a Cal conhece bem a família dele. Diz que são gente honesta. Scout, ainda não tem idade para compreender determinadas coisas, mas correm alguns rumores na cidade sobre este caso e dizem que eu não devia fazer muito para defender este homem. É um caso peculiar... só será julgado na audiência de Verão. O juiz John Taylor foi suficientemente simpático para nos conceder um adiamento... — Se não o devia estar defendendo, então por que é que o faz? — Por muitas e variadas razões — respondeu o Atticus. — A ideia é que, se não o defendesse, não poderia andar de cabeça erguida na cidade, não poderia representar este condado na comissão legislativa, nem sequer poderia dar ordens a ti e ao Jem. — Quer dizer que se não defendesse aquele homem, eu e o Jem não tínhamos de nos ralar mais? — Correto. — Porquê? — Porque nunca mais eu podia dizer para me obedecerem. Scout, devido à natureza do seu trabalho, ao longo da sua vida um advogado tem sempre um caso que o afeta a nível pessoal. Penso que este é o meu. Com certeza vai ouvir algumas coisas desagradáveis na escola, mas me faça um grande favor: mantenha a cabeça levantada e os punhos em baixo. Não ligue pro que te digam e, sobretudo, não deixe que eles te irritem. Tenta, para variar, lutar com a cabeça... Verá que é uma boa solução, embora custe a aprender. — Atticus, vai ganhar o caso? — Não, querida. — Então, mas porque... — Porque fomos derrotados há cem anos, não significa que agora não possamos tentar ganhar — disse o Atticus. — Parece mesmo o primo Ike Finch — disse eu. O primo Ike Finch era o único sobrevivente de Maycomb County da guerra da Secessão. Usava uma barba tipo general Hood na qual depositava extremo orgulho. Pelo menos uma vez por ano, eu e o Jem íamos visitá-lo e eu tinha de lhe dar um beijo. Era horrível. Depois, eu e o Jem ficávamos ouvindo respeitosamente ele e o Atticus revivendo a guerra. — Te digo uma coisa, Atticus — dizia o primo Ike — o que nos derrotou foi o Compromisso do Missouri, mas se pudesse voltar atrás repetia passo a passo o que fiz e desta vez haveríamos de os vencer... agora em 1864 quando apareceu o Stonewall Jackson... desculpe crianças. Nessa altura o velho Blue Light estava no céu, Deus dê descanso à sua alma... — Vem aqui, Scout — disse o Atticus. Subi para o colo dele e aninhei-me, encaixando a cabeça debaixo do queixo dele. Ele pôs os braços à minha volta e começou a embalar-me suavemente. — Só que desta vez é diferente — disse ele. — Desta vez não estamos lutando contra os ianques, estamos é lutando contra os nossos amigos. Mas lembre-se de uma coisa, por mais complicadas que as coisas se tornem, eles continuam sendo nossos amigos e esta continua a ser a nossa casa. Com este pensamento em mente, no dia seguinte decidi enfrentar o Cecil Jacobs no pátio da escola: — Então, vai retirar o que disse, rapaz? — Ora me obrigue! — gritou ele. — Os meus pais disseram qu’o teu era uma vergonha e c’aquele preto devia ser era enforcado no depósito da água! Preguei-lhe um soco, mas depois me lembrei do que o Atticus tinha dito, baixei os punhos e lhe virei as costas, escutando-o aos gritos: — A Scout é uma grande co... varde! — Foi a primeira vez que desisti de uma luta. De certo modo, se tivesse lutado com o Cecil estaria desiludindo o Atticus. O Atticus raramente pedia pra mim ou ao Jem para fazermos alguma coisa por ele. Acho que por ele, aguentava ser chamada de covarde. Sentia-me extremamente nobre por me ter lembrado e assim permaneci durante três semanas. Depois veio o Natal e foi então que a bomba explodiu. Eu o Jem víamos o Natal com sentimentos antagônicos. O seu lado bom era a árvore e o tio Jack Finch. Todas as vésperas de Natal, lá íamos nós buscar o tio Jack na Maycomb Junction e ele passava uma semana conosco. O reverso da medalha era caracterizado pelos traços intransigentes da tia Alexandra e do Francis. Penso que também devo incluir o tio Jimmy, o marido da tia Alexandra, mas como ele nunca na vida me tinha dirigido a palavra exceto uma vez para dizer, «Sai de cima da cerca», não via razão para o incluir. Nem tão pouco à tia Alexandra. Há muito tempo atrás, num acesso de pura amizade, a minha querida titi e o tio Jimmy produziram um filho, deram o seu nome de Henry, que saiu de casa, tão rápido quanto lhe foi humanamente possível, casou e, por sua vez, acabou por gerar o Francis. Todos os Natais, o Henry e a sua esposa deizxavam o Francis nos avós para depois partirem em busca dos seus próprios prazeres. Não havia nostalgia suficiente que levasse o Atticus a nos deixar passar o dia de Natal em casa. Desde que me lembro, passávamos todos os Natais na Fazenda Finch. O fato de a tia ser uma boa cozinheira compensava o fato de ser obrigada a passar um feriado religioso com o Francis Hancock. Era um ano mais velho do que eu e, regra geral, eu fazia tudo para o evitar: gostava de tudo o que eu desaprovava e detestava as minhas engenhosas brincadeiras. A tia Alexandra era irmã do Atticus, mas quando o Jem me contou histórias sobre trocas e confusões entre irmãos, decidi logo que ela devia ter sido trocada no nascimento e que talvez os meus avós tivessem recebido uma Crawford em vez de uma Finch. Se alguma vez tivesse acolhido aquelas noções místicas sobre montanhas que tanto parecem obcecar os advogados e os juízes, então a tia Alexandra seria comparável ao Monte Everest: ao longo da minha infância, ela foi sempre fria e distante e, no entanto, imperturbavelmente presente. Quando o tio Jack saltou do comboio na véspera de Natal, tivemos de esperar que o bagageiro lhe entregasse dois grandes embrulhos. Eu e o Jem achávamos sempre uma piada quando o tio Jack dava um beijo na cara do Atticus; eram os únicos dois homens que alguma vez vi se beijando. O tio Jack dava um aperto de mão do Jem e me pegava no colo, lançando-me bem alto no ar; a bem dizer, não o suficientemente alto: é que o tio Jack era um palmo mais baixo do que o Atticus; o caçula da família, era mais novo do que a tia Alexandra. Ele e a nossa tia eram parecidos, mas o tio Jack era bem mais favorecido em termos de cara: raramente nos notávamos o seu queixo e nariz afiados. Era dos poucos homens de ciência que não me amedrontavam, muito provavelmente porque nunca se comportava como um médico. Quando desempenhava um pequeno serviço a mim ou ao Jem, como retirar uma farpa de um pé, dizia-nos exatamente o que estava fazendo, dava-nos sempre uma estimativa de quanto ia doer e que uso iria dar a alguma pinça que utilizasse. Certo Natal eu andava fugindo pelos cantos, às voltas com uma farpa espetada no pé, não deixando que ninguém chegasse perto de mim. Quando o tio Jack me pegou, pôs-me logo a rir, me contando uma história de um padre que detestava tanto ir à igreja que ficava parado todos os dias no portão da frente de sua casa, enfiado na sua batina, fumando narguilé e pregando sermões de cinco minutos aos transeuntes que desejassem algum conforto espiritual. Interrompi-o só para lhe pedir que me avisasse quando ia arrancar, mas nessa altura ele já segurava uma farpa ensanguentada num par de pinças e disse que a tinha extraído enquanto eu ria e que, no fundo, aquilo era o que vulgarmente se chamava «relatividade». — O que é que está dentro daquelas caixas? — perguntei-lhe, apontando para uns pacotes finos e compridos que o bagageiro lhe tinha dado. — Não tem nada com isso — respondeu. O Jem disse: — Como vai a Rose Aylmer? A Rose Aylmer era a gata do tio Jack. Era uma bela mulher de cor amarela e o tio Jack disse que era uma das poucas mulheres que conseguia suportar permanentemente. Meteu a mão no bolso e tirou algumas fotografias. Ficamos admirando-as. — Está mais gorda — disse eu. — Também acho que sim. Come todos os restos, orelhas e dedos que lhe trago do hospital. — O raio dessa história é mesmo de partir o coco! — disse eu. — O quê? O Atticus interrompeu: — Não lhe preste atenção, Jack. Só está te pondo à prova. A Cal diz que ela anda praguejando há uma semana. O tio Jack levantou as sobrancelhas e não disse nada. A minha teoria obscura era que, além da atração inata por aquelas palavras, se o Atticus descobrisse que eu as tinha aprendido na escola, talvez me proibisse de ir para lá. Mas naquela noite, no jantar, quando lhe pedi para ele me passar por favor o raio do fiambre, o tio Jack apontou para mim. — Depois falamos, minha menina — ameaçou. Quando acabamos de jantar, o tio Jack foi para a sala de estar e sentou-se. Bateu nas coxas para eu me sentar no colo dele. Gostava do seu cheiro: era como uma garrafa de álcool, só que misturada com alguma coisa agradavelmente doce. Puxou as minhas mexas para trás e olhou para mim. — Está se parecendo mais com o Atticus do que com a tua mãe — disse ele. — E também anda meio que desbocada. — Acho que já não sou nenhum neném... — Agora gosta de falar palavras como «raio» e «diabo», não é? Reconheci que sim. — Pois eu não gosto mesmo — disse o tio Jack — a não ser que haja extrema provocação ligada a elas. Olha, vou ficar aqui uma semana e não quero ouvir esse gênero de palavras enquanto estiver aqui, está bem? Ainda vai se meter em apuros se continuar falando assim, Scout. Você quer crescer e ser uma senhora, não quer? Eu respondi que não por isso. — Claro que quer. Anda, agora vamos fazer a árvore. Ficamos decorando a árvore até à hora de ir dormir e nessa noite sonhei com dois enormes presentes destinados pra mim e pro Jem. Na manhã seguinte, eu o Jem, fomos direitinhos à procura deles: eram do Atticus, que tinha escrito ao tio Jack para as trazer para nós e correspondiam exatamente àquilo que nós tínhamos pedido. — Não a aponte pra dentro de casa — advertiu o Atticus, quando o Jem apontou a espingarda para um quadro na parede. — Tem de os ensinar disparando — disse o tio Jack. — Essa é a tua função — disse o Atticus. — Limitei-me a adiar o inevitável. O Atticus teve de fazer uso da sua voz de tribunal para nos obrigar a nos afastar da árvore. Não permitiu que levássemos as nossas espingardas de pressão para a Fazenda (confesso que já estava imaginando em alvejar o Francis) e disse que se déssemos um passo em falso as retiraria de vez das nossas mãos. A Fazenda Finch consistia numa ribanceira de trezentos e sessenta e seis degraus que desciam a pique até culminarem num cais. A jusante do rio, depois da ribanceira, havia vestígios de uma velha plantação de algodão, onde os negros Finch tinham carregado fardos e outros produtos agrícolas, descarregado blocos de gelo, farinha e açúcar, equipamento de lavoura e vestuário feminino. Um pequeno caminho de bois estendia-se ao longo da margem do rio e desaparecia na escuridão das árvores. No fim dessa estrada havia uma casa branca de dois andares com varandas em toda a volta, em cima e em baixo. O nosso antepassado, Simon Finch, tinha-a construído na sua velhice para agradar à sua irritante mulher; porém, qualquer semelhança com as outras casas da época terminava apenas nas varandas. A decoração interior da mansão Finch era um reflexo da sua absoluta ingenuidade e da total confiança que Simon depositava na sua prole. No andar de cima havia seis quartos, quatro para as oito meninas, um para o Welcome Finch, o seu único filho, e ainda outro para as visitas. Tudo bastante simples; só que o acesso aos quartos das filhas apenas podia ser feito por um lanço de escadas, enquanto o acesso aos quartos do Welcome e das visitas era feito por outra escadaria. Dado que a Escadaria das Meninas terminava no quarto dos pais, no andar térreo, Simon sabia sempre as horas das entradas e saídas noturnas das filhas. Havia uma cozinha separada do resto da casa, cujo acesso era feito através de um passadiço de madeira; no quintal dos fundos existia um sino ferrugento pendurado num poste que servia para chamar os trabalhadores dos campos ou como sinal de alerta; no telhado havia um varandim tipo «passeio das viúvas», só que nenhuma viúva passeava por ali — era daí que Simon supervisionava o capataz, observava os barcos no rio e bisbilhotava as vidas dos outros latifundiários da vizinhança. Com a casa havia também a habitual lenda sobre os ianques: uma das mulheres Finch, noiva há pouco tempo, vestiu o seu enxoval completo para a salvar dos invasores que se aproximavam; ficou, entretanto, presa na porta da Escadaria das Meninas, mas molharam-na toda e ela finalmente conseguiu se soltar. Quando chegamos à Fazenda, a tia Alexandra beijou o tio Jack, o Francis beijou o tio Jack, o tio Jimmy deu um aperto de mão silencioso ao tio Jack e eu e o Jem demos os nossos presentes ao Francis, que por sua vez também nos deu um presente. O Jem tomou, de repente, consciência da sua idade e gravitou rapidamente para a órbita dos adultos, me deixando sozinha entretendo o meu primo. O Francis tinha oito anos e o cabelo penteado para trás. — O que é que ganhou no Natal? — perguntei educadamente. — Aquilo mesmo que tinha pedido — respondeu-me. O Francis tinha pedido um par de calções, uma pasta para os livros em couro vermelho, cinco camisas e um laço. — Isso é muito legal — menti eu. — Olha eu e o Jem ganhamos umas espingardas de pressão e o Jem ainda ganhou um estojo de química... — Um de brincar? — Não, um de verdade. Vai me fazer tinta invisível para eu depois escrever ao Dill com ela. O Francis perguntou qual a utilidade daquilo. — Bem, imagina só a cara dele quando receber uma carta minha sem nada escrito? Vai ficar todo maluco! Falar com o Francis dava-me a sensação de estar descendo lentamente até ao fundo do mar. Era a criança mais aborrecida que algum dia tinha conhecido. Como vivia em Mobile, não podia fazer queixa de mim junto às autoridades escolares, mas arranjava mil maneiras de ir contar tudo o que sabia pra tia Alexandra, que por sua vez descarregava tudo no Atticus, que ou esquecia ou me infernizava a vida, dependendo da sua vontade. Mas a única vez que vi o Atticus falando agressivamente para alguém foi numa altura em que o ouvi dizer: — Mana, eu faço o melhor que posso com eles! — Acho que tinha alguma coisa a ver com o fato de eu andar de jardineiras. O tema do meu vestuário era uma verdadeira obsessão para a tia Alexandra. Nunca mais me tornaria numa senhora se usasse calções; quando eu lhe disse que para mim um vestido não tinha utilidade nenhuma, ela me respondeu que não era bonito eu andar fazendo coisas que exigissem um par de calças. A visão da tia Alexandra sobre o meu comportamento envolvia brincar com pequenos fogões, serviços de chá e usar o colar de pérolas que ela tinha me dado quando eu nasci; além disso, eu devia era ser um raio de sol na solitária vida do meu pai. Eu lembrei-a que também se pode ser um raio de sol com calças, mas a tia contra-argumentou que nós tínhamos que nos comportar como um raio solar, que eu nascera boazinha, mas que cada ano que passava eu estava pior. Me magoava constantemente e me deixava com os nervos em frangalhos, mas quando contei tudo ao Atticus, ele me sossegou, dizendo que já havia raios de sol que chega na família e para eu continuar a viver a minha vida, que ele não se importava muito com a minha maneira de ser. No jantar de Natal, fiquei sentada numa pequena mesa na sala de jantar; o Jem e o Francis ficaram sentados à mesa de jantar com os adultos. A minha querida tia insistia em isolar-me, mesmo depois do Jem e do Francis terem sido promovidos para a mesa grande. De vez em quando ficava imaginando o que é que ela pensava que eu era capaz de fazer. Levantar-me da mesa e atirar com qualquer coisa? Às vezes eu desejava pedir para ela me deixar sentar à mesa grande com as outras pessoas, para que lhe pudesse mostrar como eu era civilizada; afinal de contas, comia todos os dias em casa sem contratempos maiores. Quando pedi ao Atticus para fazer uso da sua influência, ele disse que não tinha nenhuma — éramos convidados, e sentávamos onde nos indicassem. Depois aproveitou para dizer que a tia Alexandra não compreendia muito bem as meninas pois nunca tinha tido uma. Mas os seus cozidos desculpavam tudo: três tipos de carne, legumes de Verão vindos diretamente das prateleiras da sua dispensa, pêssego em conserva, dois tipos de bolo e ambrosia, esta era a ementa do nosso modesto jantar de Natal. Mais tarde, os adultos dirigiram-se à sala de estar e sentaram-se num ligeiro estado de ébria sonolência. O Jem deixou-se ficar deitado no chão e eu fui para o quintal dos fundos. — Veste o casaco — disse o Atticus meio nas nuvens, por isso não lhe obedeci. O Francis sentou-se atrás de mim nos degraus. — Este foi sem dúvida o melhor jantar que tivemos — comecei. — A vó é uma ótima cozinheira — disse o Francis. — E vai me ensinar. — Os rapazes não cozinham — dei uma risada ao imaginar o Jem de avental. — A vó diz que todos os homens deviam aprender a cozinhar, qu’os homens devem ser cuidadosos com as suas mulheres e tomar conta delas quando elas não se sentem bem — afirmou o meu primo. — E eu lá quero que o Dill me sirva — disse eu. — Prefiro é servir a ele. — O Dill? — Sim. Não conte a ninguém, mas logo que formos suficientemente crescidos vamos casar. Pediu-me em casamento no Verão passado. O Francis começou a me gozar. — Mas qu’e qu’ele tem de mal? — perguntei eu. — Não há mal nenhum com ele. — Quer dizer aquele magricela de que a vó fala que vai para casa da Srta. Rachel todos os Verões? — Esse mesmo. — Sei tudo sobre ele — disse o Francis. — E o que é que sabe? — A vó disse que ele não tem casa... — Claro que tem, vive em Meridian. — ...que anda à deriva, de parente em parente, e que a Srta. Rachel fica com ele durante o Verão. — Isso é mentira, Francis! O Francis sorriu para mim. — Às vezes ‘ocê é mesmo burra, Jean Louise. ‘ocê é mesmo uma tapada, nem precebe as coisas que passam do teu lado, não é? — O que é que quer dizer com isso? — Se o tio Atticus te deixa andar com cães vadios, isso é problema dele, como a vó diz, por isso a culpa não pode ser tua. Pensando bem até ‘ocê não tem culpa por o Atticus ser amigo dos negros, mas problema é qu’isso anda preocupando o resto da família... — Francis, que diabo quer dizer com isso? — Apenas aquilo que já te disse. A vó diz que já é ruim ele te deixar andar por aí vadiando, mas agora que se tornou amigo dos negros nunca mais poderemos voltar a andar pelas ruas de Maycomb. Está arruinando a família, é isso que ele está fazendo. O Francis levantou-se e correu pelo passadiço de madeira até à velha cozinha. Quando atingiu uma margem de segurança gritou: — Não passa é de um amiguinho dos negros! — Não é nada! — eu rugi. — Não sei do que tá falando, mas é bom que retire neste preciso momento! Fiquei de pé num pulo e comecei a correr pelo passadiço abaixo. Foi fácil pegar o Francis pelo colarinho. Ordenei que ele retirasse depressa o que tinha dito. O Francis deu um puxão para trás, soltou-se e enfiou-se na cozinha velha: — Amigo dos negros! — gritou. Quando se está perseguindo uma presa, o melhor é fazê-lo com tempo. Se não falarmos, é tão certo como dois e dois serem quatro que ela acaba por ficar impaciente e sai da toca. O Francis apareceu na porta da cozinha. — Ainda está zangada, Jean Louise? — perguntou ele, cauteloso. — Não tenho nada p’ra falar — disse eu. O Francis veio para o passadiço. — Vai retirar o que disse, Fra... ancis? — só que não prestei a atenção devida. O Francis fugiu para a cozinha, por isso retirei-me para os degraus. Podia esperar pacientemente. Estava sentada há cinco minutos quando ouvi a tia Alexandra perguntar: — Onde é que está o Francis? — Foi p’ra lá, brincar na cozinha. — Ele sabe que não pode ficar brincando ali. O Francis veio na porta e gritou: — vó, ela me trancou aqui e agora não me deixa sair! — O que é que está acontecendo, Jean Louise? Virei a cabeça para cima e encarei a tia Alexandra: — Não tranquei ninguém ali, tia, nem o estou prendendo. — Está sim, vó — gritou o Francis — ela não me deixa sair! — Estiveram discutindo? — A Jean Louise está fula comigo, vó — disse o Francis. — Francis, vem aqui! Jean Louise, se ouço mais outra queixa sobre você, eu vou falar p’ro teu pai. Me parece que eu ouvir você dizer «diabo», é verdade? — Não, s’nhora. — Foi o que me pareceu. Espero não tornar a ouvir essas coisas. A tia Alexandra era uma mexeriqueira. Quando ela virou as costas o Francis veio para fora com a cabeça erguida e rindo. — Não se mete comigo — ameaçou. Saltou para o quintal e manteve a distância, dando pontapé em tufos de grama e, de vez em quando, virando e rindo para mim. O Jem veio à varanda, olhou para nós e voltou para dentro. O Francis trepou na acácia, desceu, meteu as mãos nos bolsos e começou a passear ao redor do quintal. — Ah! — recomeçou. Perguntei-lhe quem é que ele pensava que era, o tio Jack? O Francis disse que como tinham me dado uma valente descompostura, eu devia mais era ficar sentada e deixá-lo em paz. — Eu nem estou te incomodando — disse eu. O Francis me olhou de alto a baixo, concluiu que eu já tinha sido suficientemente humilhada e sussurrou em tom suave e provocador: — Amiguinho dos negros... Não aguentei, depois dessa eu até esfolei os nós dos dedos contra os dentes dele. Como fiquei lesionada na esquerda, aproveitei para lhe acertar com a direita, mas não por muito tempo. É que o tio Jack me segurou os braços e disse: — Parada, já! A tia Alexandra começou a tratar do Francis, enxugando-lhe as lágrimas com o lenço, ajeitando-lhe o cabelo e fazendo-lhe carícias no rosto. O Atticus, o Jem e o tio Jimmy já tinham chegado à varanda quando o Francis começou a chorar, aos gritos. — Quem é que começou? — perguntou o tio Jack. Eu e o Francis apontamos um para o outro. — ’Vó — balbuciou ele —, ela me chamou e saltou para cima de mim! — É verdade, Scout? — questionou o tio Jack. — Se ele diz. Quando o tio Jack olhou para mim, as suas feições ficaram parecidas com as da tia Alexandra. — Sabe que te disse que ainda ia se meter em apuros se usasse esse tipo de linguagem? Eu te avisei, não avisei? — Sim, senhor, mas... — Bom, e aqui está você metida num apuro e dos grandes. Fica aí. Me pus a pensar com os meus botões para ver se ficava ou fugia, só que demorei tempo demais pra tomar uma decisão: tentei me virar para escapar, mas o tio Jack foi mais rápido. Num abrir e fechar de olhos e lá estava eu, estendida no meio do relvado, observando uma formiguinha se debatendo com uma pequena migalha de pão. — Enquanto for viva, nunca mais falo contigo! Te detesto, te desprezo e espero que morra amanhã! Frase esta que, aliás, pareceu dar ainda mais ânimo ao tio Jack. Corri para o Atticus em busca de algum conforto, mas ele disse que eu já sabia que aquilo ia acabar acontecendo e que o melhor era irmos para casa porque já era tarde. Subi para o assento de trás do carro sem me despedir de ninguém e, uma vez chegada a casa, corri para o meu quarto e bati com a porta. O Jem tentou dizer alguma coisa agradável, mas não deixei. Quando fiz a inspeção geral aos danos reparei que só havia sete ou oito marcas vermelhas e estava refletindo sobre a sua relatividade quando alguém bateu na porta. Perguntei quem era; respondeu-me o tio Jack. — Sai daqui! O tio Jack disse que se eu lhe voltasse a falar assim ele voltava a me dar uma surra, por isso me mantive calada. Quando ele entrou no quarto refugiei-me num canto e virei-lhe as costas. — Scout — disse ele —, ainda está zangada comigo? — Por favor, vai embora, tio. — Mas porquê, se quer que te diga, achei que você não ia ficar chateada comigo — disse ele. — Mas sabe, você me desiludiu... e já sabia que isso ia acontecer. — Não sabia nada! — Querida, não pode andar por aí insultando as pessoas... — Não ’tá sendo justo — disse eu — não ’tá sendo justo. O tio Jack ergueu as sobrancelhas. — Injusto? Mas porquê? — ’Ocê é muito simpático, tio Jack, e acho que vou continuar a gostar de ti mesmo depois do que me fez, só que ’ocê não compreende bem as crianças. O tio Jack colocou as mãos nas cinturas e olhou para mim: — E por que é que eu não compreendo as crianças, menina Jean Louise? Uma conduta igual à que teve exige muito pouca compreensão. Você foi indisciplinada, desordeira e malcriada... — Me dê uma oportunidade para te explicar? Não quero te incomodar, só quero que me deixem falar. O tio Jack sentou-se na cama. Uniu as sobrancelhas e começou a observar-me por baixo delas. — Continua — pediu. Eu respirei fundo. — Bem, em primeiro lugar, ’ocê nem sequer parou p’ra me deixar te contar a minha versão... caiu logo em cima de mim. Quando normalmente eu e o Jem brigamos o Atticus nunca ouve só a versão da história do Jem, ouve a minha tam’em e, em segundo lugar, ele me disse p’ra só dizer asneiras em casos de provocação extrema e o Francis me provocou o suficiente p’ra lhe arrancar a espinha... O tio Jack coçou a cabeça. — E qual é a tua versão da história, Scout? — O Francis ficou chamando nomes ao Atticus e eu quis que ele retirasse o que disse. — E o que é que o Francis falou do Atticus? — Amiguinho dos negros. Não sei bem o qu’e qu’isso quer dizer, mas a forma como Francis o disse... bom, agora deixa-me que te diga uma coisa, tio Jack, raios m’... juro por Deus que não volto a deixá-lo se sentar ali dizendo essas coisas do Atticus. — Foi disso que ele chamou ao Atticus? — Sim, senhor, chamou, e muito mais. Disse que o Atticus ia ser a ruína da família e que deixavam a mim e ao Jem andar por aí vadiando... Pela expressão no rosto do tio Jack, pensei que estava metida de novo em maus lençóis. Mas quando ele me disse «Temos de tratar do assunto» eu sabia que o Francis é que estava em maus lençóis. — Ora aí está um ótimo motivo para ir lá esta noite. — Por favor, deixa assim. Por favor. — De modo nenhum. Não tenciono deixar as coisas assim — disse ele. — É preciso que a Alexandra esteja a par disto. Só de pensar que... espera até eu pôr as mãos naquele rapaz... — Tio Jack, por favor me promete uma coisa, por favor. Promete que não vai contar nada disto ao Atticus. Ele... ele uma vez me disse para eu não me deixar afetar com as coisas que dizem sobre ele e eu prefiro que ele pense que nós estávamos lutando por outra coisa qualquer. Me promete, por favor... — Mas não me agrada mesmo nada que o Francis saia impune de uma coisa como esta... — Mas ele não saiu impune. Acha que pode fazer o curativo na minha mão? Ainda está sangrando um pouquinho. — Claro que sim, querida. Não conheço eu outra mão que me desse tanto prazer curar. Vem comigo? Com elegância e delicadeza, o tio Jack fez uma mesura guiando-me para o banheiro. Enquanto limpava e ligava os nós dos meus dedos, foi me entretendo com a história de um velho cavalheiro muito míope que tinha um gato chamado Arisco e que contava todas as tábuas na calçada sempre que ia à cidade. — Pronto, aqui está — exclamou. — Vai ficar com uma cicatriz muito pouco apropriada para uma senhora no teu dedo anelar. — Obrigado, Sr. Dr. Tio Jack. Tio, posso fazer uma pergunta? — Diga, minha cara senhora? — O que é uma prostituta? O tio Jack embrenhou-se noutra historieta sobre um velho primeiro-ministro que estava sentado na Câmara dos Comuns e que costumava ficar soprando penas para o ar, tentando mantê-las suspensas, enquanto à sua volta todo mundo parecia perder a cabeça. Acho que, de certa forma, estava tentando responder à minha pergunta, mas no entanto, não fazia sentido nenhum. Mais tarde, quando supostamente já devia estar na cama, desci até ao átrio para ir buscar um copo de água e ouvi o tio Jack e o Atticus na sala de estar: — Nunca vou casar, Atticus. — Porquê? — Porque posso vir a ter filhos. O Atticus afirmou: — Ainda tem muito que aprender, Jack. — Eu sei. Esta tarde, a tua filha ensinou-me a minha primeira lição. Disse-me que eu não compreendia muito bem as crianças e explicou-me porquê. E estava certa. Atticus, ela até me disse como é que eu devia tê-la tratado... Ó diacho, estou tão arrependido de ter batido nela. O Atticus soltou uma risada. — Ela mereceu, por isso não sinta muitos remorsos. Fiquei à espera, segurando a respiração, para ver se o tio Jack contaria ao Atticus a minha versão dos fatos. Mas ele não o fez. Em vez disso apenas murmurou: — A forma como ela usa toda aquela linguagem grosseira deixa muito pouco à imaginação. Mas ela nem sabe o significado de metade do que diz... imagina você que me perguntou o que era uma prostituta... — E você, lhe explicou? — Não, contei-lhe a história de Lord Melbourne. — Jack! Quando uma criança te pergunta algo, pelo amor de Deus, responda. Agora não faça disso uma encenação. As crianças são crianças, mas detectam uma resposta evasiva mais rapidamente do que os adultos, e a evasão só as confunde. Não... — meditou o meu pai — esta tarde te deram a resposta certa, mas pelas razões erradas. A malcriadez é uma fase por que todas as crianças passam e acaba por morrer com o tempo quando elas percebem que não chamam a atenção de ninguém através dela. Mas a raiva e a impulsividade não. E a Scout tem de aprender a manter a calma e aprender depressa, sobretudo perante o que lhe está reservado nestes próximos meses. Mas confesso que ela está melhorando. O Jem está ficando crescido e ela já segue um pouco o seu exemplo. Por vezes, o que ela precisa é de uma pequena ajuda. — Atticus, você nunca lhe tocou num fio de cabelo. — Por enquanto sim. Até agora consegui sempre resolver as coisas com ameaças. Jack, ela me aborrece e me testa o mais que pode. Metade das vezes não atinge o seu fim, mas que tenta, lá isso tenta. — Essa não é a resposta — disse o tio Jack. — Não, a resposta é que ela sabe que eu sei que ela tenta. E é isso que faz a diferença. O que me aborrece é que daqui a pouco tempo tanto ela como o Jem vão ter de engolir algumas coisas. Não me preocupa se o Jem mantém ou não a calma, mas a Scout não só está olhando para uma pessoa, como se atirando para cima dela, como se fosse o seu orgulho que estivesse em risco... Esperei que o tio Jack quebrasse a sua promessa. Ainda não tinha feito. — Atticus, a situação é assim tão grave? Ainda não teve muitas oportunidades para falar nisso. — Não podia ser pior, Jack. A única coisa que temos é a palavra de um negro contra a dos Ewells. E as provas reduzem-se a um simples «Foi você — Não fui». Não podemos ficar esperando que o júri sobreponha a palavra do Tom Robinson à dos Ewells... você conhece os Ewells? O tio Jack disse que sim, que se lembrava deles. Descreveu-os ao Atticus, mas o Atticus disse: — Está uma geração atrasado. Mas os de agora são iguaizinhos. — Então, o que é que vai fazer? — Antes de acabar, pretendo chocar um bocado o júri... mas acho que tenho boas hipóteses no recurso. Neste momento, não sei te dizer, Jack. Sabe, esperava passar pela vida sem ter um caso destes, mas verdade é que o John Taylor apontou para mim e disse «Você é a pessoa ideal». — Te passou a batata quente, certo? — Certo. E você acha que eu conseguiria encarar os meus filhos de outra forma? Sabe tão bem como eu o que vai acontecer, Jack, e espero e rezo conseguir fazer com que a Scout e o Jem ultrapassem isto sem grandes amarguras, e acima de tudo, sem pegarem a habitual doença de Maycomb. Vá lá entender por que é que as pessoas sensatas se transformam completamente em doidos varridos quando surge alguma coisa que envolve um negro. É algo que eu ainda não entendi... Só espero que o Jem e a Scout saibam procurar as respostas em mim e não no que se diz pela cidade. Espero que confiem suficientemente em mim... Né Jean Louise? Em pânico, senti que tinham me descoberto na tocaia. Meti a cabeça por entre a porta, mostrando-me. — Pai? — Vai para a cama. Corri para o meu quarto e me meti na cama. O tio Jack tinha sido um verdadeiro cavalheiro em não desonrar o nosso compromisso. Mas nunca consegui descobrir como é que o Atticus sabia que eu estava escutando e só muitos anos depois é que percebi que o seu objetivo, naquela noite, era mesmo que eu ouvisse cada uma das suas palavras.